Rio de Janeiro – “Se gritar pega ladrão/Não fica um meu irmão/Se gritar pega ladrão/Não, não fica um.” Na abertura da segunda temporada de O mecanismo, que será disponibilizada nesta sexta (10) pela Netflix, realmente não fica um. De Tancredo Neves (1985), o presidente eleito que morreu antes de tomar posse, a Michel Temer (2016-2018), todos os mandatários brasileiros pós-ditadura militar (1964-1985) aparecem sob os versos de Reunião de bacana (Ary do Cavaco e Bebeto Di São João).
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“Tudo muda, então é natural que o mecanismo mude. Isto está refletido na abertura. Todos operaram o mecanismo, sem exceção, tenho certeza disto”, afirma José Padilha. Criador e produtor-executivo da série que refaz ficcionalmente a Operação Lava-Jato, Padilha recupera dois anos da vida nacional (2014, com a prisão dos empreiteiros, a 2016, com o impeachment de Dilma Rousseff) nos oito novos episódios.
A temporada tem início no ponto em que a anterior terminou. O ex-delegado da PF Marco Ruffo (Selton Mello) vai atrás da secretária da Miller e Bretch, a única capaz de revelar um setor de propina da empreiteira. Com isso, a delegada Verena Cardoni (Caroline Abras), à frente da operação, vai prender todos os empreiteiros do país, incluindo o mais graúdo deles. Apresentado quase como um sociopata, Ricardo Bretch (Emilio Orciollo Netto) vê seu papel crescer nesta segunda temporada.
Em meio ao percurso principal, a série resvala por dois outros caminhos. Um ganha o tom de thriller. Em sua vendeta pessoal contra o ex-doleiro Roberto Ibrahim (Enrique Diaz), Ruffo faz absolutamente tudo para não deixá-lo escapar. Segue-o até o Paraguai, onde vai encontrá-lo num bordel traficando cigarros.
A outra ponta da série é a política. Se no primeiro ano O mecanismo tinha um tom um tanto maniqueísta, neste segundo a série ganha nuances.
MAQUIAVÉLICO
A cisão política da sociedade brasileira nesta década se reflete nos personagens. A partir do momento em que o juiz Paulo Rigo (Otto Jr.), apresentado como vaidoso e maquiavélico, libera os áudios conseguidos via escuta ilegal do ex-presidente Gino (Arthur Kohl) com a então presidente Janete (Sura Berditchevsky), vemos os próprios policiais da Lava-Jato questionarem a si próprios, bem como ao juiz e aos procuradores da Lava-Jato.
“Acho que esta temporada é menos polêmica do que a primeira. Na anterior, ainda existia a esperança de o Lula continuar na política. Agora, não há mais isso. O cara está condenado, a Dilma não se elegeu”, afirmou Padilha, em encontro com a imprensa na terça-feira (7), no Rio de Janeiro. O diretor vai esperar o lançamento para ver se haverá retaliações – a despeito do barulho que a primeira temporada teve nas redes sociais, não houve nenhum processo contra a série.
Como adora uma provocação, Padilha está curioso para saber como vão repercutir alguns dos cacos que entraram no roteiro. Entre eles, há uma fala do senador Lúcio Lemes (Michel Bercovitch), a versão ficcional do atual deputado federal Aécio Neves. Em determinado momento, o personagem afirma que vai “estancar essa sangria”.
No ano anterior de O mecanismo, a mesma expressão saiu da boca do personagem Gino, a versão ficcional do ex-presidente Lula. Na vida real, essa expressão foi usada pelo ex-senador Romero Jucá, numa conversa com um delator, a respeito da necessidade do impeachment. Na época, até a ex-presidente Dilma foi a público criticar a inclusão da frase. “Até agora, ninguém reclamou”, disse Padilha.
Durante o encontro com a imprensa, Padilha não se furtou a criticar o atual governo. As principais críticas do cineasta foram dirigidas ao ex-juiz e atual Ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio Moro, que “saiu de herói nacional para um salame fatiado entregue em pedaços ao Centrão para garantir a reforma da Previdência”.
A gestão Bolsonaro também não ficou de fora. “O Bolsonaro nunca foi politicamente capaz de participar de roubalheiras como a Lava-Jato. Isto não o exime de nada, pois ele sempre esteve ligado à polícia do Rio de Janeiro. É quase que um final do Tropa de elite 2, quando a milícia chegou à Brasília, um nível que eu jamais imaginei que o Brasil fosse chegar.”
Mesmo não fazendo parte da trama, Bolsonaro aparece no derradeiro episódio, na votação do impeachment. “Por um Brasil acima de tudo e por Deus acima de todos”, afirma um parlamentar, espelhado na fala do atual presidente.
Em 2019, a Lava-Jato continua em curso. Padilha, no entanto, não sabe se haverá uma terceira temporada de O mecanismo. “Espero que sim”, afirmou. Tudo vai depender da audiência deste segundo ano. Caso a série ganhe sua terceira temporada, Padilha acredita que um novo ano deverá se desenrolar até a prisão de Lula. “Estamos seguindo tudo o que aconteceu, pois a série é inspirada em, infelizmente, fatos reais.”
A repórter viajou a convite da Netflix
O MECANISMO
A segunda temporada, com oito episódios, estreia nesta sexta (10) na Netflix
“Nunca fui ativista, não entendo de política e a série me deu uma libertação de ser quem sou. Foi um alívio. Quis o destino que me caísse na mão um Zé Padilha com uma série de alto teor político. Meu primeiro movimento foi dizer: eu não vou fazer isso. Mas falei: não, é uma chance de deixar minha zona de conforto. Eu disse ao Padilha e prometi que ia dizer isso (em público): foi um crescimento. Foi um trabalho muito doloroso, desagradável muitas vezes de fazer. E foi assim que construí o Ruffo”
>> Selton Mello,
intérprete de Marco Ruffo
“Achei interessante, até um exercício de empatia e escuta, até para expandir e ir um pouco além de nossas próprias ideias. Às vezes, tenho a sensação de que a gente prega muito para convertido. A série é bem colorida nesse sentido, pois reúne diferentes pessoas pensando de diferentes formas. Isso alarga nossas próprias ideias para sair dessa coisa egoica e de verdades absolutas que a sociedade está vivendo neste momento”
>> Caroline Abras,
intérprete de Verena Cardoni
“A série tem um hibridismo que confunde e é interessante ao mesmo tempo. Entendo a reação das pessoas (que criticaram a primeira temporada), pois estamos vivendo um momento decisivo, em que as pessoas precisam gritar, e isto faz parte da liberdade de expressão. Mas, na segunda temporada, muita gente vai poder ver um ponto de vista diferente. Meu personagem é um suposto cara normal, mas, ao mesmo tempo, um coringa, um crítico do sistema todo, que não se apega a nenhum ponto de vista. Não é nem herói nem vilão”
>> Enrique Diaz,
intérprete de Roberto Ibrahim