Recentemente, um paciente brasileiro com linfoma difuso de grandes células B (tipo de tumor que se origina nas células do sistema linfático) foi destaque na imprensa nacional ao ter seu quadro de saúde, em fase terminal, revertido após um tratamento experimental denominado terapia de células CAR-T.
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A pesquisa trabalhou com células CAR-T para encontrar respostas especificamente para linfomas e leucemias, ambos derivados de células linfáticas do tipo B. Trata-se de uma terapia em que se usa a junção de dois ou mais DNAs (ou quimerismo).
“E o que é isso, Doutor?”
Resumindo bem, um dos principais tipos de células de defesa do corpo, chamado linfócito T, é removido de amostras de sangue do paciente. Então, esse linfócito recebe em seu núcleo um vetor viral (um vírus cujo material genético é alterado em laboratório, geralmente retrovírus) acoplado a um antígeno (uma substância que desencadeia a produção de anticorpos). No caso da leucemia e linfoma de célula B, como o paciente do estudo, trata-se do antígeno (proteína) CD19.
Posteriormente, esse linfócito T modificado é expandido e reinfundido no paciente. Uma vez no organismo, o linfócito modificado atua como míssil teleguiado, que procura, ataca e destrói as células que possuem em sua superfície esse antígeno CD19. No caso, apenas as células tumorais leucêmicas ou do linfoma a ser tratado.
Ou seja, um tipo de terapia totalmente personalizada e individualizada, feita “sob medida”, a partir das células de defesa do próprio paciente. Claro, ainda é algo restrito aos linfomas e leucemias, mas, à medida que outros antígenos forem sendo identificados, poderá ser útil no tratamento de outros tipos de tumores.
Essa abordagem da personalização das terapias, inclusive, é a grande tendência atual. Acredito que a quimioterapia, que é um tipo de terapia empírica, não dure mais que uma década. À medida que descobrimos novas drogas, combinações de drogas alvo, anticorpos e imunoterapias, a tendência é reduzir o uso das terapias menos inteligentes, que lesam não só células tumorais, como também as normais.
O avanço em novas terapias acontece junto com a evolução da oncogenética e oncogenômica, que permitem conhecer a estrutura das mutações celulares e identificar características dos tumores por meio do DNA.
Existem dois tipos de mutação: a mais comum é a somática ou tumoral, que acontece somente no local onde o tumor está se desenvolvendo. Ou seja, se o tumor é no pulmão, a mutação não vai estar presente em células de outro órgão. Então, fazemos um teste genético no tumor, usualmente, por meio de um sequenciamento de nova geração (NGS) e, algumas vezes, por meio do DNA periférico do tumor circulante no sangue do paciente, a chamada Biópsia Líquida.
Existe também a mutação germinativa, que é herdada. Ou seja, a pessoa nasce com essa mutação presente em todas as células do corpo, determinando o aparecimento do câncer ou de outras doenças hereditárias. Nesses casos, extraímos o DNA daquela pessoa por meio do sangue ou saliva, com um pequeno raspado na mucosa da boca. O sequenciamento desse DNA nos permite identificar as mutações herdadas.
Detectar as mutações existentes no tumor permite selecionar o melhor tratamento, em geral chamado alvo-molecular, dependendo do tipo de mutação e do tipo de célula. É interessante observar que esses dois tipos de mutações respondem a tratamentos personalizados da mesma forma, sendo necessário apenas definir exatamente qual é a mutação causadora daquele tumor.
Um exemplo clássico são os tumores causados pelas mutações nos genes BRCA1 e BRCA2, que respondem ao tratamento através do emprego de drogas inibidoras de uma enzima denominada PARP (poli-ADP-ribose polimerase). Tanto faz se você acha essas mutações na saliva, no sangue ou tumor. A resposta será a mesma, independentemente de ser uma mutação herdada ou adquirida.
O detalhe vai apenas para qual exame vamos indicar. Se a doença é hereditária, iremos encontrar a mutação tanto no sangue quanto no tumor, uma vez que as mutações herdadas estão em todas as células do corpo. Mas se for somática (adquirida), só vamos encontrar a mutação no tumor. Por isso, a tendência atual é começar a investigação genética no tumor, pois ali, poderemos identificar a mutação, seja ela somática ou germinativa.
Calcula-se que, em até 30% dos casos de câncer, seja possível encontrar uma mutação (ou alvo) passível de tratamento alvo-molecular por meio dos testes genéticos. Nesses casos, se houver droga aprovada com indicação de bula, estamos autorizados a tratar com uma droga personalizada para aquela mutação específica. É o que acontece no adenocarcinoma (câncer de pulmão), em que há 35% de chances de identificarmos algum tipo de mutação para a qual já existe um tratamento especifico, como as mutações dos genes EGFR e BRAF e fusões dos genes ALK, ROS1 e NTRK. Cada um deles demanda um tipo de tratamento especifico.
Por outro lado, há outros tipos de alterações genéticas que podem ser sensíveis a imunoterapia, a exemplo do caso de elevação da instabilidade de microsatellites - MSI no tumor. E também altos níveis da proteína PDL-1, que é identificada com um exame chamado imuno-histoquímica e que também pode indicar sensibilidade do tumor à imunoterapia.
Assim sendo, na atualidade, quase sempre acabamos lançando mão, nas fases avançadas do tumor, dos testes genéticos, seja por imuno-histoquímica, Sequenciamento de Nova Geração – NGS, por Reação em Cadeia de Polimerase – PCR ou outros métodos como o Sanger, FISH, etc.
A possibilidade de se fazer esse tipo de tratamento inteligente significa oferecermos um tratamento direcionado, com a convicção de maior chance de sucesso do que em um tratamento empírico. Significa que, provavelmente, a toxidade é menor, porque você vai atuar exclusivamente nas células cancerígenas. Lógico, todo tratamento pressupõe algum efeito colateral. Mas, em geral, os efeitos são menos deletérios para o paciente do que em uma quimioterapia.
A oncologia de precisão ou personalizada com tratamento feito em base individual, principalmente em base genética, já é realidade e irá se tornar cada vez mais presente. Um benefício para oncologistas que têm ferramentas mais eficazes para trabalhar e, claro, para pacientes, que têm opções mais direcionadas, menos tóxicas e mais assertivas. Contudo, para finalizar, enfatizo: como sempre digo, a prevenção por meio da mudança positiva dos hábitos de vida e do conhecimento sobre as mutações herdadas são as melhores formas de lutar contra o câncer!
Você tem dúvidas? Mande pra mim: andremurad@personaloncologia.com.br
*André Murad é oncologista, pós-doutor em genética, professor da UFMG e pesquisador. Exerce a especialidade há 30 anos, e é um estudioso do câncer, de suas causas (carcinogênese), dos fatores genéticos ligados à sua incidência e das medidas para preveni-lo e diagnosticá-lo precocemente.