Há pouco mais de dois anos, tive um paciente relativamente jovem, com cerca de 51 anos, diagnosticado e tratado de um sarcoma (tumor na musculatura da coxa). Um ano depois, detectei um novo tumor, um câncer de próstata. Devido ao histórico familiar dele, com vários tipos de câncer em pessoas abaixo dos 55 anos, suspeitei da Síndrome de Li-Fraumeni (LFS), que é causada pela mutação do gene TP53.
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“Para que serviu o teste genético, então?”, o leitor deve estar se perguntando.
Uma das filhas desse paciente, logo após o falecimento dele, me procurou, pois, em relação às síndromes hereditárias, um das grandes cartas na manga é justamente poder rastrear a família toda e, assim, fazer um aconselhamento genético para cada indivíduo. Então, essa paciente, que tinha em torno de 30 anos, assustada com o problema da família e do pai, consultou-se comigo. Apesar de ser totalmente assintomática, fizemos o teste genético nela e confirmamos que também tinha a mutação do gene TP53, mas com uma variante chamada de R337H.
Abro um parênteses para um fato interessante. A mutação do gene TP53 com essa variante específica está ligada à história do Brasil. Pesquisas indicam que essa variante foi trazida por um tropeiro europeu, que se instalou na região do Paraná. A partir da descendência desse tropeiro, várias pessoas tiveram a mesma mutação, a ponto de, hoje, ser uma das síndromes mais comuns nos três estados do Sul. Acredita-se que, em Curitiba, uma em cada trezentas pessoas tenha essa mutação.
Voltando à paciente, de posse dessas informações e do diagnóstico do exame genético, eu fiz um rastreamento inclusive do abdome dela com uma ressonância nuclear magnética. Felizmente (do ponto de vista do diagnóstico precoce) detectei um nódulo ainda bem pequeno na glândula adrenal (ou suprarrenal) direita com grande sugestividade de malignidade. Realmente, após os exames complementares, confirmamos o diagnóstico de carcinoma adrenal. A paciente, depois da cirurgia, está tecnicamente curada, devido à intervenção cirúrgica precoce.
Conto esse caso para exemplificar como o check-up oncológico preventivo, com o teste genético, quando há suspeita de síndrome hereditária, pode prevenir, ajudar e até mesmo curar uma pessoa por meio do diagnóstico precoce. Nesse caso, descobrimos um tumor extremamente agressivo e invasivo ainda em estágio inicial em uma pessoa que não tinha nenhum sintoma.
Essa paciente foi tratada e anualmente é submetida a uma ressonância de corpo inteiro. Normalmente, a Síndrome de Li-Fraumeni (LFS) torna as pessoas muito sensíveis a radiação, inclusive, às radiações de mamografia e de tomografia, que podem ser o gatilho para aparecimento de um câncer. Então, substituímos esses exames por uma ressonância, pois esse exame não produz radiação. São cuidados que não seriam possíveis se não tivéssemos esse diagnóstico.
Constantemente, vejo matérias e artigos subestimando as síndromes hereditárias com o argumento de que “só 15% dos cânceres são hereditários”. O que devemos lembrar é que não se trata de apenas um número, mas de vidas, da redução da mortalidade por meio do diagnóstico preciso para as pessoas que têm as síndromes hereditárias. Não são só 15%! São milhares de pessoas. No Brasil, temos 600 mil novos casos de câncer a cada ano. 15% de 600 mil são 90 mil. Isso mesmo. 90 mil pessoas que poderiam receber um acompanhamento personalizado para detectar precocemente e até evitar o aparecimento do câncer. É um número elevado e bastante representativo, principalmente, pelo alcance das medidas preventivas, de rastreamento precoce e das chances de cura.
Estima-se que pelo menos 60% a 65% dos cânceres no mundo poderiam ser evitados ou detectados precocemente, o que teria um impacto muito grande nas taxas de cura e redução de custo do tratamento. Imagine o impacto positivo em se adotar a abordagem do check-up oncológico preventivo, por exemplo, no sistema público de saúde. Nós temos a universalização da saúde por uma cláusula pétrea da Constituição: a saúde é dever do Estado. Então, quanto mais preventiva for abordagem, melhor será para o Estado e para as pessoas que usam o Sistema Único de Saúde (SUS). Teremos menos gastos e poderemos usar os recursos de forma mais inteligente em outros programas de prevenção, em vacinas, em medicina de família, em postos de saúde.
O check-up oncológico é direcionado, diferentemente do cardiológico ou do geral. Acredito que o primeiro passo deveria ser o treinamento dos médicos generalistas para que eles pudessem identificar as pessoas com maior risco genético e ambiental de se desenvolver algum tipo de câncer. Aí, sim, poderíamos fazer um trabalho bastante especializado com a oncogenética.
O melhor especialista para conduzir esse processo é um oncogeneticista, que conhece os fatores genéticos e epigenéticos (fatores ambientais, alimentação, obesidade, sedentarismo, tabagismo, etilismo, produtos ocupacionais cancerígenos). Toda essa identificação de risco deve ser aplicada e, se a pessoa se encaixar em um grupo de risco para ter câncer - por questões hereditárias ou ambientais - será desenvolvido o programa de prevenção, incluindo uma dieta equilibrada, controle de peso etc.
Algumas síndromes, como aquelas causadas pelas mutações nos genes BRCA1 e BRCA2, envolvem até mesmo as cirurgias redutoras de risco, com a remoção preventiva de mamas e ovários. Para mutação do gene chamado RET, que indica uma forte possibilidade de desenvolvimento do câncer de tireoide, podemos sugerir a retirada preventiva dessa glândula. Já para a mutação do gene CDH1, que muito precocemente resulta em um grave câncer de estômago, a chamada Síndrome do Câncer Hereditário Difuso, muitas vezes, indicamos a remoção preventiva do estômago precocemente, entre os 20 e 25 anos de idade.
Mas há outras ações preventivas. Na Síndrome de Lynch, que predispõe aos cânceres de intestino e útero, sabemos que pequenas doses de aspirina podem prevenir esses tumores. Então, em alguns casos, lançamos mão de um medicamento para mudar a história da doença. E nos casos em que não é possível prevenir, aumentamos o rastreamento e a chance de detectar a doença precocemente, quando o tratamento ainda é curativo. Evitamos, assim, as terapias mais caras como quimioterapia, radioterapia, imunoterapia, terapia alvo molecular.
Por tudo isso, o diagnóstico dessas síndromes é muito importante. E como suspeitamos? Normalmente pessoas com muitos casos de câncer na família, do mesmo tipo ou de tipos diferentes, em geral, em idade mais jovem. Então, convido você, leitor, a refletir sobre a saúde da sua família e a procurar ajuda se achar que se encaixa nesse perfil. Mais que isso, convido você a compartilhar essa informação com todas as pessoas que tiver contato. Quem sabe, você estará ajudando alguém a se prevenir e a evitar um câncer no futuro?
Você tem dúvidas? Não hesite, fale comigo:andremurad@personaloncologia.com.br