Evidências científicas sobre as possibilidades de uso dos testes sorológicos

Identificação de anticorpos para coronavírus SARS-Cov-2 apoiará a triagem dos profissionais de saúde para apontar quem já está imune e pode se dedicar a cuidar de pacientes infectados

Remko DE WAAL / ANP / AFP
(foto: Remko DE WAAL / ANP / AFP)

Após o artigo da última semana em que falei sobre como os testes sorológicos poderiam ser aliados contra o vírus SARS-CoV-2 (vírus da COVID 19), dou sequência ao assunto aprofundando sobre estudos em andamento.

O grande questionamento é: existem evidências científicas para a indicação de testes sorológicos rápidos na identificação de imunidade de indivíduos saudáveis que se expuseram ao vírus ou que tiveram sintomas leves, mas sem confirmação diagnóstica com o RT-PCR?

Como se trata de uma epidemia de início recente, não há estudos de seguimento sorológico e virológico de longo prazo e com um número elevado de indivíduos estudados para que possamos responder a essa pergunta de forma inequívoca.

Entretanto, as evidências epidemiológicas acumuladas, até o momento, os estudos em animais e a experiência com epidemias anteriores, como a causada pelo vírus SARS-CoV-1, sugerem que, sim, a detecção de imunoglobulina IgG e não da IgM no soro de pessoas assintomáticas indica uma imunidade mantida ao vírus.

Vamos às evidências:

1. Imunidade permanente registrada nos casos de SARS-CoV-1

O SARS-CoV-1 (vírus causador da primeira epidemia de SARS por coronavírus) induziu a uma imunidade permanente, conforme aponta o estudo Evolução cronológica de anticorpos IgM, IgA, IgG e neutralização após infecção por coronavírus associado à SARS. Esse estudo demonstrou que, tanto as proteínas nucleocapsídicas, quanto às proteínas do coronavírus, associados à síndrome respiratória aguda grave (SARS) (SARS-CoV), são capazes de induzir fortes respostas humorais (resposta mediada por anticorpos) em humanos, após uma infecção.

Para comparar as respostas da imunoglobulina G (IgG) às proteínas da SARS-CoV, durante o período de manifestação dos pacientes com SARS com as do período pós-infecção, foram coletadas amostras de soro de pacientes com SARS hospitalizados, dentro de seis semanas, após o início da doença (57 amostras sequenciais de 19 pacientes) ou 2 a 3 meses após a recuperação (33 amostras pós-infecção de 33 indivíduos). 

2. Imunidade ao SARS-CoV-2 definitiva registrada em macacos 
     
O estudo disponível no site https://www.biorxiv.org/content/10.1101/2020.03.13.990226v1" target="blank">biorxiv.org mostrou que uma vez infectados pelo vírus, a imunidade destes animais é definitiva.

3. Plasmas de indivíduos curados foram terapêuticos e curaram pacientes graves

Esta é mais uma prova de que pacientes expostos ao vírus desenvolvem imunidade. Um estudo publicado na prestigiada revista Médica JAMA documentou que o plasma contendo as imunoglobulinas de defesa (IgG), conseguiu curar quatro de cinco pacientes infectados por SARS-CoV-1 e muito graves.

4. Pacientes "curados" desenvolveram anticorpos em quantidade mensurável

Um estudo longitudinal chinês publicado há poucos dias no Medrxiv – uma plataforma online para estudos ainda não "peer reviewed" (revisado por pares) – demonstrou recentemente que 80 pacientes "curados" de COVID-19 desenvolveram anticorpos contra o vírus em quantidade mensurável, e que o aparecimento destes anticorpos coincidiu com o desaparecimento do vírus.

O grupo chinês avaliou o soro de 80 indivíduos curados por COVID-19, usando três formas do método Ensaio imunoabsorvente ligado à enzima (no inglês: Enzyme-linked imuno-sorbent assay - ELISA).

O resultado central do estudo é que o nível de seroconversão (processo no qual um anticorpo específico se desenvolve como resposta a um antígeno e se torna detectável no soro) nestes 80 indivíduos foi de 98.8 % (79 em 80), com positividade no teste em uma mediana de 15 dias, desde a exposição ao vírus e nove dias após o início dos sintomas.

O segundo resultado importante é que o nível de anticorpos no soro dos doentes em recuperação aumenta rapidamente a partir do dia-6, após o início dos sintomas, e está estreitamente associado ao declínio da carga viral.

Com essa observação, conclui-se que quase todos os pacientes "curados" têm anticorpos contra o vírus em quantidade mensurável, e que o aparecimento destes anticorpos coincide com o desaparecimento do vírus.

Esses dados indicam a possibilidade de que:

1) a medição de anticorpos contra SARS-CoV-2 possa identificar, para fins de pesquisa e monitorização epidemiológica, as pessoas que curaram da infecção; 
2) nestes doentes, a presença de anticorpos anti-COVID-19 está na base do seu mínimo risco de reinfectar e/ou adoecer novamente, conforme indicado nos dados clínicos laboratoriais disponíveis no momento.

5. Capacidade do organismo de combater o vírus e se recuperar da infecção

Outro estudo interessante publicado na Nature segue a mesma ideia. Pesquisadores do Instituto Peter Doherty para Infecção e Imunidade, na Austrália, mapearam respostas imunes em um paciente em resposta à infecção por COVID-19, demonstrando a capacidade do organismo de combater o vírus e se recuperar da infecção. 

A equipe testou amostras de sangue colhidas em um dos primeiros casos de COVID-19 da Austrália, em quatro momentos diferentes durante a infecção. Foi examinada, então, toda a amplitude da resposta imune nesse paciente usando o conhecimento que construímos ao longo de muitos anos analisando as respostas imunes em pacientes hospitalizados com influenza

O estudo demonstrou que, embora o COVID-19 seja causado por um novo vírus, em uma pessoa saudável uma resposta imunológica robusta em diferentes tipos de células estava associada à recuperação clínica, semelhante à que vemos na gripe.

6. Resultados preliminares com testes sorológicos

Um estudo com resultados preliminares foi também publicado recentemente na plataforma MedRxiv. A maioria dos autores é da Escola de Medicina de Icahn, no Monte Sinai, que fica em Nova York. O emprego de testes sorológicos nesse estudo demonstrou sensibilidade e especificidade bastante significativas, permitindo a triagem e identificação de soroconversores COVID-19 (pessoas reagentes ao vírus) usando plasma/soro humano em até três dias após o início dos sintomas.

É importante ressaltar que esses ensaios não requerem manipulação de vírus infeccioso, podem ser ajustados para detectar diferentes tipos de anticorpos e são passíveis de alteração no dimensionamento. 

A conclusão do estudo é de que os ensaios sorológicos são de importância crítica para determinar a soroprevalência em uma determinada população, definir a exposição anterior e identificar doadores humanos altamente reativos para a geração de soro como uma opção terapêutica para pacientes graves.

A identificação sensível e específica de anticorpos para coronavírus SARS-Cov-2 também apoiará a triagem dos profissionais de saúde para identificar aqueles que já estão imunes e podem ser implantados para cuidar de pacientes infectados, minimizando o risco de disseminação viral para colegas, paramédicos, atendentes e outros pacientes.

As evidências, até o momento, indicam que os testes sorológicos podem ser aplicados a indivíduos que, ou são assintomáticos, ou tiveram sintomas leves de resfriado que se iniciaram há pelo menos 20 dias, e que desejam saber se apresentam sorologia compatível com a presença de imunidade duradoura. Ou seja, incapazes de se infectar ou infectar seus contatos, pelo menos pela cepa do SARS-CoV-2, responsável pela pandemia atual de COVID-19.

Estes indivíduos podem, em caso afirmativo, retornar com segurança para suas atividades de trabalho e suas rotinas usuais. Para tanto, o teste deve apresentar positividade para o anticorpo IgG e negatividade para o anticorpo IgM. Caso haja positividade para IgM, recomenda-se a complementação do teste com o RT-PCR, para a identificação do vírus no organismo. Caso o teste seja negativo, o mesmo pode ser repetido subsequentemente para a detecção de imunidade após exposições futuras ao vírus ou negatividade do exame devido a uma janela imunológica.

Então, volto a reforçar, temos uma ferramenta que poderá ser muito aproveitada na contenção do contágio por coronavírus, desde que empregada corretamente. Acrescento a isso a observação de que, em breve, muitos outros estudos em andamento poderão dar respostas que ainda não temos.

*André Murad é oncologista, pós-doutor em genética, professor da UFMG e pesquisador. É diretor-executivo na clínica integrada Personal Oncologia de Precisão e Personalizada. Exerce a especialidade há 30 anos, e é um estudioso do câncer, de suas causas (carcinogênese), dos fatores genéticos ligados à sua incidência e das medidas para preveni-lo e diagnosticá-lo precocemente.

Se você tem dúvidas ou sugestão de temas, envie pra mim: andremurad@personaloncologia.com.br