Como 'Sex education' se tornou a série mais vista da Netflix

Com rigor no tratamento de assuntos sérios, preocupação em transmitir informações corretas e leveza na condução da trama, produção conquista público e é aprovada por especialista em educação sexual

Pedro Galvão 04/02/2020 06:00

Em tempos em que abstinência é recomendada como política pública para a saúde dos jovens, como defende, por exemplo, a ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, abordar o sexo na adolescência pode ser uma tarefa arriscada para produtos audiovisuais. Porém, com uma proposta bem-humorada, leve e didática, Sex education, série da Netflix, conquistou o lugar de título mais assistido da plataforma neste início de 2020.

A segunda temporada da série foi lançada pelo serviço de streaming no último dia 17 de janeiro. Segundo o aplicativo TV Time, a comédia adolescente britânica, centrada em um tímido estudante de ensino médio, filho de uma terapeuta sexual, ultrapassou Você, também na Netflix, tomando o topo da audiência global na terceira semana de janeiro.
 
Fotos: Netflix/Divulgação
Segunda temporada da produção britânica foi lançada no último dia 17 e se tornou a série mais vista da Netflix no período (foto: Fotos: Netflix/Divulgação)

A Netflix não costuma informar dados de audiência, mas, em um comunicado feito no fim do ano passado, a empresa divulgou as 10 séries mais vistas por brasileiros na plataforma em 2019. Sex education aparecia em quinto lugar, com sua primeira temporada, lançada em janeiro daquele ano.

Não surpreenderia uma produção focada em sexo arrebatar grande audiência, sobretudo numa plataforma que independe de horário específico para exibir seus conteúdos. Porém, a proposta criada por Laurie Nunn passa longe de qualquer apelação. Embora fale primordialmente sobre “aquilo”, não existem cenas de nudez. Relações ou insinuações sexuais estão presentes, assim como a masturbação, mas em uma configuração permitida para menores, com classificação indicativa de 16 anos.

Em sintonia com as principais pautas identitárias atuais, a comédia juvenil apresenta aspectos educacionais importantes e personagens carismáticos. O principal deles é Otis, interpretado por Asa Butterfield, de 22 anos, que, aos 10, protagonizou o filme O menino do pijama listrado (2008). Ele é mais um aluno do ensino médio de uma pequena cidade no interior da Inglaterra.
 
Quase anônimo, ao contrário dos másculos esportistas e do grupinho das garotas populares, que lutam para ser o centro das atenções diariamente, como em qualquer trama colegial norte-americana, embora essa se passe no Reino Unido. No entanto, ser filho de uma terapeuta sexual, quando todos ao redor sofrem com algum tipo de inquietação relacionada ao sexo, acaba fazendo com que ele seja notado.

Primeiramente pela rebelde e mal-humorada Meave (Emma Mackey), que também faz parte do time dos deslocados da classe. Com uma vida familiar arruinada, ela enfrenta sérios problema financeiros e descobre que uma parceria com Otis poderia render um dinheiro extra.
 
Conhecedor da temática trabalhada pela mãe, ele consegue aconselhar sexualmente seus colegas e resolver os problemas deles, que vão desde inseguranças estéticas a incertezas sobre a própria orientação sexual. A garota vê aí um belo negócio e passa a atuar agendando e cobrando pelas consultas.

A grande ironia é que Otis ainda não chegou nem perto de iniciar sua vida sexual. Dessa forma, não faltam situações cômicas e debochadas, com alguns exageros típicos do formato, além de romances e desacertos amorosos típicos de uma comédia protagonizada por jovens dessa idade.
 
Tudo como pano de fundo para se discutirem questões importantes e sérias, como contracepção, autoconhecimento, direitos da mulher, DSTs e diversidade sexual, ressaltando como os adultos e os sistemas educacionais têm problemas em trabalhar isso com os jovens.

Um dos segredos do sucesso é a preocupação com a representatividade. Assim como em outras séries contemporâneas, Sex education foge do ultrapassado modelo em que apenas um padrão majoritário tem vez entre os personagens. O melhor amigo de Otis, e um dos preferidos do público, é Eric (Ncuti Gatwa).
 
Estudante de família nigeriana, ele orgulhosamente se declara gay e traz para a trama a perspectiva de sua orientação sexual dentro do que a série se propõe a abordar. Além dele, outros personagens de ascendência não inglesa e orientação não heteronormativa completam o núcleo principal.

Apesar do tom bem-humorado e leve dominar a maior parte do tempo, há espaço suficiente para tratar de assuntos sérios. Em um dos episódios da primeira temporada, Eric é alvo de ataques homofóbicos e o preconceito é trabalhado e desconstruído em outros momentos.
 
Também na primeira sequência, o aborto é tema de outro capítulo, enquanto na segunda, a estudante Aimee (Aimee Lou Wood) é abusada sexualmente no transporte coletivo – violência sofrida cotidianamente por muitas mulheres ao redor do mundo. A situação é vista inicialmente com ingenuidade pela personagem, mas os traumas e desdobramentos logo aparecem, destacando a gravidade do crime, além da necessidade e das dificuldades de denunciá-lo.

INTERESSE 

Para quem é especialista no assunto, a abordagem da série é oportuna. “É uma proposta importante, primeiramente porque os adolescentes assistem, ou seja, é a linguagem deles. Depois, porque o interesse deles nessas questões existe, de fato, como posso perceber em sala de aula”, explica o professor de história, sociologia e filosofia Júnio de Souza, mestre pela Faculdade de Educação da UFMG, com dissertação em gênero e educação sexual. Lecionando para o ensino médio há 20 anos, sendo os últimos oito dedicados ao tema, ele destaca que produções desse tipo devem ser cuidadosas ao falar de educação sexual.

“Mas em Sex education nunca vi nada inadequado, mesmo com uma segunda temporada tocando em temas mais fortes”, avalia o professor. Ele cita a série como um exemplo da importância do ensino sobre sexualidade e gênero, citando a personagem doutora Jean Milburn (Gillian Anderson), sexóloga mãe de Otis, que, na segunda temporada, passa a “concorrer” com o filho no aconselhamento dos jovens da escola.

“Há uma diferença nítida de quando os adolescentes falam de sexo entre eles e quando conversam com um adulto. Entre eles, muitas vezes, não há um filtro. É uma troca de experiências próprias, que pode ser problemática, já que podem achar que sabem sobre alguma coisa, quando na verdade não sabem. Daí a importância de alguém com conhecimento acadêmico e profissional, como é a Drª Jean na série, que ganha a confiança dos alunos depois de um primeiro momento de desconfiança”, argumenta.

Nesse sentido, Júnio de Souza ainda questiona a eficácia de políticas públicas que aconselham a abstinência. “Não há como falar em abstinência sexual sem antes falar sobre o que é sexo. E hoje há uma demanda dos jovens por esse conhecimento”, afirma.

A criadora da série, Laurie Nunn, disse à revista The Hollywood Reporter que a responsabilidade educacional é primordial em seu trabalho. “A pessoa mais importante com a qual trabalhamos é um educador sexual, que nos dá um feedback sobre roteiro, certificando que as informações estejam corretas e que não estamos colocando nada no programa que possa ser potencialmente prejudicial. Em seguida, nós nos asseguramos de que é engraçado e humano também”, afirmou.
 
Em outra entrevista, ao jornal inglês Evening Standard, ela contou ter uma regra segundo a qual “as cenas de sexo têm que levar a história adiante ou ser educacionais de alguma forma”, diante da preocupação em lidar com adolescentes, tanto no elenco, quanto na audiência.


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PARA ENTENDER

 

O sexo também é assunto de outra novidade no catálogo da Netflix. A série documental Explicando se dedica ao tema em cinco episódios de 20 minutos, lançados no fim de dezembro. Com narração da cantora Janelle Monáe, eles entram cientificamente em temas como atração, fetiche, fertilidade e parto, falando sobre aspectos sociais importantes sobre cada um deles. Com imagens produzidas, depoimentos e infográficos, a série joga luz, por exemplo, sobre a infantilidade masculina, sobre as razões de tanta gente compartilhar as mesmas fantasias e aquelas pelas quais a responsabilidade sobre a contracepção é atribuída de forma desigual à mulher.

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