“Queremos deixá-la respirar um pouco.” Este é Ted Sarandos, diretor de conteúdo da Netflix, explicando por que ainda não houve um anúncio sobre a segunda temporada de Stranger things.
Há alguma razão na fala dele. Em apenas duas semanas – 17 dias, para ser mais exata – a cultura pop foi dominada pela série. A história do desaparecimento de um garoto numa pequena cidade norte-americana em 1983 virou febre desde que seus oito episódios foram lançados, no dia 15 deste mês. Então, a hora é de deixá-la seguir seu caminho sozinha.
Bem, não exatamente sozinha. É o bom e velho boca a boca (só que na versão 2.0, das redes sociais, com comparações, vídeos, memes, análises e o que mais a criatividade permitir) funcionando em escala mundial que fez com que Stranger things fizesse tanto buzz na internet.
A produção tem muitos méritos, mesmo que venha decalcada de um sem-número de filmes e séries produzidos nos anos 1980. A própria Netflix apresentou a série como uma “carta de amor aos clássicos do sobrenatural que cativaram gerações”. Os criadores da série, os gêmeos Matt e Ross Duffer, nascidos em 1984, são fãs confessos da ficção científica do período.
A lista de referências é enorme, e ninguém precisa ser expert em anos 1980 para fazer a ponte. Para quem ainda não foi dominado pela febre, Stranger things tem uma premissa muito simples. Amigos nerds da pequena Hawkins, Indiana, os pré-adolescentes Mike (Finn Wolfhard), Dustin (Gaten Matarazzo), Lucas (Caleb McLaughlin) e Will (Noah Schnapp) podem passar até 10 horas jogando RPG. O ponto de encontro é o porão da casa de Mike. Comunicam-se com walkie-talkies, conversam sobre as novidades dos quadrinhos (são superfãs de X-Men) e, bem, aficionados por Star wars.
SUMIÇO
Numa noite, depois de uma longa partida de Dungeons & dragons, Dustin, Lucas e Will partem, cada um em sua bicicleta, para casa. Sozinho em casa, Will presencia algo sobrenatural e desaparece. O sumiço do garoto numa cidade pequena é apenas o começo de várias ocorrências para lá de estranhas. A maior delas é o aparecimento de uma menina, de nome Eleven (Millie Bobby Brown). De aparência andrógina, cabeça quase raspada e sem muitas referências do mundo externo, ela vai parar na casa de Mike. Logo surpreende os meninos com poderes paranormais (é capaz de fazer um carro voar).
Este é o núcleo jovem da série. No adulto, há uma mãe solteira desesperada (Winona Ryder, ícone da geração 80, faz a mãe de Will), um estranho cientista de cabelos brancos (Matthew Modine, outro ator que teve sua glória naquela década) e um delegado bebum mas gente boa (David Harbour). Há ainda o núcleo adolescente, com seus clichês: a menina estudiosa, o garotão boa-vida, a periguete, o outsider.
Enfim, é uma receita já vista de várias maneiras pelo cinema e pela TV (confira algumas referências nesta página). O maior mérito de Stranger things é conseguir empatia com o público (e isso vale tanto para teens quanto para quarentões) por meio de um elenco fantástico (o gordinho Dustin já virou o queridinho dos fãs da série). O sentimento de nostalgia é imediato.
Mais: a série é curta e é para ser vista de uma só vez. Algo bem mais leve do que o exagero de personagens e sangue de Game of thrones e o mundo sem escrúpulos de House of cards, só para citar algumas das produções mais faladas da atualidade.
Quanto à segunda temporada, ela obviamente virá. O caminho, para quem já assistiu à série, fica bem aberto nas cenas finais. Resta saber se o ano dois de Stranger things será no mesmo cenário, já que no universo sci-fi tudo é permitido.
COLCHA DE RETALHOS
Veja como Stranger things compõe seu mix de influências
A música
Should I stay or should I go, do Clash, é a canção mais importante da trama, que vai servir como ponte entre Will e sua família. A trilha é recheada de hits oitentistas: tem os alternativos do período (Echo & the Bunnymen, Joy Division), rock farofa (Foreigner e Toto) e versões para canções icônicas (atenção para a gravação de Peter Gabriel para Heroes, de David Bowie). Cada episódio termina com uma canção da época. Já o tema de abertura é minimalista, na linha de Arquivo X.
As referências
Pôsteres de filmes são vários: Uma noite alucinante (1983), terror trash de Sam Raimi, por exemplo, está pregado na parede da casa de Will. Poltergeist (1982), além de ser uma referência explícita na parte sobrenatural, também é citado no primeiro episódio, quando Joyce (papel de Winona Ryder) surpreende o filho com um ingresso para o filme. O enigma de outro mundo (1982), de John Carpenter, é o filme a que o professor de ciência dos meninos está assistindo quando eles ligam para ele. E Mike, como vários garotos da época, tem um boneco de Yoda, de O império contra-ataca.
Os filmes
E.T. O extraterreste (1982), de Steven Spielberg, clássico maior do período, é também a maior referência quando se fala em Stranger things. Isso porque os protagonistas são crianças que não vivem sem uma bicicleta, há uma garota que vem de outro mundo (e uma cena de Eleven vendo TV pela primeira vez é muito semelhante à do E.T. também em frente à telinha). Para os mais atentos, até o uniforme dos funcionários da usina de energia é semelhante ao do filme de Spielberg. Outros filmes protagonizados por um grupo de garotos são ‘citados’ em Stranger things: Os Goonies (1985), que tem um personagem gordinho muito parecido com Dustin, e Conta comigo (1986). O monstro da série é bastante calcado no de Alien (1979).
BACK TO THE 80’S
Confira outras produções que prestam homenagem aos anos 1980
The Americans (FX)
Espiões soviéticos vivendo nos Estados Unidos da era Reagan como uma família tipicamente americana dos anos 1980. The Americans, estrelada por Keri Russell e Matthew Rhys, já teve quatro temporadas e vai até a sexta, confirmada para 2018. A série tira aquele ranço das produções da época de americanos contra soviéticos. Ninguém é totalmente bom ou ruim, e cada parte tem sua própria razão (e moral). O casal (que tem dois filhos) vive num dilema. Ele quer desertar e viver como um americano; ela não quer nem ouvir falar nisso, sua fidelidade à KGB está acima de tudo. E vale tudo no serviço secreto: matar, trair, sequestrar.
Halt and catch fire (AMC Brasil)
O título foi tirado de um comando que teria sido usado pela IBM para parar o processamento das CPUs. Nos anos 1980, houve a grande corrida pela chamada computação pessoal. A série, cuja terceira temporada tem início no mês que vem nos EUA, começa justamente nesse ponto. Em 1983, em Austin, Texas, os protagonistas estão envolvidos na construção de um computador pessoal. Eles trabalham para a fictícia Cardiff Eletric, concorrente direta da Dell. O que todo o mundo quer é desbancar a IBM, a todo-poderosa da época. Kraftwerk na trilha sonora é quase obrigatório.
The Goldbergs (Comedy Central)
Adam Goldberg, o criador do sitcom, foi um adolescente típico dos anos 1980. Pois o produtor e escritor criou uma história inspirada em sua própria família. Pai, mãe, três irmãos e um avô, todos meio maluquetes, que conseguem conviver a despeito das loucuras. Como Adam, um nerd assumido na adolescência, filmou sua própria família na época, cada episódio termina com um trecho dessas imagens antigas. Nos EUA, a quarta temporada estreia em setembro.
Wet hot american summer: First day of camp (Netflix)
O elenco reúne Bradley Cooper, Josh Charles, Paul Rudd, Amy Poehler, Janeane Garofalo, entre vários outros. Série derivada do longa-metragem do filme homônimo lançado em 2001 (no Brasil chamado Mais um verão americano), que parodia as comédias teen com apelo sexual (Porky’s e afins). No início dos anos 1980, num acampamento de verão (uma instituição nos EUA), encontram-se todos os estereótipos possíveis: o gay enrustido, a jovem sonhadora e inocente, o pegador de caráter duvidoso, o veterano de guerra amalucado e por aí vai. A segunda temporada está prometida para o ano que vem.