O gaslighting seria um dano, abuso "leve" principalmente contra a mulher em uma medicina que para muitos continua sendo machista. Será?
Acredito que precisamos tentar conceituar bem para podermos entender e concordar ou não com este novo vocabulário e com a forma que vem sendo introduzido na mídia sem nehuma "ciência" envolvida até o momento.
O abuso é uma relação onde existe violência/abuso verbal, emocional, psicológica, física, sexual, financeira e/ou tecnológica. Normalmente, como há diferença de poder, é comum perder o limiar do que é aceitável ou não em função das demandas de um outro que a tudo comanda.
Já o descrédito consiste em diminuir o valor de alguém, desmerecendo.
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O termo gaslighting tem sido usado recentemente como uma violência psicológica sutil que causa instabilidade emocional, apesar de não ter essa exata conotação quando olhamos a forma como vinha sendo utilizado desde 1960, que descrevia a manipulação do sentido de realidade de alguém, uma forma de abuso psicológico na qual informações são distorcidas, seletivamente omitidas para favorecer o abusador ou simplesmente inventadas com a intenção de fazer a vítima duvidar de sua própria memória, percepção e sanidade.
O termo deve a sua origem à peça teatral Gas Light e às suas adaptações para o cinema, quando então a palavra se popularizou.
A peça teatral Gas Light, de 1938, e suas adaptações para o cinema, lançadas em 1940 e 1944, motivaram a origem do termo por causa da manipulação psicológica sistemática utilizada pelo personagem principal contra uma vítima.
No filme, o marido da protagonista constantemente aumenta e diminui as luzes dos lampiões a gás que iluminam a casa, enquanto vai escondido ao sótão buscar objetos de valor. Quando a mulher questiona a alternância da luz, o marido insiste que não houve mudança nenhuma e afirma que ela está imaginando coisas. O marido invalida as percepções da esposa, e a faz duvidar da própria sanidade.
Essa manipulação psicológica em relacionamentos pessoais e profissionais tem sido trazida para a relação médico-paciente, onde o abuso representado pelo gaslighting ocorre quando as pacientes são questionadas de maneira exaustiva pelo médico, ou quando algum sintoma que apresente acaba sendo subvalorizado/ignorado durante a anamnese, consulta ou tratamento.
Percebo muito mais uma omissão decorrente do despreparo da formação do médico ou da dificuldade em achar médicos que queiram ou consigam realmente honrar o juramento realizado na formatura de medicina.
Essa omissão, dependendo do caso, pode ser muito bem enquadrada em erro médico se apresentar um contexto de negligência, imprudência ou imperícia.
Algumas pesquisas mostram que erros de diagnóstico médico podem acontecer em uma de cada sete consultas, sendo a maioria dessas falhas causada por falta de conhecimento do profissional.
Embora não seja uma justificativa, estamos diante de um ciclo vicioso, pois os médico também têm sido vítimas do gaslighting, uma vez que, ao receberem o diagnóstico de burnout (distúrbio emocional com sintomas de exaustão extrema, estresse e esgotamento físico resultante de situações de trabalho desgastante, que demandam muita competitividade ou responsabilidade), sem reconhecer a causa do seu sofrimento, seria na verdade uma espécie de gaslighting.
Seria o burnout médico uma consequência do gaslighting da saúde?
No contexto da saúde, essa transgressão é causada pela necessidade de realizar a impossível tarefa de satisfazer o paciente, o hospital, a seguradora e a nós mesmos de uma só vez.
Anos de formação acadêmica e capacitação árduas aumentaram a resiliência do médico que se tornou um cabo de guerra que está sendo puxado para todos os lados, com dificuldades de prestar o melhor atendimento ao paciente, que é ao que dedicamos as nossas vidas.
A medicina é uma das muitas áreas do conhecimento ligada à manutenção e restauração da saúde. Ela trabalha, num sentido amplo, com a prevenção e cura das doenças humanas num contexto médico.
Nesse sentido ela deve ser assexuada, não priorizando o homem ou a mulher, apesar da história mostrar uma realidade diferente.
Durante milênios, as mulheres foram consideradas seres cuja mente, corpo e fluidos seriam regidos por fenômenos sobrenaturais, não tendo conexão alguma com a fisiologia.
Doenças do aparelho reprodutivo eram creditadas a castigos e muitas alterações emocionais creditadas a entidades demoníacas pela igreja católica.
Histeria na Grécia antiga, termo que vem de hystero (útero), também foi creditado à mulher.
A medicina demorou muito a enxergar o organismo feminino pelo mesmo prisma científico que o organismo masculino, mas isso definitivamente ficou no passado na minha opnião, e discordo da mídia que levanta a bandeira contra o gaslighting, e contra a masculinização da medicina.
Essa relação me chamou a atenção em relação a endometriose, me forçando a estudar sobre o assunto e decidir em escrever este artigo. A endometriose é uma doença enigmática sabidamente de diagnóstico difícil decorrente da banalização e normalização dos sintomas por parte dos médicos e das pacientes, explicando o atraso diagnóstico em até dez anos no Brasil e no mundo.
Tenho certeza sobre o que isso representa a curto e longo prazo, e temos que estar vigilantes, não utilizando expressões do tipo "você está estressada", "isso é psicológico", "isso é normal", "você não vai conseguir engravidar", "você precisa conviver com a dor", pois podem gerar circunstâncias que configuram um descrédito e levar a um dano.
Existe dificuldade do médico numa avaliação solitária e subjetiva da paciente, onde surge um cenário no qual cada paciente é único, com suas caracteríticas nos aspectos físico e emocional. No meio de tantos recursos tecnológicos e condutas recomendadas, qual escolher e, por fim, qual postura adotar dentro de sua experiência, convicções e conhecimento?
A boa prática médica é aquela em que o médico, dentro do seu universo de possbibilidades, respeita o indivíduo, lhe esclarece as variáveis e os cenários mais prováveis.
É fundamental relatar em prontuário as queixas, os exames solicitados, os medicamentos prescritos e a hipótese diagnóstica, porque, se no futuro, esse atendimento vier a ser questionado, estará documentada a atenção que foi direcionada à paciente durante o atendimento.
Quando os médicos deixam de ouvir os pacientes e de entender suas circunstâncias únicas, correm o risco de perder oportunidades diagnósticas e terapêuticas importantes e serem culpados em estar fazendo o gaslight.
Apesar de ser a terceira geração de ginecologistas e obstetras, escolhi essa área por ter nos pilares básicos da saúde da mulher não só a prevenção contra os principais cânceres ginecológicos, mas o planejamento familiar, o planejamento pré concepcional e pré natal, educação continuada sobre ISTs, sexualidade e busca constante pela qualidade de vida, em especial na pós menopausa.
Além disso, os avanços da cirurgia ginecológica, assim como os avanços na reprodução humana, são suficientes para condenarmos as pessoas que falam de uma masculinização da medicina, pois os homens não têm nada que se assemelhe a isso após sair da infância.
A medicina já foi uma área de médicos, mas vem sofrendo mudanças visíveis deste perfil nas faculdades e residências médicas e em breve as mulheres serão maioria no cenário nacional e, mais do que nunca, responsáveis em mostrar que a medicina é assexuada e não deveria ter raça e nem classe social.
*Gustavo Safe é diretor do grupo formado pelo Centro Avançado em Endometriose e preservação da fertilidade, Ovular fertilidade e menopausa e Instituto Safe. Estudioso dos assuntos relacionados à saúde da mulher com enfoque na ginecologia integral e funcional, no câncer, na dor pélvica, infertilidade, preservação da fertilidade, endometriose, endoscopia ginecológica e cirurgias minimamente invasivas.
Se você tem dúvidas ou quer sugerir tema para a coluna, envie e-mail para gustavo_safe@yahoo.com.