As Síndromes de Predisposição Hereditária ao Câncer são responsáveis por entre 10 e 15% dos casos de câncer no mundo e, por isso, algumas pessoas não dão muita atenção ao diagnóstico destas. Mas, a lógica é outra. As mutações hereditárias são justamente aquelas que podemos prever de forma objetiva, possibilitando uma atuação assertiva e preventiva do câncer em seus portadores.
A Síndrome de Lynch, por exemplo, é conhecida por sua forte relação com o câncer colorretal hereditário não poliposo, o tipo de câncer colorretal hereditário mais comum do trato digestivo. Somente no Brasil, 34 mil novos casos do câncer – na maior parte cólon e o reto –, são diagnosticados a cada ano. Aproximadamente 5% destes podem ser causados pela Síndrome de Lynch.
A síndrome ocorre por mutações nos genes de reparo do DNA (anormalidade que prejudica a restauração dos danos que o DNA sofre diariamente) predispondo ao câncer e afetando gerações de uma família.
Fazer o diagnóstico dessa síndrome em um indivíduo antes do aparecimento de um tumor aparecer pode mudar a vida de toda a família e evitar uma série de transtornos, até mesmo, gastos de saúde. Quem em sã consciência não gostaria de ter essa chance?
Indivíduos portadores de alterações compatíveis com a Síndrome de Lynch têm um risco cumulativo, até os 70 anos de idade, entre 55% a 85% de desenvolver um câncer colorretal. Já na população em geral, esse risco é de 4,5%.
Mulheres com a Síndrome de Lynch possuem chance entre 40% a 60% de desenvolver câncer de endométrio. Risco um pouco aumentado para outros tumores também estão associados à predisposição familiar, como os tumores no estômago, ovário, intestino delgado, vias biliares – vesícula biliar e algumas partes do fígado -, pelve renal – área central do rim, onde a urina se acumula –, cérebro e pele.
A principal suspeita de que o paciente é portador da Síndrome de Lynch acontece quando o indivíduo é diagnosticado com câncer colorretal antes dos 50 anos de idade e, também, quando possui uma predisposição hereditária onde mais de um familiar tem ou teve este ou outros dos tipos de cânceres associados.
Mas, após o diagnóstico, quais estratégias podem ser adotadas para uma doença que está escrita no código genético do paciente? A grande novidade relacionada a essa síndrome é a atualização do estudo CAPP2, que confirma a eficácia do uso de aspirina (600 mg/dia) na prevenção do câncer colorretal em portadores da Síndrome de Lynch. Veja bem, um simples medicamento do nosso cotidiano com potencial de evitar o aparecimento de um tumor. Isso, a meu ver, é algo fenomenal!
O Programa de Prevenção de Câncer (CaPP), originalmente chamado de Projeto de Prevenção de Polipose de Ação Concertada (CAPP), foi lançado em 1993, por um grupo de investigadores de vários países do mundo para investigar a prevenção terapêutica em pacientes com uma predisposição genética comprovada para câncer colorretal e outros.
Enquanto o CAPP1 era focado em adolescentes com polipose adenomatosa familiar, o CAPP2, iniciado em 1999, focou em pessoas com Síndrome de Lynch, anteriormente conhecida como câncer de cólon hereditário sem polipose.
Em ambos os ensaios, a aspirina foi testada de forma prospectiva, randômica e tendo como grupo controle um placebo. No estudo CAPP2, os participantes receberam 600 mg de aspirina formulada com revestimento entérico e 30 g de Novelose, amido resistente ou amido de milho placebo, diariamente.
Nesse ensaio randomizado, duplo-cego (neste tipo de estudo, nem o médico, nem o paciente sabem em que grupo os participantes estão), 861 pacientes de 43 centros internacionais em todo o mundo (82% da Europa; 13% da Australásia; 4% da África; e menos de 1% de Américas) com Síndrome de Lynch foram aleatoriamente designados para receber 600 mg de aspirina diariamente ou placebo.
Os resultados do câncer foram monitorados por pelo menos 10 anos após o recrutamento, com participantes ingleses, finlandeses e galeses sendo monitorados por até 20 anos. O estudo conduzido pelo Prof. John Burn, Harsh Sheth, Faye Elliott, Lynn Reed, Prof. Finlay Macrae, Jukka-Pekka Mecklin et al. foi publicado no jornal The Lancet, recentemente.
Após as análises das evidências acumuladas ao longo destes anos, os pesquisadores concluíram que a ingestão frequente de aspirina reduz o risco de câncer na população em geral. Observou-se que o efeito protetor da aspirina leva de 3 a 10 anos para se tornar aparente. O acompanhamento por mais de 25 anos nesses estudos não mostrou evidências de que o efeito protetor da aspirina havia desaparecido, embora houvesse evidências de um efeito reduzido de doses baixas em pessoas com maior peso corporal. Conforme relataram os cientistas do projeto, a análise de dados de pessoas com Síndrome de Lynch recrutadas para o estudo CAPP2 mostra que os efeitos protetores da aspirina contra o câncer colorretal persistiram na análise de até 20 anos de acompanhamento.
Vale ressaltar que os 427 participantes tiveram cânceres colorretais a menos como resultado de tomar duas aspirinas por dia durante uma média de 2,5 anos. Em números, 40 (9%) dos 427 participantes que receberam aspirina desenvolveram câncer colorretal, em comparação com 58 (13%) dos 434 que receberam placebo.
Embora este estudo forneça evidências de que uma dose única de aspirina (600 mg por dia) foi eficaz na prevenção a longo prazo do câncer colorretal, ainda é preciso determinar se esta é a dose ideal de aspirina em relação ao equilíbrio entre benefício (redução do risco de câncer) e risco (sangramento gastrointestinal).
Todavia, a recomendação, após análise geral dos dados, é de que portadores adultos da Síndrome de Lynch sejam orientados a tomar 600 mg de aspirina diariamente por pelo menos 2 anos, o que deve reduzir significativamente o risco de um câncer futuro.
Em minha prática clínica já venho adotando essa medida entre meus pacientes, em concordância com estes, e somando-se a isso o rastreamento preventivo para câncer colorretal e também para outros tipos relacionados à Síndrome de Lynch.
Para estes pacientes, o rastreamento começa antes, por volta dos 25 anos, uma vez que, normalmente, o câncer acontece a partir dos 30 a 40 anos, um pouco antes, um pouco depois. Geralmente, na Síndrome de Lynch, o câncer colorretal nasce na área mais à direita do intestino, no ceco e cólon ascendente. Pode ou não nascer de um pólipo. Eventualmente, não.
Além do câncer de intestino, portadores dessa síndrome podem ter câncer no estômago ou na parte final do esôfago e, por isso, devem ser submetidos anualmente à endoscopia digestiva alta.
As mulheres podem ter câncer de endométrio, então, devem ser rastreadas com ultrassonografia. Quando elas já tiveram todos os filhos que desejavam, muitas vezes recomenda-se a remoção dos ovários e útero.
Mas, até que isso aconteça, os médicos podem indicar a ultrassonografia transvaginal anual e, eventualmente, uma ressonância abdominal anual para rastrear pâncreas, bexiga etc.
*André Murad é oncologista, pós-doutor em genética, professor da UFMG e pesquisador. É diretor-executivo na clínica integrada Personal Oncologia de Precisão e Personalizada e diretor Científico no Grupo Brasileiro de Oncologia de Precisão: GBOP. Exerce a especialidade há 30 anos, e é um estudioso do câncer, de suas causas (carcinogênese), dos fatores genéticos ligados à sua incidência e das medidas para preveni-lo e diagnosticá-lo precocemente.
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