O uso de microrganismos para o combate de doenças não é uma novidade na medicina. Se nos primórdios eram usadas técnicas rudimentares - como a aplicação de sanguessugas vivas para drenar o sangue - hoje, após séculos de pesquisas, temos aplicações cada vez mais elaboradas. Boa parte dos antibióticos, por exemplo, é produzida a partir de microrganismos como fungos, bem como temos diferentes tipos de vacinas, que são produzidas a partir de vírus menos nocivos aos humanos.
A aplicação de vírus para o combate de doenças chama-se viroterapia e pressupõe a utilização da biotecnologia para converter os organismos em agentes terapêuticos. Recentemente, um artigo publicado pela equipe do Instituto do Câncer Americano chamou a atenção para pesquisas relacionadas a certos vírus capazes de infectar e matar células. É a chamada terapia de vírus oncolítico.
Essa ideia se iniciou no final dos anos 1800, quando os médicos observaram que alguns pacientes com câncer entravam em remissão, mesmo que apenas temporariamente, após uma infecção viral.
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A célula cancerosa que está morrendo libera materiais, como antígenos tumorais, que permitem que o câncer seja reconhecido, ou "visto", pelo sistema imunológico do paciente. E isso pode levar a uma resposta imune contra células tumorais próximas (uma resposta local) ou células tumorais em outras partes do corpo (uma resposta sistêmica), pontuam os pesquisadores americanos. No entanto, as análises indicam que, mesmo para terapias oncolíticas diretas, provavelmente existe um componente imunológico importante para a resposta.
A primeira terapia de vírus oncolítico aprovada pela FDA
O primeiro vírus oncolítico a receber a aprovação do FDA foi um tratamento para melanoma conhecido como talimogene laherparepvec (Imlygic ®) ou T-VEC. O tratamento, que é injetado em tumores, foi projetado para produzir uma proteína que estimula a produção de células do sistema imunológico no corpo e reduz o risco de causar herpes.
Em alguns pacientes que receberam a terapia, os tumores que não puderam ser injetados diminuíram, sugerindo que o T-VEC pode gerar uma resposta imunológica sistêmica.
Usando vírus para aumentar a resposta imunológica do corpo
Um dos desafios para os pesquisadores agora é tentar aumentar a resposta imunológica ao tumor por meio de uma variedade de estratégias, incluindo a combinação de terapia de vírus oncolítico e imunoterapia, o que já está sendo avaliado em dois ensaios clínicos de fase inicial.
Em um ensaio, quase 200 pacientes receberam T-VEC com ou sem ipilimumabe (Yervoy®). Os resultados sugeriram aos pesquisadores que a terapia combinada poderia induzir uma resposta imunológica.
No segundo ensaio, que incluiu 21 pacientes, o T-VEC foi combinado com pembrolizumabe (Keytruda®). O vírus oncolítico induziu a infiltração de células de defesa, conhecidas como células T, em tumores que tinham níveis baixos dessas células antes do tratamento.
Agora, um ensaio clínico de fase III, envolvendo 600 pacientes com melanoma que receberão T-VEC com ou sem pembrolizumabe, está em andamento para avaliar a terapia combinada em um grande estudo randomizado.
A mesma combinação - T-VEC mais pembrolizumabe - também está sendo avaliada em um ensaio clínico para pacientes com melanoma avançado que progrediu, apesar do tratamento com um inibidor de checkpoint, como pembrolizumabe ou nivolumabe (Opdivo®).
Esse estudo está testando a ideia de que as injeções de T-VEC em tumores de melanoma acessíveis aumentarão a infiltração de células imunes nestes e potencialmente em outros tumores, tornando-os suscetíveis ao tratamento com pembrolizumabe.
Os estudos ainda estão em fases iniciais, sendo necessárias discussões e respostas mais detalhadas. No entanto, não há como negar que é uma interessante vertente na busca de soluções contra o câncer, uma doença que insiste em acompanhar a humanidade ao longo de sua história.
*André Murad é oncologista, pós-doutor em genética, professor da UFMG e pesquisador. É diretor-executivo na clínica integrada Personal Oncologia de Precisão e Personalizada e diretor Científico no Grupo Brasileiro de Oncologia de Precisão: GBOP. Exerce a especialidade há 30 anos, e é um estudioso do câncer, de suas causas (carcinogênese), dos fatores genéticos ligados à sua incidência e das medidas para preveni-lo e diagnosticá-lo precocemente.
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