A maior parte do genoma humano - 98 por cento - é composta de DNA, mas que na verdade não codifica genes. O restante é formado por regiões codificantes, chamadas de éxons. Elas são intercaladas por regiões não codificantes, chamadas de íntrons, que são inicialmente transcritas em RNA no núcleo, mas não estão presentes no mRNA (RNA mensageiro) final no citoplasma, não sendo assim representadas no produto protéico final. Parte das mutações genéticas associadas ao câncer ocorre nessas regiões não codificantes do genoma, mas não está claro como elas podem influenciar o desenvolvimento ou o crescimento do tumor. Mesmo mudanças simples em apenas uma letra do código de DNA em um gene conservado ao longo de gerações de evolução podem causar vários tipos de câncer. Mas usualmente estas mutações são identificadas nas regiões exônicas ou codificantes dos genes.
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Pesquisas sobre mutação genética avançam no combate ao câncer hereditárioRetinoblastoma: uma doença genéticaImunoterapia contra o câncer pode auxiliar no tratamento da AIDS Densidade mamária e o câncer de mamaIdentificada proteína com potencial para prevenção do câncer de fígado Novo teste sanguíneo pode detectar cânceres renais em estágio precoceO DNA não codificante, é notoriamente difícil de se estudar e, muitas vezes, é negligenciado, pois não codifica proteínas. Os investigadores, ao analisarem cuidadosamente essas regiões, descobriram uma mudança em uma letra (um nucleotídeo) do código de DNA que pode desencadear vários tipos de câncer. Um novo mecanismo de carcinogênese foi então estabelecido, o que por sua vez permite que novos tratamentos específicos e direcionados para esta mutação possam ser desenvolvidos, o que é denominado "Terapia Alvo-direcionada".
A descoberta da nova mutação
O grupo de pesquisas descobriu que a mutação, denominada mutação U1-snRNA (pequeno RNA nuclear) poderia interromper o "splicing" (emenda) normal de RNA e, assim, alterar a transcrição de genes que conduzem ao câncer. Esses mecanismos moleculares representam novas maneiras de tratar cânceres que apresentam essa mutação específica. Uma das possíveis abordagens de tratamento inclui o redirecionamento de medicamentos existentes, que, ignorando os estágios iniciais de desenvolvimento de medicamentos, podem ser trazidos para a clínica em um ritmo acelerado.
Entendendo os sítios "splicing" e suas mutações
Os genes são transcritos em uma longa molécula de RNA (pré-RNAm), também dotada de éxons e íntrons. Em seguida, ocorre remoção dos íntrons, o que reduz o tamanho do RNA inicial. Finalmente os éxons se ligam, formando o RNAm funcional ou maduro, que, contendo apenas segmentos codificadores (éxons), migra para o citoplasma, onde vai ser traduzido em cadeia polipetítidica. Esse processamento do RNA é chamado de splicing (que ocorre no núcleo e consiste na remoção dos íntrons e união éxons imediatamente após a transcrição do RNA) e é bastante complexo, já que a molécula de RNA deve ser clivada em locais exatos e os éxons devem ser unidos também de maneira correta. Os íntrons retirados do pré-RNA são "destruídos" dentro do núcleo gerando nucleotídeos livres, que por sua vez são reciclados. O splicing requer uma extrema precisão das moléculas envolvidas no processo, já que o acréscimo ou a remoção de um único nucleotídeo em um éxon pode alterar a fase de leitura e produzir uma proteína bastante diferente da original, caracterizando uma mutação, decorrente portanto, de erros no splicing. Estima-se atualmente que erros ou mutações no processo de splicing causem cerca de 10% das doenças genéticas.
Futuras aplicações da descoberta da mutação U1-snRNA
A descoberta inesperada revelou uma maneira totalmente nova de combater esses cânceres que são tremendamente difíceis de serem tratados e apresentam altas taxas de mortalidade. O estudo na realidade identificou um "erro de digitação" no código de DNA, sendo que os cânceres resultantes apresentam centenas de proteínas mutantes que podem ser atingidas ou modificadas terapeuticamente através de drogas alvo e mesmo imunoterapias atualmente disponíveis.
A mutação U1-snRNA foi encontrada em tumores de pacientes com certos subtipos de câncer cerebral, incluindo quase todas as amostras estudadas de pacientes adultos com meduloblastoma com defeitos na via celular conhecida como "hedgehog". A mesma mutação também foi encontrada em amostras de leucemia linfocítica crônica (LLC) - o tipo mais comum de leucemia em adultos - e carcinoma hepatocelular - o tipo mais comum de câncer de fígado.
As duas publicações relacionadas - uma focada no câncer cerebral e a outra na LLC e câncer de fígado - foram ambas lideradas por pesquisadores em Ontário, incluindo o Dr. Michael Taylor, que também é professor nos Departamentos de Cirurgia e Medicina Laboratorial e Patobiologia da Universidade de Toronto e Dr. Lincoln Stein do OICR (Ontario Institute for Cancer Research) do Canadá. Ambos os estudos envolveram colaboradores internacionais, incluindo o Dr. Xose Puente da Universidade de Oviedo, o Dr. Elias Campo do Institut d'Investigacions Biomèdiques August Pi I Sunyer (IDIBAPS) e a Universitat de Barcelona e outros.
Os estudos foram alimentados em parte por dados do projeto Pan-Cancer Analysis of Whole Genomes (PCAWG), liderado pelo OICR, um dos maiores esforços coordenados de pesquisa de câncer até o momento, que analisou mais de 2.800 genomas inteiros de câncer do International Cancer Genome Consortium. ICGC).