Saúde Plena

Câncer

Biópsia feita a partir do sangue do paciente é ferramenta na definição de tratamentos personalizados

A notícia de que não há mais recursos para tratar um tumor é demasiadamente difícil para o médico oncologista, que precisa comunicar isso ao paciente e familiares, e, principalmente, para estes, que irão receber esse prognóstico negativo. E foi com essa perspectiva que um paciente me procurou há algum tempo, porém, decidido a lutar por sua vida.





Em nossa primeira conversa, ele destacou: sabia que não havia mais solução para seu caso, mas estava disposto a tentar algo mais, mesmo que fosse experimental. Esse senhor, com aproximadamente 70 anos, tinha passado por todas as opções terapêuticas convencionais, como anticorpos-monoclonais anti-EGFR, quimioterápicos e drogas antiangiogênicas, para tratar um câncer de intestino avançado. A despeito de todas as tentativas, a doença evoluía.

Após avaliar todo o cenário, propus que ele fizesse, então, uma biópsia líquida, para ver se detectávamos alguma alteração passível de tratamento alvo-molecular. Qual foi minha surpresa quando o teste genético feito com DNA do tumor (DNA tumoral) circulante em seu sangue identificou uma hiper-expressão do gene ERBB2, o que causava a hiper-expressão tumoral de uma proteína chamada Her2

Identificada essa situação, ele fez um tratamento personalizado conforme a característica genética do tumor, pois utilizamos uma combinação de medicamentos anti-her2, como fazemos com tumores de mama e de estômago, e ele teve uma resposta muito positiva, mantendo-se bem até hoje. Deixamos claro que se tratava de um tratamento experimental para câncer de intestino, e o paciente, então, optou por comprar a medicação.


O caso dele chama atenção para o avanço no diagnóstico genético e para a possibilidade de utilizar algumas drogas ainda em fase experimental, o que pode ampliar as chances e a qualidade de vida de um paciente em fase terminal.

Entre essas novas abordagens está a chamada biópsia líquida, uma tecnologia cuja indicação inicial para o câncer de pulmão, vem sendo ampliada para a análise genética de outros tipos de tumores. Trata-se de um teste genético que avalia mutações, fusões e amplificações em certos genes.

A principal diferença em relação à biopsia tradicional (somática ou tumoral) é que, na biópsia líquida, extraímos o DNA do tumor circulante no sangue do paciente, ao contrário da tradicional, em que o DNA tumoral é extraído de um fragmento do tumor, ou de uma metástase, retirado do paciente em uma cirurgia ou biópsia. Extrair o DNA do sangue é possível porque frequentemente as células cancerígenas morrem (apoptose), liberando seu DNA no sangue; ou são lesadas (necrose) – até mesmo pelo sistema de defesa do paciente – permitindo a liberação do DNA na corrente sanguínea.



Usa-se uma tecnologia extremamente avançada que permite extrair o DNA, fazer o sequenciamento genético e avaliar as alterações genômicas sem a necessidade de uma cirurgia para retirada do tecido. Mesmo sendo uma cirurgia simples, eventualmente pode levar a riscos. Já tivemos paciente que fez uma punção-biópsia por agulha para retirada de tecido de uma metástase do pulmão e teve pneumotórax, um acumulo de ar no tórax. A biópsia líquida, por sua vez, é um procedimento inócuo, sem riscos para o paciente, uma vez que extraímos o DNA com uma simples coleta sanguínea.

Muitas vezes, a biópsia realizada no tumor inicial, quando o paciente descobriu a doença, não reflete a realidade da tumor depois de alguns meses ou das metástases que ocorreram. Por isso, a principal vantagem da biópsia líquida é ter um retrato atual do tumor, que sofreu alterações genômicas ao longo do tempo.

Outra vantagem da biópsia líquida é que mesmo a metástase é heterogênea, ou seja, cada pedacinho pode ter um perfil genômico diferente de outro ponto da metástase. Então, quando você pega só um pedaço de tecido, não terá o retrato completo. Já na biópsia líquida, exemplares das células tumorais de todo o tumor estão em circulação no sangue e você tem um retrato mais completo.


Hoje, temos quatro aplicações possíveis para a biópsia líquida. Em primeiro lugar, quando não há material genético tumoral armazenado em parafina ou se esse material não for de qualidade, fazemos a biópsia líquida para saber quais são as mutações e tratar o tumor conforme a mutação encontrada, com uma droga alvo-molecular ou imonoterápica, dependendo do que for encontrado.

Em segundo lugar, quando ocorre resistência ao tratamento instituído inicialmente pois a biópsia líquida permitirá um retrato atual da evolução do tumor (as chamadas mutações secundárias).

Existem outras aplicações que cada vez serão mais usadas, como avaliar prognóstico. O paciente passa pela cirurgia de retirada do tumor em fase inicial e você precisa avaliar se será necessária a quimioterapia adjuvante. Vários estudos mostram que se você faz a biópsia líquida umas três semanas depois e não encontra DNA tumoral, possivelmente não será necessário o tratamento quimioterápico, pois o prognóstico é bom.


Uma outra quarta indicação, mas ainda experimental, é a detecção precoce. Muito antes de o tumor mostrar algum sintoma e sinal ou mesmo aparecer numa tomografia ou PET-CT, o DNA tumoral já circula no sangue, mesmo numa fase muito inicial. E os estudos mostram que a biópsia líquida já consegue detectar esse DNA tumoral, o que significa diagnóstico e tratamento muito mais precoces, com chances muito melhores de cura.

Hoje, existem duas abordagens para retirada desse material genético do tumor. Na primeira e com indicação mais comum, extraímos o DNA das células tumorais para sequenciamento do DNA; e na segunda extraímos as células inteiras, chamada CTC – Biopsia para Obtenção de Células Tumorais Circulantes. Normalmente, essa segunda opção é usada para fazer a contagem de células tumorais e assim ter um prognóstico pós-operatório do tumor. Raramente as utilizamos para sequenciar seu DNA.

Mas existem desvantagens ainda em discussão sobre o uso da biópsia líquida. Uma delas é a escassez de DNA tumoral em comparação com a biópsia tradicional. Você consegue extrair cerca de 1% de DNA tumoral, o que corresponde a menos de 10 nanogramas, enquanto na biópsia com material conservado consegue-se 20% de DNA tumoral. O grande problema disso é o resultado falso-negativo. Se der negativo, você não sabe se deu negativo mesmo ou se simplesmente não há material suficiente.


Para resolver isso, é necessário usar tecnologias de altíssima sensibilidade, que conseguem estudar o DNA e genoma em amostras pequenas. Existe tanto o Sequenciamento de Nova Geração – NGS, com a chamada captura híbrida, quanto o PCR Digital em Gotas, em que somos pioneiros no uso no Brasil. Nessa tecnologia, cerca de 20 mil gotinhas de material contendo DNA são analisadas por meio de uma Reação em Cadeia de Polimerase - PCR individualmente, ampliando sobremaneira a sensibilidade e a segurança do resultado.

Então, com o avanço dos estudos, acredito que, em breve, essa tecnologia estará cada vez mais sendo utilizada para ampliar as possibilidades e chances de tratamento eficaz para os pacientes de câncer. Estamos avançando, sim. E essa é apenas uma das tecnologias que estão em desenvolvimento.

 

*André Murad é oncologista, pós-doutor em genética, professor da UFMG e pesquisador. É diretor-executivo na clínica integrada Personal Oncologia de Precisão e Personalizada. Exerce a especialidade há 30 anos, e é um estudioso do câncer, de suas causas (carcinogênese), dos fatores genéticos ligados à sua incidência e das medidas para preveni-lo e diagnosticá-lo precocemente.