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Luke Cage surgiu nos quadrinhos da Marvel em 1972, quase 10 anos depois da marcha pelos direitos civis liderada por Martin Luther King num país em convulsão social e racial. Foi o primeiro personagem negro a ganhar uma revista própria na editora, representação rara em toda história dos quadrinhos, que, assim como outras mídias, sempre foi dominada por homens brancos, delegando papéis secundários às mulheres, quando não centrais, mas hipersexualizados, ou estereotipando as minorias étnicas sempre em papéis menores.
O Luke Cage apresentado pela Netflix traz o blaxploitation para a contemporaneidade sem o humor característico dessas produções, mas apresenta às novas gerações uma série que traz para o centro a temática negra, com o herói lidando com problemas que afetam a comunidade – a história se passa no tradicional bairro negro do Harlem, em Nova York –, como violência policial, tráfico de drogas, preconceito e gangues.
Reforçando a conexão urbana, o hip-hop está muito presente tanto na narrativa quanto na trilha sonora, que traz o clássico Bring da ruckus, do grupo Wu Tang Clan, em uma das cenas mais “físicas”. As referências ao rap são várias. Um dos “vilões” da história, chamado Cottonmouth e interpretado por Mahersehala Ali, tem em sua sala a famosa foto do rapper Notorious B.I.G ostentando uma coroa. Há aí simbologia inerente ao próprio personagem, que pode ser interpretada como a luta dos negros por reconhecimento e poder em uma sociedade racista. Também remete a como esse poder e reconhecimento estão fortemente associados ao dinheiro no maior país capitalista do mundo.
ABUSO Com algumas exceções, que realmente resvalam no maniqueísmo bem simplista, os personagens que cumprem a função de antagonistas do herói Cage são muito bem construídos, como é o caso da vereadora Black Mariah (Alfre Woodard). Questões como abuso, posicionamento social e restrições de oportunidades sofridas pela comunidade negra dão substância e complexidade à personalidade de cada um deles, tornando-os peças importantes para uma reflexão maior.
Luke Cage (Mike Colter), por sua vez, traz à tona a realidade vivida pelos afro-americanos. Apesar da pele invulnerável, ele não é imune ao sistema judicial seletivo, à perseguição policial e à facilidade com que vê a violência e o crime atingirem seus pares mais jovens, para os quais tenta ser uma espécie de referência. Nessas situações, Cage é tão humano quanto qualquer um. Aliás, a invulnerabilidade chega a ser irônica, porque o homem à prova de balas continua à mercê da falta de oportunidades e das injustiças. Em vários momentos, sua força se mostra impotente para frear os abusos policiais na comunidade do Harlem.
A fala da investigadora Misty Knight (Simone Cook) diz muito sobre o que a produção entrega: “Ele é indestrutível, mas ainda assim um negro perseguido pela polícia”. O maior poder de Luke Cage, na prática, é a representatividade do herói negro e urbano que vive de perto problemas de pessoas comuns. Em busca de espaço, luta por poder por parte de quem nunca o teve, remetendo a referências como Luther King, Malcolm X e outros nomes menos conhecidos.
INVISÍVEL Cage é o herói necessário, símbolo importante neste mundo em que situações que afligem negros e negras ainda são invisíveis, assim como são invisíveis e quase inexistentes os negros na mídia. Vale ressaltar: a série trata de um super-herói, mas esse aspecto não é o principal, o que chama a atenção por conseguir se aproximar de dilemas reais, colocando Cage como um símbolo. É uma série para quem se identifica com tais questões. Pode trazer certa decepção para aqueles que procuram por tradução live-action do universo fantástico das HQs.
Cage não é o tradicional super-herói de lycra, com uniforme colorido. Lida com problemas que atingem pessoas comuns, talvez mais difíceis de enfrentar do que aqueles que mobilizam os heróis da Marvel no cinema, pelo grau de complexidade dos desafios. Eles não podem ser resolvidos pela força bruta, mesmo que muitos deles venham da violência de quem detém o poder.
*Roger Deff é rapper e jornalista
Rap na veia
Elemento fundamental da arte negra dos Estados Unidos, a música é o ponto alto na série. Cada episódio traz no título o nome de um rap do grupo Gang Starr, formado por Guru e DJ Premiere, destaque do hip-hop na década de 1990. Além disso, Method Man, do Wu Tang Clan, escreveu a canção Bulletproof love especialmente para a série.
Além dos raps cuidadosamente escolhidos (só faltou Notorious B.I.G), a trilha conta com Donald Byrd, Charles Bradley, Miles Davis e Delfonics – alguns deles fazem aparições ao longo dos episódios. O elenco traz também a brasileira Sônia Braga (como Soledad Templo), Frank Ekaley, no papel do policial Rafael Scarface, e Theo Rossi, como Shades.