Foi Raduan Nassar quem, de certa forma, fez a ponte. O romancista amazonense Milton Hatoum, de 64 anos, lembra as oito horas que passou com o escritor paulista e o diretor carioca Luiz Fernando Carvalho assistindo ao copião de Lavoura arcaica (2001). Conversaram sobre a adaptação cinematográfica da obra de Nassar que Carvalho havia realizado.
Essa troca com Nassar já havia sido realizada outras vezes. Foi ele um dos primeiros a ler o manuscrito do romance Dois irmãos (Companhia das Letras, 2000), sugerindo a mudança que Hatoum acatou prontamente. Quando a roteirista Maria Camargo se interessou em adaptar o livro e, mais tarde, Carvalho entrou na jogada, Hatoum sabia que sua história estava em boas mãos. A minissérie em 10 episódios, que estreia nesta noite na Globo, depois de A lei do amor, é um projeto almejado pelos principais envolvidos (autor, diretor e roteirista) há mais de uma década.
''O mais importante é o diálogo entre as linguagens. Acho adaptação uma expressão muito pobre, limitada. Usando a palavra de que os concretos gostavam, é uma transcriação.
''O desafio de qualquer escritor é transformar uma questão local em algo universal. Aconteceu com Machado de Assis no Rio de Janeiro, muito provinciano em sua época. O extremo disso é Grande sertão: veredas, o romance mais regional, mais universal e mais ousado de toda a literatura de língua portuguesa. Não adianta você morar em Nova York, São Paulo ou Londres e escrever um romance que não problematize as relações humanas. Você tem que partir do pequeno que se torna grande'', diz Hatoum.
ALFORRIA
Dois irmãos também significou uma ruptura para seu autor. O livro foi concebido entre o fim de um casamento, a mudança da cidade natal e a saída de um emprego estável. Foi também a obra que fez de Hatoum escritor em tempo integral. ''A ideia vinha de muito longe, desde a época em que li Esaú e Jacó (Machado de Assis, 1904). Na época, pensava muito no Amazonas e no Brasil, na relação entre Norte e Sul.
A escrita de Hatoum é concisa e polifônica. Para Wander Melo Miranda, professor de teoria da literatura da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a originalidade do romancista amazonense ''reside em fazer com que pequenas coisas, retiradas do esquecimento, se coagulem em torno de certos eventos traumáticos até que se revelem uma significação inesperada''.
Hatoum escreve muito, diariamente. Sempre a mão, utilizando papel e caneta. O manuscrito de Dois irmãos foi impresso 16 vezes. ''Corrijo até não poder mais. Depois de pronto, não leio mais o livro. Se ler, vou ficar deprimido, querer mudar alguma coisa.''
Mesmo escrevendo muito, ele publica pouco.
Hatoum diz que sua literatura é muito autobiográfica. Dois irmãos, entretanto, é o livro menos calcado em sua própria trajetória, mesmo que ele seja descendente de libaneses (assim como os irmãos Omar e Yaqub) nascido em Manaus. ''O que o livro traz é o ambiente cultural da imigração libanesa, mas no sentido histórico'', observa.
Nesse ponto, o escritor faz um parêntese e relembra detalhes de sua própria origem. O avô paterno de Hatoum foi do Líbano para o Acre na virada do século 20, na época da Revolução Acreana – a disputa entre Bolívia e Brasil pela posse definitiva da região. Viveu nove anos no Norte do país até voltar para Beirute.
Ouvindo suas histórias, o filho, já adulto, resolveu refazer o caminho do pai, desembarcando no Brasil. Chamavam-lhe a atenção as histórias dos imigrantes que viviam em Manaus e sempre almoçavam na pensão Biblos. Não por acaso, é ali que Halim e Zana, os pais dos personagens Omar e Yaqub, se apaixonam.
ADAPTAÇÕES
Dois irmãos segue a tradição de adaptação de livros para a TV. Apenas na Globo, foram cerca de 200 produções baseadas em obras literárias desde a década de 1960. Luiz Fernando Carvalho assinou Os Maias (2001, de Eça de Queirós), A pedra do reino (2007, de Ariano Suassuna) e Capitu (2008, de Dom Casmurro, de Machado de Assis). A minissérie que estreia hoje não é a primeira adaptação – ou ''reinvenção'', como prefere Milton Hatoum – de Dois irmãos. O romance teve uma versão para teatro – em 2008, com direção de Roberto Lage – e outra em HQ – de
Gabriel Sá e Fábio Moon, lançada em 2015.