Poucas áreas da ciência biomédica tiveram um crescimento tão rápido de conhecimento como aquela relacionada à microbiota intestinal (microrganismos que residem no trato gastrointestinal). Nas últimas duas décadas os olhos da ciência se voltaram para entender como nossas populações bacterianas comensais desempenhariam várias funções para nos ajudar a nos manter saudáveis.
Diante das inúmeras influencias no nosso metabolismo e funções fisiológicas, não foi nada surpreendente que os pesquisadores clínicos e laboratoriais passaram a examinar a possibilidade de associações entre a microbiota intestinal e várias doenças humanas. Inicialmente, por razões óbvias, o foco se voltou para analisar as associações entre a microbiota e as doenças gastrointestinais já pela presença de exemplos do efeito do microbiota intestinal alterado como nas infecções entéricas, doenças relacionadas ao Helicobacter pylori no estômago ou então pela colite pseudomembranosa uma diarreia grave causada por uma bactéria que pode ocorrer após o uso de antibióticos.
Na última década houve um progresso rápido e uma evolução constante de técnicas que tem permitido enumerar as várias bactérias intestinais, seus genes e produtos metabólicos. Diante disso várias associações entre a microbiota intestinal e um amplo espectro de doenças que vão de patologias neuropsiquiátricas, imunológicas e alérgicas vem sendo consideradas. Uma microbiota alterada, por exemplo, tem sido implicada com uma série de distúrbios aparentemente diversos que vão desde a doença de Parkinson e autismo, diabetes, asma e doença celíaca.
Em um espaço de tempo muito curto, portanto, a pesquisa da microbiota mudou do laboratório para a prática clínica, com o potencial em facilitar diagnósticos, prever prognósticos e orientar o tratamento gerando considerável interesse entre os investigadores e a indústria biomédica. Estima-se que existam 100 trilhões de micróbios que compõem nossa microbiota constituído por uma combinação de fungos, bactérias e vírus que residem no trato digestivo, principalmente no intestino grosso.
Os pesquisadores estimam a área total da superfície do intestino humano em 300 metros quadrados o que corresponderia a uma área maior do que uma quadra de tênis. O número de micróbios supera as das células humanas de 10 para um.
A microbiota intestinal humana é vital para a nutrição do hospedeiro, metabolismo, resistência a patógenos e função imunológica, e varia com a dieta, estilo de vida e ambiente. Juntos, o hospedeiro e a microbiota foram denominados um "supraorganismo" cujas atividades combinadas representam um alvo para a seleção natural e um condutor de respostas adaptativas. Esses trilhões de microrganismos que residem no trato gastrointestinal de humanos e outros mamíferos mantêm uma relação simbiótica com suas espécies hospedeiras, desempenhando um papel crítico participam de processos biológicos, como utilização de nutrientes, resistência a infecções, maturação do sistema imunológico e metabolismo do hospedeiro.
Dependendo do fornecimento de substratos adequados, as bactérias intestinais podem gerar metabólitos por exemplo, os derivados de ácido biliar, vitaminas e ácidos orgânicos (como ácidos graxos de cadeia ramificada e ácidos graxos de cadeia curta) que influenciam a fisiologia local e/ou sistêmica do hospedeiro. Apesar desses atributos benéficos, a microbiota intestinal também é um fator contribuinte em vários patologias infecciosas, metabólicas e imunomediadas, como infecções por Clostridium difficile e Campylobacter jejuni, doenças inflamatórias intestinais, câncer de cólon e fígado, obesidade e diabetes, desnutrição, doença cardiovascular, artrite autoimune, doença renal crônica, esclerose múltipla e alergias alimentares.
Modelos animais forneceram evidências de um papel causador da microbiota intestinal nessas doenças e foram usados com sucesso para elucidar os mecanismos pelos quais esses microrganismos influenciam os desfechos das doenças. Até que ponto a microbiota intestinal pode ser clinicamente relevante para doenças humanas não está bem estabelecida devido a limitações experimentais. No entanto, doenças com um papel estabelecido da microbiota em modelos animais estão frequentemente associadas a uma alteração da composição da microbiota intestinal em humanos, que é conhecida como disbiose.
Alguns padrões disbióticos, como redução da diversidade, florescimento de microrganismos patológicos e redução da produção de ácidos graxos de cadeia curta e/ ou bactérias com propriedades antiinflamatórias, ocorrem em muitas doenças e podem contribuir para patologias. Ainda permanecem questões não totalmente respondidas sobre as relações de causa e efeito. As informações obtidas na pesquisa básica levam a argumentos convincentes para o desenvolvimento de estratégias visando a modulação da microbiota intestinal e com a potencial reversão dos padrões disbióticos.
A ideia de mudar a microbiota humana para melhorar a saúde foi proposta há mais de um século e abrange um espectro de ferramentas terapêuticas que vai desde o transplante de toda uma microbiota fecal (popularmente chamado de transplante de fezes) até a introdução de microrganismos únicos ou combinações desses organismos (probióticos).
Outra ferramenta importante é o de prebiótico, que é o fornecimento de substratos para ajudar no crescimento dos microrganismos residentes para induzir mudanças composicionais ou metabólicas induzindo a proliferação de bactérias benéficas. Existem fortes razões para aumentar o fornecimento de substratos não digeríveis para fermentação bacteriana no trato gastrointestinal. Primeiro, a dieta ocidental moderna é muito mais baixa em carboidratos não digeríveis do que todas as dietas anteriores na história humana, potencialmente contribuindo para o aumento de doenças crônicas no estilo de vida.
Em segundo lugar, os produtos metabólicos finais que resultam da fermentação bacteriana no intestino mostram ter efeitos fisiológicos benéficos, com fortes implicações para a saúde. O conceito de prebiótico atual se refere a ingredientes alimentares não digeríveis ou substâncias que não são digeridos pela parte superior do trato gastrointestinal e estimulam o crescimento e/ou atividade de bactérias promotoras de saúde que colonizam o intestino grosso.
O transplante de microbiota fecal introduz as bactérias das fezes de uma pessoa saudável em um paciente com disbiose. Mais de 10.000 pacientes fazem transplante de microbiota fecal anualmente nos Estados Unidos para tratamento da infecção por Clostridium difficile, e mais de 300 ensaios clínicos estão estudando a sua utilização em outros tipos de disbiose.
Os ensaios clínicos que levaram à aprovação da FDA não tinham descrito nenhum evento adverso grave, nem transmissão de infecção. No entanto, quatro relatos de caso notificaram bacteremia por bactérias gram-negativos após transplante de microbiota fecal. Estes casos de bacteremia ocorreram em pacientes graves que apresentavam seja uma pneumonia associada à ventilação mecânica, doença de Crohn, megacólon tóxico e pneumonia por aspiração.
Obviamente esse tipo de transplante é um ato médico e é feito em serviços especializados que tem experiência com o procedimento e não pode ser feito por qualquer um, mas ainda assim apareceram relatos de pessoas fazendo transplante de microbiota fecal por conta própria, em casa, muitas vezes com destaque na mídia. Em outubro 2019 foi publicado um artigo no periódico New England Journal of Medicine descrevendo dois pacientes que receberam transplante de microbiota fecal em ensaios clínicos e que contraíram uma bactéria resistente a Escherichia coli de espectro ampliado produtoras de beta-lactamases e tiveram bacteremia, e um deles morreu.
Os dois pacientes tinham alto risco de bacteremia pois suas doenças de base comprometiam a permeabilidade intestinal sendo assim até mesmo o microbioma do próprio paciente poderia ter disseminado infecção na corrente sanguínea através do revestimento intestinal danificado. Outra fonte de vulnerabilidade poderia ter sido a seleção inadvertida de microrganismos resistentes por meio da profilaxia antimicrobiana logo antes do transplante. Os pesquisadores concluíram que os médicos e os pacientes deveriam considerar criteriosamente os riscos e benefícios do transplante de microbiota
fecal. Segundo Dr. Martin J. Blaser, médico da Rutgers University, nos EUA, que escreveu editorial que acompanha o estudo "Apesar da sua aparência inócua, seu aspecto desagradável e a possibilidade de fazer em casa, o transplante de microbiota fecal traz o risco de doenças infecciosas graves, que precisa ser levado a sério." Apesar destes relatos pontuais com alguns riscos com o transplante fecal, o processo de seleção de doadores de fezes é rigoroso e difícil, nos EUA existe um banco de fezes OpenBiome e de 2014 até 2018, dos 15.317 candidatos a doadores apenas 386 (3%) se qualificaram após passar por quatro estágios eliminatórios do processo. Portanto a experiência de selecionar doadores para os bancos de fezes é uma tarefa difícil para rastrear e encontrar doadores saudáveis.
Outra potencial estratégia para atuar na disbiose tem sido considerar o uso de probióticos e/ou prebióticos. A grande maioria dos estudos sobre probióticos, prebióticos e outras intervenções para modificar a microbiota humana entretanto, praticamente não relatam nenhum dado específico sobre possíveis danos. Existe uma forte crença sobre a segurança desses probióticos, devido à longa história de uso deles como ingredientes na comida.
Mas a grande questão é a enorme incerteza sobre a segurança dessas intervenções, em particular quando feitas em pacientes vulneráveis, como aqueles que são imunocomprometidos, pós-cirúrgicos, criticamente doentes ou idosos. Crianças criticamente doentes e hospitalizadas por muito tempo também são especialmente vulneráveis. O uso de probióticos, prebióticos e simbióticos é novo na avaliação terapêutica. Os probióticos e os prebióticos são considerados suplementos, não medicamentos, e, portanto, não costumam estar sujeitos ao mesmo nível de escrutínio que os produtos farmacêuticos.
Para tentar avaliar possibilidade de riscos, um estudo de meta-análise publicada no periódico Annals of Internal Medicine em 2018 incluiu 384 ensaios clínicos randomizados, incluindo 136 que inscreveram voluntários saudáveis e 248 com participantes que tinham pelo menos uma condição médica em estudo. Entre os ensaios dos participantes com condições médicas, 195 foram estudos ambulatoriais e 53 envolveram pacientes hospitalizados ou um ambiente de cuidados intensivos.
Segundo uma das autoras do estudo, Aïda Bafeta da Université Paris Descartes-Sorbonne Paris Cité, na França, ela mencionou que mesmo entre estudos que relataram malefícios, a maioria tinha feito de forma incompleta ou inadequada, levantando dúvidas sobre a confiança que poderiamos ter para concluir sobre a segurança dessas intervenções. Apenas 2% dos estudos relataram adequadamente todos os parâmetros recomendados nas diretrizes para notificação de danos, incluindo número de saída de participantes pelos danos, definição de eventos adversos (EAs), número de EAs, e o grau, tipo e gravidade dos eventos.
Os autores reforçaram ainda que os pesquisadores que estudam esse tema deveriam descrever claramente a incidência e a gravidade dos EAs relacionados a probióticos, prebióticos e simbióticos, particularmente quando são usados para tratar doenças graves, ou quando são usados por pacientes de alto risco como nos recém nascidos prematuros ou pessoas que estão recebendo ventilação mecânica ou estão gravemente doentes. Apesar disso mais de 28% não relatou nenhum dado relacionado a danos e mais de 37% não relatou resultados de segurança.
Oitenta por cento dos estudos não forneceram o número de EAs graves que ocorreram e se ocorreram. Em torno de 6% dos estudos relataram adequadamente os resultados de segurança em seus resultados, incluindo o número de saída de participantes por danos e número de EAs e as EAs graves. Apenas 2% dos estudos cobriram adequadamente a avaliação de danos em suas seções de materiais e métodos.
Em alguns dos ensaios clínicos e em relatos de casos foi descrito que os probióticos, por exemplo, estavam associados a uma ampla variedade de complicações de saúde, incluindo eventos gastrointestinais como diarreia, constipação, náusea ou dor abdominal, infecção respiratória, resposta imune inapropriada em indivíduos suscetíveis, atividades metabólicas deletérias e transferência gênica. Na meta-análise foi citado o estudo PROPATRIA publicado em 2008 que relatou uma maior taxa de mortalidade no grupo de tratamento com probióticos do que no grupo controle com placebo em pacientes com pancreatite aguda como um EA grave relacionado à modificação do microbioma.
Dr. Vince Young, professor de doenças infecciosas na University of Michigan Medical School (EUA), que estuda o assunto atribui que muitos pesquisadores que conduzem os estudos provavelmente acreditam que relatar danos seria desnecessário, porque os produtos geralmente se enquadram na designação da FDA de serem geralmente considerados seguros.
O uso desses produtos de modificação já tem superado em muito a pesquisa, mesmo que na realidade ainda existam poucos dados sobre a segurança, ou mesmo a eficácia, dessas intervenções. Na prática clínica muitas vezes os médicos sugerem que os pacientes usem probióticos para uma ampla variedade de condições, pois estão disponíveis sem prescrição, mas na verdade não temos dados suficientes sobre se a manipulação da microbiota é uma estratégia razoável ou não para muitas condições clínicas.
Muitos estudos provavelmente são prematuros, apontando associações entre composição de bactérias e condições de saúde, mas sem fornecer as informações suficientes de que equilibrar a microbiota realmente resolveria a condição médica subjacente. Sendo assim a microbiota mesmo sendo atualmente frequentemente responsabilizada por uma variedade de problemas de saúde, a sua modulação pode não ser a solução, além de não sabermos o impacto a longo prazo.
Após o resultado da meta-analise dos pesquisadores franceses de 2018, o Dr Young fez algumas reflexões e mostrou-se preocupado, pois algumas condições potencialmente influenciadas pela disbiose levam muito tempo para se desenvolver, como as doenças cardiovasculares, condições metabólicas, ou depressão e outras condições psiquiátricas. O Dr. Young enfatizou que ainda não dá para afirmar com certeza tanto sobre se existem malefícios graves reais com os prebióticos e probióticos, mas também ainda não se pode afirmar com certeza que são comprovadamente úteis, pois com o conhecimento vigente ainda não se sabe o suficiente sobre isso.
O mesmo professor levantou uma pergunta mais pertinente do que nunca, o de quanto ainda de pesquisa básica e ensaios clínicos ainda deveriam ser feitos antes de levar rotineiramente os probióticos, prebióticos e simbióticos como alternativa válida para uso em certas doenças associadas a disbiose.
Fica aqui então o questionamento de que nem tudo que inicialmente parece ser plausível se traduz em estratégias seguras e eficientes para resolução de certos problemas médicos incorporados como definitivos na pratica clínica. Na ciência ao longo da história já houve vários exemplos de situações onde boas ideias e linhas de pesquisas promissoras, no final das contas não se mostraram tão úteis assim e foram abandonadas.
Esse cenário ainda não é o caso no que diz respeito estudo da microbiota. As intervenções para corrigir a disbiose ainda não são a panaceia e ainda levará um tempo maior com complementação de novas pesquisas para se saber sua real relevância.
Esse cenário ainda não é o caso no que diz respeito estudo da microbiota. As intervenções para corrigir a disbiose ainda não são a panaceia e ainda levará um tempo maior com complementação de novas pesquisas para se saber sua real relevância.