Não há como ter passado por 2020 sem ter se deparado com pelo menos um dos personagens acima. Pois o especial 2020 nunca mais, lançado nesta semana pela Netflix, reúne vários deles em um falso documentário de 70 minutos. Charlie Brooker, criador de Black mirror, sem poder produzir o sexto ano da série em decorrência da pandemia, concebeu uma retrospectiva com elenco de estrelas e à sua maneira: o tom geral é bastante ácido.
Hugh Grant faz um historiador cheio de teorias malucas, Tennyson Foss; Lisa Kudrow é a porta-voz presidencial Jeanetta Grace Susan, que nega absolutamente todos os disparates que vêm da Casa Branca; Joe Kerry (de Stranger things) é o influenciador Duke Goolies; Tracey Ullman é uma Rainha Elizabeth irritada com o Brexit de Harry e Meghan; Samuel L. Jackson, o jornalista Dash Bracket, que fala para a câmera do jornal em que trabalha, às moscas. Laurence Fishburne é o narrador.
Dá para rir, às vezes com vontade; e noutras com algum desconforto. Com ritmo ágil e formato tradicional – entrevistas individuais e imagens de arquivo – o falso documentário parte, obviamente, da pandemia, para retroceder até janeiro de 2020 e recuperar acontecimentos que foram esquecidos (o assassinato do general iraniano Qasem Soleimani e a cúpula de Davor, chamada de “Coachella para bilionários”) diante das coisas terríveis que ocorreram.
Fake news, polarização, brutalidade policial, racismo (e o movimento antirracista que emergiu após o assassinato de George Floyd), Brexit, emergência climática e a eleição americana são abordados com a língua afiada. “Em uma tentativa desesperada de chamar a atenção, o vírus infecta o amado homem comum de Hollywood, Tom Hanks, fornecendo às redes de notícias um ângulo de celebridade irresistível para a pandemia mortal”, anuncia o narrador.
Pela metade da narrativa, o documentário deixa de lado a pandemia e passa a apostar suas armas no embate Trump/Biden. “Acho que para muitos americanos Biden é o tio Joe. Ele faz parte da vida deles há séculos. Tão familiar quanto uma poltrona velha”, diz o historiador vivido por Grant.
Diane Morgan interpreta uma das melhores personagens, a britânica Gemma Nerrick, escolhida por ter sido a pessoa mais comum que a produção encontrou. Solitária no lockdown, à medida que o ano passa, a personagem observa a disputa presidencial americana como um reality show.
Lisa Kudrow também brilha com sua interpretação, claramente calcada em Kayleigh McEnany, atual porta-voz do governo Trump. “Isso é o que a mídia faz. Mente, fabrica fantasia. O presidente nunca disse isso”, ela vai repetindo diante das evidências em vídeo dos absurdos que Trump fez ao longo do ano.
2020 nunca mais não vai agradar a todos – e claramente não é esta a intenção. Mas com alguma ousadia, o especial consegue olhar para o pior deste ano e trazer alguma coisa boa.
2020 NUNCA MAIS
O especial está disponível na Netflix
Funeral de 366 dias
A Amazon Prime Video também lançou nesta semana um especial de humor. Yearly departed reúne um elenco exclusivamente feminino, com estrelas do gênero – como Rachel Brosnahan (de The marvelous Mrs. Maisel), Sarah Silverman (I love you, America), Natasha Rothwell (Insecure) e Tiffany Haddish (Girls trip) – no funeral de ninguém menos do que o ano de 2020.