Escalação de apenas 5 atores negros em novela ambientada em Salvador gera polêmica

Com o agravante de nenhum dos atores serem protagonista, classe artística e sociedade debatem a subrepresentação e o preconceito racial espelhados na TV brasileira

Ana Clara Brant 13/05/2018 11:20
JOÃO COTTA/DIVULGAÇÃO
Emílio Dantas e Giovanna Antonelli são os protagonistas de 'Segundo sol', que estreia amanhã, na faixa das 21h (foto: JOÃO COTTA/DIVULGAÇÃO)

Segundo sol, novela das 21h que estreia amanhã na TV Globo, nem começou a brilhar e já começa a ser ofuscada por uma polêmica. Apesar de a trama se passar na Bahia, estado em que a maior parte da população é negra, todos os protagonistas da produção – Emílio Dantas, Giovanna Antonelli (que curiosamente fez o papel de uma japonesa em seu trabalho anterior, Sol nascente), Vladimir Brichta, Adriana Esteves e Deborah Secco – são brancos. O elenco principal conta com apenas cinco atores negros: Roberta Rodrigues, Fabrício Boliveira, Danilo Ferreira, Antônio Pitanga e Gabriela Moreyra. A Globo diz ter cogitado escalar Camila Pitanga e Taís Araújo, que, por diferentes razões, não aceitaram o convite.

Assim que a escalação e as chamadas da novela começaram a ser divulgadas, o assunto invadiu as redes sociais. Até famosos como Luana Piovani se manifestaram. “Tô vendo a chamada de ‘negócio da Bahia’. Que Bahia é essa, gente? Não conheço aquela Bahia, não”, declarou a atriz.

Com o bafafá instalado, a Globo acabou comentando o assunto por meio de nota. “Uma história como a de Segundo sol, também pelo fato de se passar na Bahia, nos traz muitas oportunidades e, sem dúvida, reflexões sobre diversidade na sociedade, que serão abordadas ao longo da novela, que está estruturada em duas fases. As manifestações críticas que vimos até agora estão baseadas sobretudo na divulgação da primeira fase da novela, que se concentra na trama que vai desencadear as demais. Estamos atentos, ouvindo e acompanhando esses comentários, seguros de que ainda temos muita história pela frente. De fato, ainda temos uma representatividade menor do que gostaríamos e vamos trabalhar para evoluir com essa questão.”

Depois de reconhecer a polêmica e se manifestar sobre ela, a Globo blindou o elenco, evitando expor os artistas a perguntas sobre o assunto.

Para o cineasta e roteirista Jeferson De, que lançará no segundo semestre Correndo atrás, longa-metragem escrito, dirigido, e interpretado por artistas negros, o maior problema não é o que está diante das câmeras, mas sim por trás delas. “Não dá para dissociar o cinema e a TV da sociedade. Se a sociedade brasileira é racista, homofóbica e cheia de preconceitos, isso se reflete no audiovisual. O mais grave é que não temos diretores e roteiristas negros, sejam homens ou mulheres. Eles são os responsáveis por escolher quem vai interpretar os papéis principais. E esse lugar de poder ainda não é exercido na TV brasileira. No cinema acontece, mas, mesmo assim, em raríssimas exceções. Após 130 anos do fim da escravidão, ainda não conseguimos produzir um grande número de roteiristas e diretores negros. Atores temos muitos, mas, infelizmente, ainda não estão nos grandes teatros. Sem contar que negar a existência do racismo é gravíssimo”, afirma.

Segundo dados da Agência Nacional do Cinema (Ancine) coletados a partir dos filmes lançados em 2016, 75,4% das produções foram dirigidas por homens brancos, 19,7% por mulheres brancas e 2,1% por homens negros. Nenhuma mulher negra aparece na estatística. No que diz respeito à equipe de produção, os números são similares e, na atuação, de 97 filmes de ficção analisados, 42,3% não têm nenhum ator ou atriz negros no elenco.


Oportunidade


Jeferson De destaca que um aspecto importante de seu filme é que, além de ele, que é negro, ser o diretor e roteirista (ao lado de Helio de La Peña), a maior parte do elenco também é negra, a trilha sonora foi criada por artistas negros, além de a técnica de som (Gabriela Cunha) e o diretor de fotografia (Cristiano Conceição) também serem afrodescendentes. “O Cristiano, por exemplo, sempre atuou como primeiro assistente de profissionais de renome nacional e internacional. É a primeira vez que ele assume a chefia da fotografia. E não é por falta de talento, mas de oportunidade. Assim como o Aílton Graça, que é o nosso ator principal, e nunca foi protagonista. Em Correndo atrás, o homem branco heterossexual adulto é minoria. Acho que é a primeira vez que isso acontece em uma produção cinematográfica brasileira. E não é uma segregação, até porque temos atores brancos no filme, como o Tonico Pereira e a Nicole Bahls”, diz o cineasta, que dirigiu o premiado Bróder e escreveu o Dogma Feijoada (movimento que no ano 2000 produziu filmes centrados na temática racial e buscou desenvolver um conceito de cinema negro brasileiro).

Correndo atrás teve a maior parte de suas cenas filmadas em Muriaé, na Zona da Mata mineira, e ainda conta com Juliana Alves, Lázaro Ramos, Lellêzinha e Juan Paiva no elenco. Na história, Ventania (Aílton Graça) faz vários bicos para conseguir pagar as contas, mas a grana está cada vez mais curta. Decidido a mudar de vida, ele resolve se tornar empresário de futebol e o primeiro passo é descobrir um novo talento. Para isso, vai precisar da ajuda de amigos que não querem nem vê-lo por perto, já que Ventania tem dívidas com todos. Até que Glanderson (Juan Paiva) cruza o seu caminho e surge a esperança de um grande sucesso.

“O filme foi exibido no Pan African Film Festival, em Los Angeles, que é a maior e mais prestigiada mostra de arte e de cinema negro das Américas, e vai ser exibido na semana que vem no New York African Film Festival. O mais bacana foi ouvir que a imagem que eles têm do negro brasileiro é sempre associada ao crime e às drogas,  como vemos em Cidade de Deus e Tropa de elite e que, em Correndo atrás, ele viram um outro lado, o da alegria. É esse o tema da produção. De onde vem essa alegria, esse desejo de correr atrás sempre, de não desistir nunca do brasileiro e do negro brasileiro”, frisa Jeferson, que já trabalha numa sequência e na criação da primeira associação nacional de profissionais do audiovisual negros.

Axé é música de fundo da trama


A ideia de um recomeço é o que norteia Segundo sol. Do mesmo autor de Avenida Brasil, João Emanuel Carneiro, e com direção artística e geral de Dennis Carvalho, a novela conta a saga de Luzia (Giovanna Antonelli), que vai em busca de sua nova chance, de seu segundo sol. Mulher simples e batalhadora, ela terá a vida virada do avesso após se apaixonar pelo cantor de axé Beto Falcão (Emilio Dantas). No decorrer da trama, Luzia percorre uma longa jornada para reescrever sua história e reunir a família, despedaçada por uma série de armações de Karola (Deborah Secco), namorada de Beto, e Laureta (Adriana Esteves), figura poderosa da cena noturna de Salvador.

“O que mais me atraiu foi a humanidade e a intensidade dela. Luzia não é uma mocinha; é uma mulher que passa por histórias que vão fazer com que ela se transforme. Acho que tem muito amor na forma como o João construiu a trajetória dela. É uma mulher que sofre muito, mas que tem esperança. Acredito que haverá uma identificação com as mulheres. A Luzia poderia ser qualquer uma de nós”, afirma Giovanna, que está em sua terceira novela com João Emanuel.

A atriz elogia a história por dosar drama e ação de uma maneira muito bem conduzida. “Todas as tramas são tão potentes e cada uma com suas questões latentes, bem definidas, que todos os atores têm um sentimento coletivo por essa novela. João está inspiradíssimo”, afirma.

Seu par romântico na novela, Emílio Dantas, que vive o cantor Beto Falcão, conta que a música sempre mexeu com ele e que, aos 15 anos, chegou até a ter uma banda. “Quando o João Emanuel me chamou, ele não precisou falar muita coisa. Ele disse: ‘Tem um cantor de axé aqui’. Eu só falei ‘eu quero’”, conta. Emílio, que vem de um projeto intenso, o traficante Rubinho, de A força do querer, diz que é natural que as pessoas acabem de ver um trabalho e estejam com essa figura na mente ainda, mas que, agora, é a vez de Beto. “Assim como eu me envolvi com ele, espero que o público também se envolva.”

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