Tenho falado em ocasiões diferentes sobre a criação de vacinas/medicamentos e também sobre as tecnologias inovadoras que vêm sendo empregadas especificamente na vacina contra COVID-19. Hoje, convido você, meu leitor, a se apoiar na racionalidade para entender como ocorre o registro de uma vacina/medicamento para uso em terras brasileiras, após seu correto desenvolvimento pelas empresas farmacêuticas, de forma a se tranquilizar quanto a isso.
saiba mais
A primeira coisa a se ter em mente é que o registro de um medicamento é a fase final de um amplo e complexo trabalho de pesquisa e que só ocorre após a apresentação de dados sólidos comprovando a qualidade, a eficácia e a segurança daquele produto. Antes do pedido de registro ser feito por uma fabricante, esse produto deve obrigatoriamente passar por duas etapas de desenvolvimento: a de Pesquisa Básica e Testes Não Clínicos e a de Estudos Clínicos, que é dividida em três fases distintas.
Todas essas fases devem ser concluídas de maneira adequada, o que pode demorar até anos. Contudo, em situações excepcionais, podem ser desenvolvidas ao mesmo tempo, com foco na celeridade da apresentação dos resultados - especialmente se uma vacina for necessária rapidamente, como é o caso da pandemia de Sars-Cov-2 (coronavírus). Mas isso de forma alguma reduz os critérios de qualidade exigidos em cada etapa.
Vamos ao passo a passo:
1 - Pesquisa experimental e testes não clínicos
Nessa fase, os pesquisadores investigam como o agente patógeno agride o organismo hospedeiro. Também é feita a pesquisa inicial de segurança da vacina e sua capacidade de gerar anticorpos. Isso é feito por meio de testes em células (in vitro) e com animais. Vemos com frequência resultados desse tipo sendo divulgados pela imprensa com a seguinte chamada: "Em testes em laboratório com células de camundongos...". Conseguiu se lembrar de ver alguma notícia desse tipo anteriormente? São resultados preliminares.
2 - Estudos clínicos
Esses estudos são realizados em grupos pequenos de seres humanos após dados significativos terem sido produzidos na etapa anterior. No Centro de Pesquisa Clínica - Personal Oncologia participamos de inúmeros estudos desse tipo para desenvolvimento de drogas anticâncer.
É importante observar que, para o desenvolvimento das vacinas em solo nacional, as empresas responsáveis precisam de autorizações prévias, incluindo a Autorização para Estudos em Seres Humanos e o Dossiê de Desenvolvimento Clínico de Medicamentos (DDCM), que apresenta informações detalhadas sobre o estudo.
Então, cada etapa de testes com seres humanos é autorizada antes de sua realização, tudo é documentado e os resultados avaliados posteriormente. As fases do Estudo Clínico, no caso relacionado as vacinas, são as seguintes:
Fase I: a vacina é administrada em grupos pequenos de voluntários saudáveis, entre 20 e 100 pessoas, para verificar se é segura, as possíveis reações indesejáveis e qual a dosagem (quantidade) mais eficaz.
Fase II: a vacina é administrada a grupos-alvo (cerca de 300 pessoas) que seriam vacinados (faixas etárias diferentes, por exemplo) para se identificar qual dosagem (quantidade) é mais eficaz e como o sistema imunológico responde a ela.
Fase III: a vacina é administrada a um grupo ainda maior, consistindo em centenas de milhares de pessoas de países diferentes, para avaliar o quão bem a vacina funciona para prevenir a doença. Por meio de um sorteio (estudo randomizado), uma parte das pessoas recebe a vacina, e a outra recebe placebo. Então, os resultados de um grupo são comparados com o do outro.
Os pesquisadores precisam provar que a vacina é capaz de proteger o organismo contra a doença. Conforme a Organização Mundial da Saúde (OMS), admite-se uma taxa de eficácia de imunização de até mesmo 50%. Mas o ideal é de pelo menos 60%. Taxas que chegam a 70%, 90%, 94% são consideradas excelentes. Isso significa dizer que, entre os indivíduos vacinados, 94% desenvolvem a resposta imunológica segura e não irão contrair a doença, pelo menos as formas mais graves e sintomáticas.
O registro do medicamento para uso comercial no país
Essa é a parte que mais tem confundido as pessoas. É necessário entender que esse processo é burocrático e será feito a partir da apresentação de resultados seguros das fases 1, 2 e 3 pelas empresas farmacêuticas.
Para isso, devem ser apresentados inúmeros documentos, certificações, autorizações, justificativa para o registro, plano de farmacovigilância e informações gerais sobre o produto, assim como relatório com dados sobre as matérias-primas utilizadas na vacina, entre outras informações.
É muito importante a população saber que o pedido de registro ou de autorização de uso emergencial deve ser feito pela empresa junto à Anvisa. Só então, o órgão poderá dar andamento a uma análise detalhada de todos os dados.
Profissionais especializados e com ampla experiência revisarão todos esses documentos, conforme exigido nas normas técnicas, para verificar os dados de segurança, de eficácia e de qualidade da vacina. O andamento de todas essas fases pode ser acompanhado no site da Anvisa em um quadro bastante didático.
Para dar maior celeridade à aprovação dos registros, a Anvisa tem adaptado alguns procedimentos. Exemplo disso é o Procedimento de Submissão Contínua, no qual as fabricantes podem apresentar os dados de cada etapa conforme forem sendo produzidos, em vez de apresentar todos reunidos somente após a conclusão de todas as etapas.
A adesão a esse procedimento é voluntária e pode agilizar a análise do processo, permitindo uma decisão mais rápida sobre o registro ou autorização de uso emergencial. Além disso, em 14 de dezembro, a agência publicou a notícia de que fará análise do pedido de autorização de uso emergencial, diante da apresentação de toda a documentação necessária à concessão, em até 10 dias.
Não vou detalhar a questão dos prazos, pois meu objetivo é destacar apenas que o desenvolvimento de uma vacina é diferente de seu registro no país e que este só será feito sendo comprovada a eficácia, a segurança e a qualidade da substância a ser administrada.
Acho bastante démodé, em pleno século 21, estarmos vivenciando uma nova Revolta da Vacina, tal qual foi em 1900. É alarmante ouvir algumas pessoas dizerem que não vão tomar a vacina, mesmo após sua liberação pela Anvisa.
Oswaldo Cruz - que a propósito dá nome à Fiocruz (uma das desenvolvedoras de vacina contra COVID-19, em parceria com AstraZeneca) - não acreditaria se falassem a ele que, mais de 100 anos após seu trabalho no Rio de Janeiro, nosso país ainda estaria enfrentando esse tipo de resistência e desconfiança.
Você não acha que passou da hora de nossa sociedade dar espaço merecido para a ciência e deixar o achismo de lado?
*André Murad é oncologista, pós-doutor em genética, professor da UFMG e pesquisador. É diretor-executivo na clínica integrada Personal Oncologia de Precisão e Personalizada e diretor Científico no Grupo Brasileiro de Oncologia de Precisão: GBOP. Exerce a especialidade há 30 anos, e é um estudioso do câncer, de suas causas (carcinogênese), dos fatores genéticos ligados à sua incidência e das medidas para preveni-lo e diagnosticá-lo precocemente.
Quer falar com o colunista? Envie um e-mail para andremurad@personaloncologia.com.br