Frequentemente, recebo pacientes obesos com necessidade de serem submetidos a algum tipo de cirurgia eletiva. Pode ser qualquer tipo de cirurgia por algum problema médico relacionado ou não ao fato de estarem acima do peso. Precisam de avaliação pelo endocrinologista para serem liberados à cirurgia indicada.
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Recebo então encaminhamentos dos cirurgiões solicitando que os pacientes percam peso antes de operar, muitas vezes em patamares inatingíveis. Para esses pacientes, atingir as metas impostas de peso passa a ser uma missão quase impossível, usando os recursos médicos disponíveis, com exceção do método drástico da cirurgia bariátrica, mas que nem todos pacientes obesos precisam ou querem fazer para perder peso.
Uma discussão pertinente foi feita pelo professor Yoni Freedhoff, da Universidade de Ottawa. Ele lançou o seguinte questionamento: "O acesso a cirurgias eletivas é um direito humano?" Para pacientes com obesidade severa, essa não é apenas uma questão filosófica. A resposta a essa pergunta pode ser decisiva na mudança da trajetória de suas vidas.
As demandas vão desde reduções mamárias, cirurgia de varizes, de próteses de joelhos, ou até tratamentos de fertilidade e muito outros tipos cirurgias em que o peso corporal passa a ser adotado como critério de exclusão.
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Os defensores que advogam negar as intervenções cirúrgicas com base no peso corporal geralmente apontam que haveria um aumento de riscos ou complicações. Isso seria a justificativa para se colocar um ponto de corte baseado no índice de massa corporal (IMC) para definir quem poderia ou não operar.
Em outros cenários, acontece na prática clínica o tempo todo a situação de estarmos diante de pacientes não obesos que apresentam diversas comorbidades que podem aumentar o risco cirúrgico e que ainda assim eles acabam sendo liberados. Para esses pacientes, depois de ampla discussão de risco e benefício para o procedimento proposto, é fornecido um termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE). Nesses casos, diferentemente do que ocorre nos pacientes obesos, mesmo tendo risco cirúrgico aumentado se a cirurgia for inevitável, eles acabam sendo liberados para operar.
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Alguns estudos refutam ativamente os riscos presuntivos. Várias publicações científicas têm sugerido que as restrições baseadas em ponto de corte de peso específico para liberar a realização de cirurgia de redução de mama deveriam ser abandonadas. Já em outros estudos, concluiu-se que o grau de alívio da dor após a substituição do joelho por próteses é maior naqueles com obesidade, enquanto as melhorias funcionais são comparáveis.
No Canadá, atualmente, as recomendações nacionais pediram o fim dos pontos de corte baseados no IMC para tratamentos de fertilidade. Recentemente um caso emblemático de contestação judicial aconteceu na província canadense de Nova Escócia. A paciente Melody Harding buscava autorização para realizar uma redução de mama. Ela foi informada, entretanto, que ela não seria elegível para cobertura do procedimento pela província, porque seu IMC estava acima de 27. Frustrada, Melody escreveu para a Comissão de Direitos Humanos da Nova Escócia e, dois anos depois, a intervenção levou à remoção do ponto de corte do IMC para mamoplastia redutora.
Diante disso,algumas estratégias vêm sendo propostas. Entre elas, estão a reavaliação das evidências e validade dos pontos de corte baseados em peso e a garantia para o cirurgião de uma melhor remuneração nos casos mais complexos e com maiores dificuldades técnicas. Para garantir que os cirurgiões se sintam mais à vontade em lidar com comorbidades comuns associadas a esses pacientes mais complicados poderiam ser oferecidas opções de treinamentos e aperfeiçoamento no manejo de clínico e reconhecer o viés de peso como um assunto digno de atenção cuidadosa na educação médica.
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O professor Freedhoff ainda questiona um outro ponto que parece impulsionar a adoção de pontos de corte de peso. Ele especulou que não seria pelos resultados cirúrgicos, mas pelo viés antiquado de sobrevalorizar o excesso de peso e um certo paternalismo dos médicos, ao usar os pontos de corte como fator motivacional para os pacientes procurarem perder peso.
Uma especulação ainda mais perversa aventada pelo professor seria a de que as pessoas com obesidade poderiam sofrer um julgamento moral. Nessa visão, sem mencionar dados objetivos, Freedhoff lança a hipótese de que a equipe de saúde ficaria refratária em oferecer certos tratamentos para a população obesa pois ela não deveria receber os cuidados, uma vez que suas complicações foram desencadeadas por escolhas erradas na vida, ao comerem "errado" e não fazerem atividade física. Parece muito duro aventar essas especulações. Freedhoff não comprovou a tese mas, depois de conversar com amigos cirurgiões, outras hipóteses foram levantadas. Entre as quais, algumas realidades incômodas ao operar pacientes com obesidade grave: as cirurgias demoram mais, podendo ser mais difícil tecnicamente ou exigir equipamento, treinamento ou conhecimento especializado e a necessidade de o cirurgião ter de passar mais tempo lidando com complicações ou tratamento médico no pós-operatório.
Vemos então que esse assunto é bastante delicado e precisa ser melhor discutido, sem desencadear preconceito, seja para o paciente obeso ou para a equipe médica. Necessitamos de dados mais consistentes da literatura médica para melhor comprovação e fornecimento de base científica para dar respaldo às diretrizes de usar ou não critérios baseados em peso e IMC e decidir sobre a liberação de pacientes a serem submetidos a cirurgias eletivas.
Tem dúvidas? Mande para arnaldoschainberg@terra.com.br