Sede de um dos mais importantes festivais cinematográficos do país, Tiradentes recebe nesta semana a quarta edição do evento Casa do Autor Roteirista, idealizado pelo cineasta, escritor e roteirista Newton Cannito. Entre quinta (12) e domingo (15), o encontro entre profissionais envolvidos com a teledramaturgia tem a meta de promover troca de experiências por meio de seminários e oficinas e também incentivar a reflexão sobre o papel desempenhado pelo audiovisual na sociedade.
“Se formos pensar historicamente, a dramaturgia e o teatro surgem junto com a democracia. A dramaturgia é fundamental para a democracia, é onde relativizamos e conhecemos outros pontos de vista. A crise da democracia é também uma crise da nossa dramaturgia e da nossa capacidade de representação”, argumenta Cannito, que é autor de séries como Cidade dos Homens e 9mm.
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Em um momento de debates acalorados e posicionamentos polarizados, ao mesmo tempo em que as séries televisivas atravessam momento de grande popularização, o evento procura conectar esses dois cenários. “É preciso pensar realmente qual é a função da dramaturgia e como ela pode contribuir com o a democracia”, diz o curador da Casa do Autor Roteirista, que teve suas edições anteriores realizadas em Paraty, no Rio de Janeiro. A programação inclui uma visita à Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (Apac), com apresentação de um projeto de seriado envolvendo histórias contadas pelas pessoas em processo de ressocialização.
“É uma pesquisa que fazemos há um tempo e é um projeto maravilhoso. É uma causa nossa, acreditamos na Apac como um instrumento social importante para combater a violência, então ajudamos, fazemos oficinas e ouvimos histórias. Temos o projeto de criar um seriado abordando essa temática do presídio humanizado. Vamos levar os participantes para conhecer um presídio e a história de vida do pessoal em recuperação”, diz Cannito. Outro ponto de destaque na agenda é o incentivo à criação de roteiros ligados ao “humor antifascismo”.
Para o roteirista, “o fascismo é ausência total de humor”. A ideia é falar sobre boas experiências já realizadas nesse sentido, como o Zorra, da TV Globo, exemplo apontado por Cannito, além de pensar em novas soluções. “O fascismo é uma doença, uma loucura, em que a pessoa acha que tem sempre razão. O humor é a cura e, para isso, é preciso olhar para nós mesmos e identificar nossos próprios fascismos”, diz.
Na construção de uma dramaturgia democrática e socialmente relevante, ele entende que é preciso “ter a generosidade de entender o ser humano do outro lado” e cita termos vistos em ambientes virtuais nesses tempos de acirramento das tensões. “Um roteirista não pode ser muito ‘bolsominion’ ou muito ‘petralha’, é preciso entender como o outro pensa, ver aquela humanidade. Senão, não é possível fazer uma boa obra.” Para o roteirista, os tempos atuais trazem enfrentamentos de ideias e de opiniões que se opõem à criatividade.
CRISE
“Temos uma dificuldade civilizatória. A escola ensina a dar opinião desde o ensino básico, quando pedem textos dissertativos. E, hoje, muita gente quer 'lacrar', humilhar o outro, coisas que não servem para nada. A dramaturgia tem que ser diferente. É preciso trabalhar pontos de vista. É um processo terapêutico, que deveria vir desde a escola também, com incentivo à escrita de contos, de ficções. A crise na dramaturgia tem a ver com a crise na capacidade de relativizar opiniões e, por isso, a crise da democracia”, afirma Cannito.Ele cita a série nacional Unidade básica, do Universal Channel, da qual é um dos roteiristas. “Em um dos episódios, tratamos da Aids, quando um paciente acredita estar curado pela fala de um pastor e coloca em risco a saúde da esposa, ao não usar preservativo. Ou seja, temos um conflito que envolve a fé. Como é possível conciliar pontos de vista diferentes em uma solução dramatúrgica? Através do diálogo”, diz.
Debates e reflexões sobre questões assim devem pautar o encontro em Tiradentes. “Haverá um momento de negócios e pitching (apresentação de projetos), mas boa parte do encontro é dedicada ao pensamento sobre como realizar a teledramaturgia. É preciso conciliar sucesso comercial com impacto social”, opina o roteirista, que destaca Aruanas, produção original da Globo, criada por Estela Renner, como um bom exemplo disso. Lançado em julho deste ano, o seriado fala sobre três amigas líderes de uma ONG que investigam uma quadrilha de crimes ambientais na Amazônia.
Canitto lembra que o impacto social pode passar por várias áreas, como meio ambiente, saúde pública, e ser construída em diferentes gêneros dentro da dramaturgia. “A série 3% foi criada em um edital para desenvolver uma série de impacto social. Isso é feito através do sci-fi, mas trazendo debates contemporâneos e conseguindo um sucesso comercial”, avalia ele, que foi supervisor artístico de produção da Netflix.
Com inscrições ainda abertas para debates e seminários, o evento visa atrair profissionais de toda a cadeia produtiva do audiovisual. Entretanto, Cannito ressalta que os assuntos discutidos podem ser de interesse de toda a sociedade. “Vamos debater como criar a dramaturgia a partir de valores. O conteúdo não é exclusivo para o pessoal do audiovisual. Interessa a quem queira criar histórias, trocar ideias, é um momento de aprendizado sobre como usar a dramaturgia para defender uma causa e irradiar valores”, afirma. Além de Newton Cannito, participam como convidados da Casa do Autor Roteirista André Pellenz (Minha mãe é uma peça), Gustavo Gontijo (Globo Filmes), Cao Quintas (Turma da Mônica: laços), Marcos Nisti (Maria Farinha Filmes) e Fabrício Bittar (Exterminadores do além). O valor da inscrição varia entre R$ 125 e R$ 1.000.
Casa do Autor Roteirista
De quinta-feira (12) a domingo (15), em Tiradentes. Programação completa e inscrições em:https://casaroteirista.com.br/.