Com a marca de um ano de pandemia no Brasil (o primeiro caso registrado de infectado no país ocorreu em 26 de fevereiro de 2020), imaginava-se, depois de duro aprendizado, que a situação estaria, ao menos, mais controlada. Em vez deste cenário, o que se vive é o risco de um colapso da saúde em todo território nacional em um dos piores momentos da COVID-19, com número superior a mil mortes diárias, recorde atrás de recorde, e já tendo ultrapassado os 250 mil óbitos. Uma tragédia sem precedentes.
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Diante de uma crise de gestão sanitária marcada pelo negacionismo e politização da corrida pela vacina, os brasileiros seguem em uma nau sem rumo. É como se todos estivessem a bordo do Titanic, com alguns tentando se salvar, com estratégias próprias, descoordenadas, e quem deveria comandar e montar um plano para salvar o maior número de brasileiros possível se preocupasse apenas em tocar violino diante do caos e o afundamento iminente.
“Fui a responsável global pela comercialização do fármaco Cerezyme (entre outros), indicado para a doença de Gaucher, também comandava o programa de doações de medicamentos da Genzyme, quando tivemos falta de produto e vi de perto o que é não ter medicamento para todos e ter que negar acesso aos que precisam (na minha época tinham pacientes em 88 países), além de ser tratar do patient advocacy, serviços aos pacientes e public affairs.”
Vivendo fora do Brasil, ela tem a visão privilegiada de dois mundos no gerenciamento da pandemia: “Brasil e EUA são dois mundos muito diferentes e, ainda assim, com muitas semelhanças. Não vou discutir o perfil dos líderes. Ninguém queria acreditar na dimensão do problema. Não importa onde começou. A ciência foi colocada em segundo ou terceiro plano. A possibilidade de “glória” para quem encontrasse uma solução e salvar, sozinho, o dia prevaleceu durante muito tempo. Negar a ciência /estatística era mais fácil", diz.
"Moro num estado onde a saúde é extremamente privilegiada e ainda assim atrasamos na decisão de entrar em quarentena. Com olhar prático da ciência e da biologia, não sabíamos ainda como o vírus estava espalhando direito, então deveríamos ter nos unido e pesquisado e não ter saído pelo mundo afora. Aprendi isso quando tive que gerenciar a falta de produto aqui em 2009. No começo, falamos muita coisa sem saber a dimensão do problema: não se preocupem, tudo se resolve em algumas semanas. E, resumindo, as coisas só voltaram ao normal em 2017. Aprendemos na porrada.”
Continuamos vendo gente que não usa máscara, que acha que profissional da saúde não cansa, não erra, ou, ainda mais louco, que eles não sabem nada. Tem até gente que recusa vacina, o que é sem pé e nem cabeça, mas há quem ache que a terra é plana. Tudo isso contradiz o que sabemos sobre o vírus então, infelizmente, acho que vão ter outras ondas
Simone Azevedo, bióloga e CEO da Xingu Health
Assim, em tempos de incertezas e decisões erradas, o novo coronavírus vai sendo decifrado aos poucos pelos cientistas (mas que se registre: têm conseguido uma velocidade incrível para o ritmo normal da ciência, que demanda tempo) e muito se fala em segunda, terceira onda da COVID-19 cada vez mais assustadora: “Isso me faz lembrar daquela música: “onda, olha a onda... onda, olha a onda...”.
"Enquanto não atingirmos um consenso mundial e trabalharmos juntos, acho que as ondas vão continuar. Veja o caso de Israel: deveríamos estar aprendendo com o plano deles de pedir vacinas logo, vacinar todos e controlar a doença. Em vez disso, continuamos a olhar no que pode não estar dando certo lá (alguns pacientes que tiveram reações adversas, não tem vacina para os palestinos e a lista continua) ao invés de pedir arrego e colocarmos nossas cabeças juntas para pensarmos em como conseguir a vacina/solução para todos.”
Para a bióloga, as pessoas precisam acordar e parar de ir contra os fatos: “Continuamos vendo gente que não usa máscara, que acha que profissional da saúde não cansa, não erra, ou, ainda mais louco, que eles não sabem nada. Ainda colocamos os interesses individuais acima do coletivo e queremos viajar. Tem até gente que recusa vacina, o que é sem pé e nem cabeça, mas há quem ache que a terra é plana. Tudo isso contradiz o que sabemos sobre o vírus então, infelizmente, acho que vão ter outras ondas”.
Vacina, crítica e reações
Com a liberação pelas agências reguladoras de muitas vacinas para a COVID-19, em tempo recorde, a imunização é a única esperança do mundo e tábua da salvação. Ainda que há quem desconfie, questione e negue. Para Simone Azevedo, “o que fizeram com essas vacinas é impressionante. Qualquer um que entenda um pouquinho da pesquisa, desenvolvimento e fabricação de medicamentos sabe que isso vai ficar nos livros de história. Veja bem, o mundo não funciona para prevenir doenças. Ainda não estamos lá. Ou seja, se hoje precisássemos de distribuir aspirina, para toda a população do mundo tomar 3 comprimidos ao dia, por 7 dias, provavelmente não iria ter o suficiente".
"Para fazer, precisaríamos de matéria-prima que também não estaria disponível e fábricas com equipamento certo e pessoal treinado. Nesse caso, sabemos como fazer porque já fazemos aspirina por anos e anos. Agora, imagina fazer uma vacina, produto biológico, que depende de engenharia genética e outros seres vivos para acontecer. Não tem milagre. Célula não reproduz mais rápido ou mais devagar só porque a gente quer (até porque, se tivéssemos descoberto isso, talvez não existisse câncer no mundo).”
Sem falar que, explica a bióloga, para criar um medicamento ou
vacina,
é preciso entender a doença ou o vírus. “Isso, normalmente, demora anos. É como desenhar um avião, fazer voar... sem entender leis de aerodinâmica, propulsão, e assim vai. Pode dar certo, mas as chances são de que vai cair num primeiro momento e temos que continuar tentando. Sei de toda a crítica que existe com relação à indústria farmacêutica, mas o que fizeram com essa vacina é absolutamente impressionante.”
Simone Azevedo destaca outros dois fatos. “Primeiro, reclamam da eficácia e segurança da vacina. Então vamos lá: a vacina da Pfizer demonstrou eficácia acima de 90%. Vamos comparar com vacina para gripe (aqui nos EUA tomamos todo ano). A eficácia média da vacina da gripe, nos últimos cinco anos, foi abaixo de 55%. Ouviu alguém reclamar? Sabem quantos morrem por ano por causa da gripe?", questiona.
"Em segundo, questionam a segurança da vacina. Sabe a média de efeitos adversos em medicamentos para tratar câncer? Basta procurar a bula de um medicamento quimioterápico ou até pílula anticoncepcional e olhar lá. Não tem como evitar efeitos adversos e os reportados até agora são menores que muita coisa que existe no mercado. E todo mundo usa sem nem pensar duas vezes. Vai de encontro ao que falei sobre Israel: em vez de olharmos que já tem milhões de pessoas vacinadas e protegidas contra o vírus, ficamos remoendo os efeitos adversos dos poucos. Claro, se isso ocorresse comigo ou uma pessoa da família, me deixaria louca. Mas temos de pensar que a opção de ficar sem é muito pior.”
Fake news
Simone Azevedo demonstra a indignação diante do movimento antivacina, o negacionismo e as fake news, seja de quem for, que teimam em desacreditar ou duvidar da vacina: “Como pode pessoas acreditarem em um vídeo na mídia social falando que a terra é plana, mas não acreditarem em quem já pisou na lua e contou que a terra é redonda? Sou a favor da liberdade de ideias e expressão, mas tem hora que não entendo mesmo."
A bióloga pergunta: "O que fazer? Educação para todos. Esse é um dos maiores problemas do mundo. Depois da fome e alguns outros. Enquanto ser professor for visto com menos importância na escala de profissões “chiques”, vamos sofrer muito. O cara que criou essa zona toda com as vacinas quando disse que vacina dava autismo foi um gênio do marketing. Até mesmo depois de ter confessado que tudo era falso, ainda tem gente que continua acreditando nisso. Talvez o negócio seja, de novo, aprender com quem faz bem feito: pedir para os marketeiros da Coca-cola, McDonald’s, Amazon para criarem uma linguagem fácil para todo mundo entender”.
Diante de tantos obstáculos e sem solução mágica, Simone Azevedo reforça as orientações aplicadas em todo o mundo: “Se eu tivesse uma solução para o Brasil, daria de coração. Tenho sugestões. Distribuir
máscara
para todo mundo e multar com o mesmo rigor que foi feito com o cinto de segurança. Multa alta. Ainda lembro quando o uso do cinto virou obrigatório. Tinha um outdoor na Av. Catalão que nunca esqueci. Falava assim: “pode multar, mas não deveria ser muito caro”. E era assinado por um político da época".
"Vamos ser realistas também: tem muita gente que poderia ficar em casa para deixar quem precisa entregar pizza ganhar o dinheiro dele para alimentar a família. Quem pode, tem que ficar em casa para ajudar quem não pode. O Brasil tem uma criatividade sem limite. Cria uma campanha para usar máscara, para premiar quem acha uma nova solução de delivery, valoriza quem está fazendo a coisa certa.”
Cansaço e lockdown
Para a bióloga, para quem se diz cansado, que não aguenta mais manter o distanciamento social, são argumentos que não se sustentam. “Esse negócio de não conseguir viver sem um abraço tem hora que não faz sentido nenhum. Pensa bem, quantas vezes você poderia ter ido à casa dos seus avós para um lanche de domingo e vinha com uma desculpa fiada sem tamanho... Ahhh, vou encontrar com um amigo, estudar para prova, estou com dor de cabeça, e assim vai. Mas agora que não deveria ir visitar os avós, vira um drama.”A bióloga analisa também o comportamento de alguns brasileiros quanto a visão sobre o sistema de saúde. “O Brasil já tem problema suficiente com o sistema de saúde mesmo sem a pandemia. Como podem achar que agora não há problema ou que é exagero? O que muita gente não entende é que treinar profissionais de saúde não pode ser feito via Zoom, em poucas horas. E que montar uma UTI precisa de equipamento, matéria-prima, dinheiro e conhecimento – e os profissionais treinados. Até todo mundo estar usando máscara, ter teste e vacina para todos, sim, o lockdown é a única medida que vi funcionar pelo mundo a fora.”
Prevenção e protocolo
No Brasil e no mundo, muitos especialistas têm alertado sobre uma revisão necessária e urgente dos protocolos. Se antes, por ser novidade e total desconhecimento, além do tripé: usar máscara, higienizar as mãos e manter o isolamento social se somavam às medidas de higienização como desinfectar todas as superfícies, os calçados, sacolas e pacotes (tudo que viria da rua), compras no supermercado etc, hoje, muitos já alertam que o fundamental, que deveria ser reforçado à população, seriam duas medidas fundamentais: não aglomerar e o uso de máscara, já que a contaminação maior é por vias áreas e não superfícies.Para Simone Azevedo, “uso da máscara e a não aglomeração são fundamentais. Mas tem que testar também e continuar lavando as mãos porque senão vão tirar a máscara, tocar a boca ou nariz e lá vai o vírus. Mas se usarem máscaras e evitarem aglomerações todos vão ver a diferença.”
A verdade é que a única forma de quebrar a cadeia de contaminação, ainda mais com todas as variantes do vírus, é seguir todas as medidas de higienização e distanciamento largamente divulgadas e do conhecimento de todos. No entanto, depois de tanto tempo, a população parece anestesiada diante desta tragédia. O que reflete tanto no relaxamento dos cuidados de prevenção quanto na dimensão do que ocorre, do número de mortos. O que em parte explica a adoção, por muitos, de soluções milagrosas e falsos medicamentos que, comprovadamente não tratam da COVID-19 e tem contraindicações e reações adversas sérias. A cloroquina não é indicada para a COVID-19, não é placebo e tem consequências prejudiciais à saúde.
“Anos atrás, li um artigo da revista Superinteressante que falava sobre religião e salário. Como se pergunta no Brasil qual o salário de uma pessoa? “Quanto você ganha?”, não é? Parece que não tem esforço nenhum, que vem de graça. Agora, como se pergunta aqui nos EUA? “How much do you make?” Ou seja, “quanto você faz?” Viu a diferença? Aprendi que meu salário vale o meu esforço. Se não trabalho duro, não vou ganhar nadinha. No Brasil, historicamente e culturalmente, ainda se espera que a solução caia do céu. Por isso, quando alguém em papel de liderança promete os céus, a população acredita mesmo. Ser líder vem, acima de tudo, com a responsabilidade de colocar suas crenças pessoais atrás das necessidades de quem precisa ser liderado”, enfatiza Simone Azevedo.
Como bióloga, que estuda todos os tipos de formas de vida, desde a macroscópica até a microscópica e a relação dos seres vivos com o meio ambiente, Simone Azevedo revela que ao pensar sobre o impacto ambiental chegou à conclusão que “só mesmo o esforço coletivo para encontrar soluções. Quem sabe, achamos no meio dessa crise, uma maneira de sermos mais altruístas, pensarmos mais nos outros e no coletivo. Nada de extremos. Se conseguimos atrair milhares para ver um desfile de carnaval, abraçar o Cristo Redentor ou assistir uma partida de futebol, imagina se essas pessoas criassem uma campanha para lidar com o vírus, respeitando a ciência e o conhecimento adquirido? O Brasil pode ser o exemplo para o mundo do que a criatividade usada para o bem comum pode fazer.”
Aprendizado compartilhado*
- Reconhecer que não tínhamos todas as respostas e pedir tempo para avaliar
- Reconhecer o erro
- Reconhecer que o problema era muito maior do que imaginávamos
- Comunicar com todos os principais grupos envolvidos ao mesmo tempo
- Ser transparente
- Adaptar os planos à medida que se aprende
- Não desistir e usar o conhecimento de quem vive diariamente o mesmo tipo de problema
- Aceitar que tem gente que pode saber mais do que a gente
Os fatos*
- O vírus espalha pelo ar.
- Ninguém tem superpoderes – essa doença não ver raça, cor, religião, partido político, etc.
- Os únicos países que conseguiram bons resultados até agora estão na Ásia, porque já viveram outras epidemias e agiram rápido, ou simplesmente fecharam as portas/são ilhas (tipo Nova Zelândia).
- Máscaras diminuem a transmissão.
- Encontros/aglomerações aumentam a transmissão.
- Profissionais da saúde estão exaustos.
- Não tem uma solução única (vacinam-se velhos ou novos, profissionais de saúde ou população em geral etc.)