Adaptar obras de Vinicius de Moraes para o audiovisual pavimenta inúmeras possibilidades. Junto com Renato Fagundes, o idealizador da série Noturnos (estreia esta quarta-feira 21/10, no Canal Brasil e no GloboPlay), a dupla de diretores Caetano Gotardo e Marco Dutra optou pelo tom soturno. “A maioria textos que usamos é pouco conhecida. Uma exceção é O operário em construção, que dá base para um dos seis episódios. Nele, pesa um forte caráter social. O poema Balada do morto vivo dá abertura para a série, com uma pessoa contando para outras uma história de fantasma. O incriado, um dos poemas recriados, é bastante abstrato, sombrio e perturbador. Quisemos passear por todos os textos na busca de chaves do universo do gênero de terror”, explica Caetano Gotardo.
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Sem vontade imposições, transpareciam nos textos camadas que aderiam temas como escravidão, amarras religiosas, feminicídio, extermínio de índios e de transgêneros. Para lembrar do poder de fogo da dupla, vale a lembrança de que ambos dirigiram Todos os mortos, filme sobre a perpetuação do colonialismo e que foi exibido nos festivais de Berlim e Gramado.
“Li um tanto de Vinicius (antes da série). Um dos traços interessantes dele é ser acessível. Ele traz o rigor formal, mas lida com universos populares", observa Gotardo, coautor de Matéria, livro de poesia feito junto a Marco e Carla Kinzo. Chamado de Noturna Companhia de Teatro, um grupamento de atores lidera a ação de Noturnos.
Em meio à tempestade e alagamentos, personagens dos atores Ícaro Silva, Rafael Losso e Marjorie Estiano se desdobram no comando de cada episódio: um a um, são eleitos para, sob o manto do fantástico e da estranheza, narrarem vivências ou contos ouvidos. "A literatura de gênero, como em Noite na taverna, e o cinema têm, na tradição, discutir aflições do mundo. E o que nos causa medo geralmente está calcado na nossa realidade”, comenta Gotardo.
Em meio à tempestade e alagamentos, personagens dos atores Ícaro Silva, Rafael Losso e Marjorie Estiano se desdobram no comando de cada episódio: um a um, são eleitos para, sob o manto do fantástico e da estranheza, narrarem vivências ou contos ouvidos. "A literatura de gênero, como em Noite na taverna, e o cinema têm, na tradição, discutir aflições do mundo. E o que nos causa medo geralmente está calcado na nossa realidade”, comenta Gotardo.
Diálogos afinados
A relação entre música e dramaturgia, nutrida por obras de Bertolt Brecht, pelos musicais cinematográficos, por Chico Buarque e chanchadas, inspira a dupla Gotardo e Dutra (responsável ainda por canções de Noturnos); e, claro, tangencia o envolvimento de ambos por Orfeu da Conceição (peça de Vinicius de Moraes), num “bolo de referência” nas inspirações. “Espalhamos, na série, algumas pistas ligadas à figura do Vinicius, entre os personagens. Há um que escreve poesia, outro é chamado de Poetinha (num bar), há ainda o personagem Marcos (Vinícius de Moraes era Marcus Vinicius)”, demarca Gotardo.
Severa e com a mão firme, mas nunca impositiva, a personagem de Thaia Perez, uma diretora de teatro que é contraditório farol para a trupe que protagoniza Noturnos tem amplo destaque na trama. Batizada Tatiana foi inspirada em famosos da cena teatral, entre as quais Ariane Mnouchkine, Antunes Filho, Twyla Tharp e Pina Bausch.
Boêmia, independente, apreciadora da bebida e do fumo, a diretora Tatiana carrega, à la Vinicius, uma garrafa de uísque para os ensaios. Na conjuntura, dialoga com os atores, optando por nutrir processos criativos vivos e complexos.
Boêmia, independente, apreciadora da bebida e do fumo, a diretora Tatiana carrega, à la Vinicius, uma garrafa de uísque para os ensaios. Na conjuntura, dialoga com os atores, optando por nutrir processos criativos vivos e complexos.
Métodos e visões diferenciadas também despontam em Noturnos, já que para as narrativas dos episódios, sob direção-geral de Gotardo e Dutra, vários diretores foram acionados. “Quisemos a variação de olhares, com liberdades estéticas para um grupo heterogêneo”, explica Caetano Gotardo. Gustavo Vinagre, Aaron Salles Torres, Vinícius Silva e Rodrigo Aragão (ainda responsável pelos efeitos visuais) formaram a ala masculina, enquanto a diretora Gabriela Amaral Almeida e a corroteirista Alice Marcone trouxeram o talento feminino para a série.
Uma metalinguagem ainda se insere em Noturnos: “Com o grupo de teatro como personagens, os atores reaparecem diversas vezes em diferentes personagens. Isso alimenta questões de fabulação e de representação”, conclui Gotardo.
Uma metalinguagem ainda se insere em Noturnos: “Com o grupo de teatro como personagens, os atores reaparecem diversas vezes em diferentes personagens. Isso alimenta questões de fabulação e de representação”, conclui Gotardo.
ENTREVISTA // Marco Dutra, codiretor
O terror gráfico é menos impactante do que o psicológico?
O gênero fantástico e seus subgêneros sempre fizeram uso de uma infinidade de ferramentas na tentativa de produzir efeitos diversos: medo, desconfiança, pavor, tensão, expectativa. Tanto o gore – a violência gráfica – quanto o suspense de sugestão funcionam; não acredito que um seja necessariamente mais impactante do que o outro. Tudo depende do contexto de cada história e, claro, da sensibilidade de quem está assistindo. Na série, aproveitamos a diversidade das histórias para usar tanto elementos gráficos quanto não gráficos, dependendo do subgênero de cada episódio: a história de fantasmas, a alegoria, a ficção científica.
É perceptível a convicção crescente de trabalharem (você e Caetano Gotardo) com atores negros, não?
É preciso que haja diversidade entre criadores para que a arte possa evoluir e conseguir ler e refletir o mundo de maneira forte e relevante — não apenas no universo dos atores, mas em todas as áreas da criação. No mundo, e especialmente no Brasil, não há como ignorar os dilemas raciais e de gênero. É um dos maiores desafios que temos como sociedade na busca pela igualdade de direitos.
A musicalidade de Vinicius inspira a dramaturgia que compõem, sendo você e Gotardo também autores de músicas? Como notam a obra dele?
Eu e Caetano gostamos muito de música, e a presença de canções têm marcado muitos dos nossos filmes e projetos. Vinicius de Moraes nunca foi uma de nossas referências maiores, mas ele certamente faz parte do nosso imaginário. Conscientemente ou não, suas letras, seus poemas e muitas das suas ideias estão na base de nossa formação.
Na série, tentamos abordar o complexo e amplo universo do Vinicius, sem deixar de criticá-lo e se opor a ele quando necessário. Uma das características do Vinicius é justamente a amplitude das suas áreas de atuação: ele escreveu poesia e prosa, mas também teatro, música, crítica de cinema e tantas coisas. Para nós, foi incrível descobrir esses textos menos lidos e divulgados.
Encontramos também, durante a preparação da série, críticas de cinema de Vinicius em que aparece um carinho grande pelo cinema de horror (em muitos casos, admirando filmes B pouco conhecidos). Textos como Conto carioca e Balada do morto vivo mostram um Vinicius sombrio, porém não tão distante do universo trágico e romântico do autor de Garota de Ipanema e Orfeu da Conceição. Já textos como O mágico e O incriado revelam um aspecto surreal e apocalíptico que nos surpreendeu e nos estimulou.
Na série, tentamos abordar o complexo e amplo universo do Vinicius, sem deixar de criticá-lo e se opor a ele quando necessário. Uma das características do Vinicius é justamente a amplitude das suas áreas de atuação: ele escreveu poesia e prosa, mas também teatro, música, crítica de cinema e tantas coisas. Para nós, foi incrível descobrir esses textos menos lidos e divulgados.
Encontramos também, durante a preparação da série, críticas de cinema de Vinicius em que aparece um carinho grande pelo cinema de horror (em muitos casos, admirando filmes B pouco conhecidos). Textos como Conto carioca e Balada do morto vivo mostram um Vinicius sombrio, porém não tão distante do universo trágico e romântico do autor de Garota de Ipanema e Orfeu da Conceição. Já textos como O mágico e O incriado revelam um aspecto surreal e apocalíptico que nos surpreendeu e nos estimulou.