Mundo cão, em português e na Neflix. Com sete episódios, Bandidos na TV, no ar há 20 dias, é a primeira série documental da plataforma de streaming em língua não inglesa. Acompanha uma história brasileiríssima, que neste país continental pode ter passado batido para quem não se interessa por narrativas policiais.
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O mote é irresistível. Um apresentador de TV, ex-policial militar e eleito por três vezes (com recorde de votos) deputado estadual, encomendaria crimes para garantir a audiência de seu programa. É dessa maneira que Bandidos na TV nos apresenta o amazonense Wallace Souza (1958-2010).
Em 1996, quando Gil Gomes já era febre nacional com o programa Aqui, agora, Souza criou o Canal livre. Originalmente exibido na TV Rio Negro, afiliada da Band, a atração depois passou para a grade da TV em Tempo, afiliada do SBT, e batia a Globo em Manaus, como somos informados logo no início da série.
Wallace fazia de forma extremada o que outros programas fazem até hoje na TV aberta. Misturando sensacionalismo, humor e assistencialismo, ele se apresentava como um herói dos pobres. Seu convite era sedutor para uma plateia humilde, que sofria com o domínio do tráfico na periferia da capital amazonense. “Bandido merece bala”, “Manaus não pode virar uma terra sem dono” foram alguns dos bordões cunhados por ele.
Não havia tarja preta no programa. A equipe do Canal livre era sempre a primeira a chegar nos locais dos crimes (por vezes, antes mesmo da própria polícia, que sempre lhe passava informações privilegiadas).
APELAÇÃO Em uma das cenas mais grotescas, que a série explora mais de uma vez, vemos um corpo carbonizado com o repórter comentando que ainda saía fumaça daquele churrasco. Em outro momento, assistimos a um homem ser metralhado – a vítima agoniza enquanto o repórter grava um depoimento, dizendo que havia uma hora que estava ali e o socorro não tinha chegado – os pais ficaram sabendo da morte do filho pela televisão.
Bandidos na TV acompanha a ascensão e glória de Wallace à maneira das séries de investigação sobre crimes verdadeiros, uma febre tanto na TV convencional quanto nas plataformas de streaming. Curiosamente, a produção não tem DNA brasileiro. A série foi produzida pela Quicksilver Media e pela Caravan, duas produtoras britânicas. Seu diretor, Daniel Bogado, é um britânico de origem paraguaia que já assinou documentários sobre o conflito no Sudão do Sul e o grupo terrorista Boko Haram.
O mundo de Wallace começa a ruir em 2008. Ex-policial militar, o traficante Moacir Jorge Pereira da Costa, mais conhecido como Moa, é preso. Na delegacia, denuncia o apresentador e seu primogênito, Raphael Souza, como mandantes de um esquadrão da morte. De acordo com Moa, os assassinatos eram encomendados pelo apresentador para que seu programa tivesse assunto, ou seja, mais audiência.
A partir da denúncia, é criada uma força-tarefa para o caso de Wallace, que passa a ser investigado pelos crimes de formação de quadrilha, tráfico de drogas, ameaça a testemunhas e porte ilegal de armas. Ele é cassado e preso. Com problemas de saúde desde a infância – quando a investigação começa, Wallace já havia sofrido quatro tromboses, duas embolias pulmonares e um AVC – pouco fica atrás das grades, pois é internado – sofria de ascite, acumulação anormal de líquido no abdômen, popularmente conhecida como barriga d'água.
A série acompanha toda a história como uma novela da vida real. Cada episódio tem um tema e carrega o suspense – por vezes, a cronologia vai e volta no tempo ao sabor da narrativa, deixando o espectador um tanto perdido. Com riquíssimo material de arquivo – já que, além do programa, a imprensa nacional e internacional cobriu à exaustão o caso Wallace –, há ainda depoimentos atuais (familiares, investigadores, jornalistas) e cenas de reconstituições.
A produção parece reafirmar o tempo inteiro a sua busca por imparcialidade – os dois lados são sempre ouvidos. E a investigação traz tamanhas reviravoltas que a dúvida sobre o tamanho da culpa de Wallace fica até o final. Não há certezas. Mas também não há como dizer que há inocentes ali.
O MUNDO DE WALLACE SOUZA
Conheça afetos e desafetos na história do apresentador e político
Raphael Souza – Primogênito de Wallace, foi condenado a nove anos pela morte de um traficante, ocorrida em janeiro de 2007.
Willace Souza – Filho caçula de Wallace, era um adolescente na época do escândalo. Principal defensor do pai na série, em 2018 tentou se eleger, aos 24 anos, deputado federal pelo Avante. Teve 2.712 votos.
Moa – Ex-policial militar, Moacir Jorge Pereira da Costa denuncia Wallace em 2008 como líder de um grupo de extermínio, o que leva ao início da investigação. Morreu queimado em 1º de janeiro de 2017, na rebelião ocorrida no Complexo Anísio Jobim, que deixou 56 presos mortos.
Vanessa Lima – Ex-produtora e diretora do Canal livre, foi denunciada pela irmã de um traficante e indiciada por associação ao tráfico de drogas. Acabou presa durante alguns meses, sem nunca denunciar crimes de seu ex-chefe.
Thomaz Vasconcelos – Foi secretário de Inteligência do estado do Amazonas e integrante da força-tarefa que investigou Wallace.
Divanilson Cavalcanti – Delegado da Polícia Civil e um dos principais integrantes da força-tarefa que investigou o caso Wallace.
Paula Litaiff – Jornalista amazonense que cobriu todo o caso Wallace, é a principal repórter a aparecer na série.
PREPARE O ESTÔMAGO
Confira outros exemplos de séries que exploram o mundo cão disponíveis no catálogo da Netflix
>> Gênio diabólico (2018)
Em 2003, em uma cidadezinha da Pensilvânia, um homem roubou um banco usando um colar de metal preso a explosivos. A polícia chegou, mas o esquadrão antibombas não (estava preso no trânsito). O colar foi detonado, matando o homem, um simples entregador de pizzas. Os primeiros minutos da série em quatro episódios começam assim. Daí para a frente, o documentário tenta entender a motivação do assalto: uma espécie de caça ao tesouro surreal, que acabou com a vida do entregador de pizza.
>> Conversando com um serial killer: Ted Bundy (2019)
Mais famoso dos assassinos seriais, Ted Bundy estuprou, decapitou e fez sexo com os corpos de 30 mulheres, nos EUA dos anos 1970. O ótimo documentário em quatro episódios gerou controvérsia. Parte do público, impactado com o charme e a sedução de Bundy, correu para as redes sociais para uma série de elogios a Bundy. A própria Netflix teve que dar uma resposta: “Eu já ouvi muita gente falar sobre a suposta beleza do Ted Bundy, e gostaria de educadamente lembrar que existem literalmente milhares de homens gatos em nosso catálogo, e quase todos não são assassinos em série condenados”, publicou a empresa em suass redes sociais.
>> Dirty John: A verdade nua e crua (2019)
Um homem que se passa por médico e engana mulheres. Chantagens, roubos, traições, John Meehan foi capaz de tudo. Dirty John (John Imundo) é uma série ficcional baseada em um podcast que se tornou uma febre nos EUA. É centrada no último relacionamento do picareta. Pois a história ganhou também um documentário, que recupera outros crimes praticados por Meehan. Uma das vítimas, inclusive, foi uma brasileira.