Toda mulher irá apresentar pelo menos um episódio de ITU (infecção do trato urinário) ao longo da vida, podendo ser considerado como normal a ocorrência de até um episódio ao ano.
O aparelho urinário apresenta um dualidade entre sintomas, diagnósticos e tratamentos muitas vezes simples e muitas vezes complexos.
Foi necessário nesta última semana uma celebridade, a cantora Anitta, ser diagnosticada com endometriose para a mídia se mobilizar e discutir sobre a necessidade de conscientização sobre uma doença que não perdoa raça, cor e classe social com um atraso diagnóstico de 8 a 12 anos no Brasil e no Mundo.
“Anitta disse que sofria do problema há quase 9 anos e que acreditava sofrer de um quadro de cistite recorrente, uma infecção que acomete a bexiga e uretra provocada por uma bactéria, mas que os exames não indicavam a presença de microrganismos na região”.
A bexiga é um órgão flexível, de paredes musculares, localizado na pelve cuja principal função é armazenar a urina que é produzida pelos rins e conduzida até ela através dos ureteres antes de ser eliminada do corpo.
A relação anatômica (proximidade) da uretra com a vagina e com o ânus pode explicar porque uma mulher sexualmente ativa apresenta uma incidência maior de infecção urinária (colonização da bexiga por bactérias de forma ascendente através da uretra), mas não justifica uma banalização dos sintomas como acontece frequentemente.
A disúria em mulheres representa 2-5% dos motivos de consultas médicas e em 60 a 80% das vezes vai ter a presença de uma bactéria, apesar de poder ocorrer infecção assintomática.
A bacteriúria assintomática não é normalmente tratada porque a erradicação das bactérias pode ser difícil e as complicações são normalmente raras.
Além disso, o uso de antibióticos pode alterar o equilíbrio de bactérias no organismo (sangue), algumas vezes permitindo que surjam bactérias mais resistentes (difíceis de eliminar) .
Mulheres com sintomas urinários (dor, ardor, frequência, urgência, incontinência, retenção e esvaziamento incompleto) com cultura de urina negativa precisam buscar outras causas para o problema e não se acomodarem e banalizarem os sintomas.
Essa normalização e banalização de alguns sintomas urinários que desafiam os médicos e especialistas dificultam o diagnóstico definitivo por não esgotarem todas as possibilidades e muitas vezes acabam classificando as pacientes como portadoras de síndrome da bexiga dolorosa (SBD).
A American Urological Association define SBD como a sensação desagradável (dor, pressão ou desconforto) percebida na região vesical e associada a sintomas do trato urinário inferior com mais de seis semanas de duração na ausência de infecção ou outra causa identificável.
A Sociedade Europeia para estudo da SBD/CI (ESSIC) sugeriu em 2008 esta nova nomenclatura e sistema de classificação, pois a dor é uma característica fundamental dessa condição. A ESSIC sugere que o diagnóstico seja feito em três etapas.
A primeira etapa é a seleção de pacientes que deve ter seu diagnóstico baseado na presença de dor pélvica crônica além de pressão, dor ou desconforto vesical e um ou mais sintomas como urgência urinária ou frequência miccional.
A queixa mais comum é de dor em hipogástrio (baixo ventre) associada a sintomas urinários irritativos: urgência, frequência, disúria e noctúria. Podem também estar presentes: dispareunia e dor na vagina.
A segunda etapa é a exclusão de outras doenças como carcinoma de bexiga, doenças infecciosas (infecção urinária, chlamydia trachomatis, micoplasma, herpes vírus, HPV), prolapsos, endometriose, candidíase vaginal, divertículo, câncer ginecológico, retenção urinária, dor relacionada ao nervo pudendo ou à musculatura do assoalho pélvico.
Isso deve ser realizado através da anamnese, exame físico, exame comum de urina, urocultura, volume residual pós miccional, cistoscopia e biópsia da bexiga, se necessário e exames de imagem.
A terceira etapa é a classificação da SBD que pode em alguns casos apresentar um quadro mais específico com critérios diagnósticos bem estabelecidos chamado de cistite intersticial (CI).
Não há um exame que sele o diagnóstico da cistite intersticial, mas ele pode ser realizado através dos resultados da somatória de exames como o aspecto clínico, o diário miccional, o índice de sintomas, a urodinâmica e a cistoscopia que apresenta glomerulações e/ou úlcera de Hunner.
As evidências histológicas positivas incluem infiltrado inflamatório e/ou tecido de granulação e/ou presença de mastócitos (detrusor mastocytosis) e/ou fibrose intrafascicular.
A cistite intersticial é uma doença crônica caracterizada pela irritação ou inflamação da parede da bexiga. Ela pode deixar cicatriz na bexiga, provocar um espessamento na sua parede, diminuindo a sua capacidade, associada a pontos de sangramento sendo sem dúvida uma importante causa de desconforto no baixo ventre em mulheres.
Frequentemente estas mulheres passam por diversos médicos e realizam vários exames antes que o diagnóstico correto seja identificado, causando grande ansiedade.
Como o diagnóstico da cistite intersticial é difícil de ser feito e inicialmente, na maioria dos casos, não é encontrado nenhum problema anatômico, sugere-se de forma errada que a causa seja emocional, sendo taxadas como estressadas e com desinteresse pelo ato sexual, gerando desajustes conjugais.
Essas pacientes podem passar a manifestar fadiga excessiva, depressão, desânimo para as atividades do cotidiano, insônia e sonolência diurna. Além disso, estas mulheres têm sérias dificuldades e desconfortos no trabalho, em viagens e nas relações familiares.
Em função de todo o processo inflamatório, a dor geralmente é mais severa quando a bexiga está repleta de urina e alivia, pelo menos parcialmente, com o esvaziamento vesical.
Essa condição leva a uma redução importante da qualidade de vida acometendo geralmente 90% das mulheres, brancas e com idade média de 40 anos.
A sua causa não é completamente conhecida e muitas teorias têm sido propostas como:
• Agressão da bexiga por substâncias tóxicas da urina.
• Doença autoimune (as células do próprio corpo lesam a bexiga).
• Defeito na permeabilidade da parede da bexiga.
A fisiopatologia (causa) desta doença envolve uma disfunção do epitélio urinário que passa a produzir glicosaminoglicanas (GAG) e proteoglicanas, formadoras do muco vesical, ineficientes. Esta falha na proteção do muco vesical ao urotélio propicia o contato direto das toxinas da urina com a parede vesical desencadeando a patologia.
Os sintomas normalmente são episódicos, com períodos de agudização e remissão, tornando-se mais intensos com a evolução da doença. A exacerbação da doença normalmente ocorre no período pré-menstrual.
Os sintomas podem piorar com estresse, relação sexual, menstruação e com a ingesta de determinados alimentos e bebidas ( bebida alcoólica, alimentos ácidos laranja, limão, abacaxi, café, chá preto, alimentos condimentados, bebidas gasosas.
Tratamentos conservadores incluem dieta anti-inflamatoria, suporte psicológico, medicamentos (Amitriptilina –antidepressivo, anti-histamínico, ciclosporina e pentosan polissulfato) com possibilidade de uso intravesical (DMSO, Pentosan polissulfato, BCG, Ácido hialurônico).
Tratamentos cirúrgicos incluem o uso do botox, da hidrodistensão, da derivação urinária, neuromodulação sacral e cistoplastia para aumento vesical.
Apesar de todos os tratamentos mencionados, eles não apresentam altos índices de resolução definitiva, sendo necessário individualizar a conduta conforme a evolução de cada caso.
Existe uma elevada associação entre CI, DIP (doença inflamatória pélvica) e ITU de repetição com endometriose.
A associação entre estas doenças e várias síndromes somáticas funcionais com a endometriose levou alguns autores (Wessely et al ) a questionarem este diagnóstico como se estivéssemos diante de um artefato da medicina, razão pela qua a endometriose deve ser encarada como uma doença sistêmica.
A endometriose acomete uma em cada 10 mulheres em idade fértil que podem apresentar sintomas específicos ou inespecíficos, inicialmente relacionados a variações hormonais que após se tornam constantes.
Como pudemos perceber, o desafio em realizar o diagnóstico de endometriose não é nada evidente, principalmente se o sistema acometido for o urinário.
Os principais sintomas de endometriose na bexiga são frequência e urgência com dor ou ardor ao urinar devido a bexiga estar cheia e raramente a presença de sangue na urina diferente do que muitos imaginam.
Um exame essencial para o diagnóstico de endometriose na bexiga é o ultrassom com a bexiga cheia. É importante também que este ultrassom seja realizado por um especialista em endometriose. Isso porque porque nem todos os profissionais da saúde sabem diagnosticar a endometriose com precisão, o que pode afetar o resultado.
O diagnóstico pode ser complementado pela ressonância nuclear magnética capaz de avaliar também toda a via urinária (uroressonância).
A cistoscopia ajuda no diagnóstico e na avaliação prévea da cirurgia.
Quando a área vesical do trígono da bexiga urinária fica inflamada, a condição médica é conhecida como Trigonite.
O trígono vesical é a região triangular da bexiga, que é ligada pelos orifícios ureterais e pelo esfíncter uretral. É uma região sensível lisa e plana e se a bexiga se enche, ela se expande também.
O termo trigonite refere-se às alterações metaplásicas que ocorrem no trígono vesical. Descrito pela primeira vez por Heyman, em 1905, o distúrbio é mais comum em mulheres jovens e, felizmente, possui prognóstico benigno.
As alterações metaplásicas escamosas do trígono vesical podem ser observadas em cerca de 40% das mulheres em idade fértil.
Em alguns casos temos achados histológicos de mullerianose (primeiramente descritas em 1966 por Clement and Young), onde células metaplásicas mullerianas são transformadas em células endometriais, desenvolvendo um tipo especial de endometrioses.
Caso você tenha dores pélvicas constantes com piora ao urinar, procure um ginecologista ou urologista e insista na pesquisa de endometriose.
A cirurgia é o tratamento de escolha no caso de endometriose das vias urinárias, mas só quem poderá fazer esta indicação é o médico, que deverá ter uma equipe multidiciplinar para fazer esta abordagem.
Caso não seja tratada, a endometriose na bexiga e nas vias urinárias pode comprometer o bom funcionamento e trazer problema irreversíveis.
Um deles é a necrose asséptica dos rins decorrente de uma obstrução ureteral silenciosa por endometriose - que, ao obstruir os ureteres, provoca dilatação com perda renal definitiva.
Gustavo Safe é diretor do grupo formado pelo Centro Avançado em Endometriose e preservação da fertilidade, Ovular fertilidade e menopausa e Instituto Safe. Estudioso dos assuntos relacionados à saúde da mulher com enfoque na ginecologia integral e funcional, câncer, dor pélvica, infertilidade.