A gordura na alimentação e as mudanças nos paradigmas

Novas informações da ciência enfatizam necessidade de abordagem mais pessoal e baseada em alimentos ao se recomendar os níveis de gordura total e saturada de uma dieta por indivíduo

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A eterna dúvida: gordura faz mal ou não? (foto: Flickr)

Entre diversas diferenças entre a ciência e a pseudociência uma das principais que usamos para ajudar a discriminar é a de que na ciência não existe dogmas.

Na pseudociência existe muito mais resistência em abandonar uma teoria, mesmo quando essa teoria é suplantada por teorias alternativas, e há resistência dos proponentes em reconhecer ou corrigir os problemas da própria teoria.

Já na ciência os pesquisadores tem como característica principal o ceticismo. Outra característica na ciência é a refutação, que significa que determinado resultado deve ter condições para poder ser refutado e isso é uma premissa científica muito importante. Em relação à ciência médica não é diferente e acaba que para o leigo parece ser incoerente que um dia as recomendações médicas se apoiem em certa recomendação para pouco tempo depois serem reajustados ou até mesmo modificados diante de novas evidências científicas. Mas na medicina ocorre assim mesmo, não existe verdade absoluta. Não podemos ficar presos a dogmas.

Para ilustrar essa situação, poderíamos encontrar vários exemplos. Mas hoje optei por exemplificar esse tema abordando um conceito ainda muito enraizado no senso comum das pessoas entre a relação do consumo de gordura saturada e o aumento do risco à saúde.

O crescimento das doenças cardiovasculares (DCV) como uma das principais causas de mortalidade nas últimas décadas, em particular a partir dos anos 1950, quando foi apontada pela ciência e criada a “hipótese dieta-coração”.

Baseada nessa hipótese, considerou-se que os supostos efeitos nocivos das gorduras alimentares (particularmente a gordura saturada) e o menor risco associado à dieta mediterrânea servia para explicar por que indivíduos nos EUA, norte da Europa e o Reino Unido eram mais propensos à doença cardiovascular. O estigma em relação ao consumo de gordura levou a aumento no consumo de carboidratos, mas com o tempo foi sendo demonstrado que a substituição de gordura por carboidrato não estava associada a menor risco de DCV e imagina-se que essa troca pode até estar associada ao aumento da mortalidade total observado nessas últimas décadas.

A associação entre o consumo dietético de gordura, principalmente a famosa gordura saturada de origem animal, e o risco cardiovascular ganhou importância a partir dos anos 1970. Sendo assim, desde então, tem sido um tema central dos objetivos das recomendações alimentares dos EUA, e por consequência no mundo todo, estabelecer nas diretrizes desenvolvidas pelas entidades de saúde governamentais a redução do consumo de gordura saturada.

As recomendações a partir dos anos 1980 passaram a ser de limitar o consumo da gordura saturada a no máximo 10% do total de calorias diárias como forma de ajudar a reduzir o risco de doença cardiovascular (DCV) Porém, em 2018, os Departamentos de Agricultura e o Serviço de Saúde dos EUA solicitaram que fossem feitos comentários públicos em resposta às seguintes pergunta: “Qual é a relação entre o consumo de gordura saturada (tipos e quantidades) e risco de DCV em adultos?

Diante dessa importante pergunta foi iniciada uma ampla revisão de toda a literatura científica publicada até o momento, examinando as evidências disponíveis sobre os efeitos das gorduras saturadas nos resultados de saúde, como os fatores de risco, e quais os mecanismos subjacentes aos desfechos cardiovasculares e metabólicos, com implicações para atualizar as diretrizes alimentares norte americanas e por consequência no restante do mundo.

Em uma importante revisão publicada recentemente em uma das mais prestigiadas revistas acadêmicas de cardiologia, a relação entre a gordura saturada da dieta e as doenças cardíacas foi estudada e resumida em várias revisões sistemáticas de estudos observacionais e ensaios clínicos randomizados. Em alguns tipos de estudos conhecidos como metanálises não foram encontradas evidências de que a redução no consumo de gordura saturada pudesse reduzir a incidência ou mortalidade por DCV, enquanto em outros foi descrito até um efeito benéfico leve mas significativo. Portanto, a base para recomendar consistentemente uma dieta de baixo teor de gordura saturada não está clara. 

Várias revisões sistemáticas de estudos coorte não demonstraram associação entre ingestão de gordura saturada e doença arterial coronariana ou mortalidade, e alguns até sugeriram menor risco de derrame cerebral com maior consumo de gordura saturada. Estes estudos foram realizados predominantemente em países de alta renda (EUA e Europa), mas poucos foram realizados em outras regiões do mundo. Em 2017 foi publicado na revista Lancet um grande e mais diversificado estudo sobre essa questão, o PURE (Estudo epidemiológico urbano rural prospectivo) com 135.000 pessoas, a maioria sem DCV, de 18 países em cinco continentes (80% dos países de baixa e média renda).

Esse estudo mostrou que o aumento do consumo de todos os tipos de gordura (saturada, monoinsaturada e poliinsaturada) com menor risco de morte e uma associação neutra com DCV.  Outra conclusão obtida pelo estudo PURE foi que o consumo mais alto de carboidratos na dieta, principalmente de carboidratos amiláceos e açúcar, estava associado a um maior risco de DCV e mortalidade.

Um novo estudo publicado agora em 2020 no British Medical Journal, com 195.658 participantes do Reino Unido acompanhados por 10,6 anos, também não encontrou evidências de que a ingestão de gordura estava associada à incidência de DCV. 

A maioria dos ensaios randomizados para avaliação do impacto do consumo de certos nutrientes em eventos clínicos tem sido de tamanho relativamente pequeno. Aqueles ensaios randomizados que passaram a compor a base de recomendações alimentares para as populações com recomendação para limitar a gordura saturada na dieta foram conduzidas há cerca de 40 a 50 anos mas apresentavam importantes falhas metodológicas.

No contexto das dietas contemporâneas, portanto, essas observações sugerem que há pouca necessidade de limitar ainda mais a ingestão de gordura total ou saturada na maioria das populações. Por outro lado, restringir ingestão de carboidratos, principalmente carboidratos refinados, pode ser mais relevante hoje para diminuir o risco de mortalidade em alguns indivíduos, por exemplo, aqueles com resistência à insulina e diabetes tipo 2.

Existe, portanto, um grande conjunto de informações que levanta questões sobre crenças convencionais sobre consumo de gorduras saturadas e impacto em resultados clínicos. Tomadas em conjunto, as evidências de tipos de estudos usando metodologias diferentes não têm dado suporte para afirmar que fazer restrições adicionais da gordura saturada da dieta reduzirá os eventos clínicos.
 
A obesidade e o diabetes mellitus tipo 2 são os principais contribuintes para o risco de DCV, e as evidências recentes sugerem que a dieta ideal para controle de peso e controle glicêmico depende em parte da "tolerância a carboidratos" do indivíduo, que por sua vez é determinada pela resistência à insulina e capacidade de secreção de insulina.

A tolerância a carboidratos também pode variar com o nível de exercício do indivíduo. Considerando que as dietas com baixo teor de gordura total e saturada podem ser ótimas para indivíduos tolerantes a carboidratos (ou seja, sensíveis à insulina), uma dieta com menos carboidratos e mais rica em fibras e gorduras parece ser ideal para pacientes com diabetes tipo 2.

Novas informações da literatura científica enfatizam a necessidade de uma abordagem mais personalizada e baseada em alimentos ao se recomendar os níveis de gordura total e saturada de uma dieta para um indivíduo com suas especificidades.

Apesar de muitas décadas de pesquisa nutricional em seres humanos e modelos animais, a comunidade científica ainda não chegou a um consenso sobre "a dieta única que sirva igual para todos” que leve a saúde metabólica ideal para todo mundo. Os resultados altamente heterogêneos dos estudos de intervenção de dieta sugerem que alguns indivíduos têm melhores resultados para alguns tipos de dietas específicas do que outras. Portanto, o objetivo deveria ser combinar cada pessoa com sua melhor dieta individual e culturalmente apropriada.

Por outro lado, como discutido acima, o que antes sugeria haver relação entre o consumo gordura saturada da dieta e as DCV parece estar gradativamente diminuindo como resultado de evidências crescentes que têm lançado dúvidas sobre crenças previamente estabelecidas. 

Leitores que não têm acompanhado as idas e vindas dos novos conhecimentos sobre este tema podem ter ficado confusos e inseguros com essas quebras de paradigmas. Termino então usando um aforisma de Descartes, “Dubium sapientiae initium” ou, em bom português “a dúvida é o começo da sabedoria”.
 
Se você tem dúvidas sobre esse assunto ou quer sugerir temas para a coluna, envie email para arnaldoschainberg@terra.com.br