Sepsis e a burocracia letal: auditorias distantes dos leitos botam pacientes em risco

Pacientes com septicemia devem ser atendidos até 1 hora após chegar ao hospital, mas atrasos são comuns, especialmente em hospitais públicos

Jair Amaral/EM/D.A Press - 24/03/2009
Hospitais lotados, com macas em corredores, têm consequências graves e letais, principalmente para os mais pobres (foto: Jair Amaral/EM/D.A Press - 24/03/2009)

Na semana anterior inauguramos esta coluna com uma discussão sobre a importância da septicemia, ou infecção generalizada, enquanto um problema de saúde publica. Vimos, que infecções aparentemente banais podem levar a quadros fatais em poucas horas caso não sejam tratadas rápida e assertivamente.

Pacientes em tratamento ou não de uma infecção, ao se apresentarem com alteração do estado de consciência, frequência respiratória aumentada (acima de 22 movimentos respiratórios por minuto) e pressão arterial máxima abaixo de 100 mmHG, devem ser avaliados por um profissional de saúde o mais breve possível. Atrasos acima de 1 hora no início do tratamento desses pacientes podem ser fatais. Vimos também que estudos projetam 5,3 milhões de mortes por Sepsis no mundo  e 230.000 óbitos /ano no Brasil.

O envelhecimento da população, o acesso a tratamentos mais agressivos e que reduzem a imunidade, são fatores que aumentam os riscos de ter infecções e Sepsis. Além disso, o diabetes, a obesidade, a hipertensão, o consumo de álcool em excesso e o hábito de fumar aumentam os riscos de infecções e consequentemente de Sepsis.


A mortalidade por Sepsis no Brasil é semelhante à do infarto agudo do miocárdio, cerca de 20 vezes maior que a Aids e quase 10 vezes maior que a do câncer de mama.

A taxa de mortalidade de 55% no Brasil é maior que na Austrália (22%),Canadá (32%), Alemanha (36%), Índia (35%) e Argentina (45%). Sim, nossos índices são piores que o de países em desenvolvimento como Índia e Argentina, nosso vizinho, também com problemas econômicos e sociais graves.

Pacientes atendidos no setor público com Sepsis tem mais que o dobro de chance de morrer em relação aqueles que se internam no setor privado (42,2% X 17,7 %) . As imagens de hospitais lotados com pessoas internadas em macas no meio de corredores, que frequentemente assistimos em reportagens, tem consequências graves e letais, principalmente para os mais pobres que recorrem a serviços públicos. 

O que tem de diferente nos serviços privados e falta nos públicos? Os insumos básicos necessários a realização de um conjunto de ações essenciais no atendimento de pacientes sépticos nas primeiras 6 horas depois de chegar ao pronto atendimento. 

Estudo conduzido pelo Instituto Latino Americano de Sépsis (ILAS) em hospitais públicos e privados brasileiros mostrou que apenas 44 % dos hospitais públicos possuíam todos aqueles itens, enquanto nos hospitais privados eles estavam presentes em 77% das unidades avaliadas. O estudo considerou uma lista com 8 itens essenciais para uma atenção minimamente adequada, tais como disponibilidade de culturas para identificar os microrganismos responsáveis pela infecção, antibióticos, medicamentos para manter a pressão arterial em níveis adequados e exames laboratoriais básicos para adequado manejo das alterações decorrentes da Sepsis.

 

Apesar de melhor equipados com estes itens básicos, não significa que os pacientes atendidos na rede privada recebam no momento ideal um dos itens essenciais para o adequado manejo da Sepsis: o antibiótico.

Antibióticos devem ser administrados preferencialmente dentro da primeira hora da chegada de pacientes a um pronto atendimento diagnosticados com um quadro séptico.  A cada hora de atraso na administração desses medicamentos, o risco de morrer aumenta de 7 a 10 %, dependendo das condições clínicas de base de cada paciente.

Ou seja, nesses casos, tempo é literalmente vida. Entretanto, entraves burocráticos inadmissíveis impostos às equipes assistenciais geram atrasos e reduzem hora a hora a chance de sobrevivência dos pacientes, particularmente daqueles mais frágeis. Essa situação não melhora caso os pacientes já estejam internados e necessitem antimicrobianos mais modernos e destinados a infecções por bactérias super-resistentes, o que infelizmente tem se tornado cada vez mais frequente na comunidade e hospitais de todo mundo.

Por vezes, temos que esperar dias para termos autorizações de auditorias distantes da beira do leito dos pacientes para podermos iniciar o medicamento mais adequado ao tratamento. Controlar e estabelecer critérios de uso desses medicamentos é importante para preservarmos um arsenal cada vez mais raro para fazer frente a microrganismos de tratamento complexo. Entretanto, ferir princípios assistenciais fundamentais para tratar pacientes graves em nome da racionalidade econômica é eticamente inadmissível. Certamente, compatibilizar o uso racional com a necessidade dos pacientes é um desafio complexo, mas plenamente alcançável.

Nesse ponto, clamo pela tecnologia! Robôs programáveis com algoritmos independentes, livres de conflitos de interesse e atualizados pela literatura mais atual possível, seriam mais ágeis que os processos “humanos” atuais. Robôs não dormem, assim como os profissionais que permanecem de plantão em serviços de urgência e necessitam responder rapidamente às mudanças súbitas do quadro clinico de pacientes graves.

Outro aspecto fundamental para o tratamento de pacientes com infecções graves é o diagnóstico no tempo mais curto possível do microrganismo causador da infecção. Métodos convencionais de microbiologia nos permitem um diagnóstico em aproximadamente 3 a 5 dias. Neste período, temos que escolher o antibiótico de maneira empírica, o que, apesar de ter bases técnicas, não está isento de erros. Por outro lado, se errarmos na escolha por 3 a 5 dias, pode ser fatal. Conclusão, temos que usar drogas de espectro amplo, ou seja, que reduzam a nossa chance de errar. Com isto, alteramos os microrganismos que compõem e habitam nosso intestino, pele, etc; levando a seleção de seres extremamente resistentes e quase intratáveis.

Para evitar esse ciclo vicioso de geração de bactérias resistentes, a nossa opção é diagnosticar mais rápido e precisamente o agente causal da infecção e trata-los da forma mais assertiva possível. Inúmeros estudos tem demonstrado que esses métodos, além de permitirem o diagnóstico em algumas horas, trazem economia de vidas e recursos, tanto para hospitais públicos quanto privados. Aqui, mais uma vez, a “burocracia letal”, aliada a uma gestão pouco sensível ás necessidades reais do dia-dia dos pacientes e profissionais que os atende se faz presente, causando prejuízos enormes para as próprias fontes financiadoras.

Esse cenário fica ainda mais dramático em países com menor governabilidade. Ou seja, quanto mais corrupto for uma país, mais ele consome antibióticos e mais ele convive com bactérias super-resistentes. Foi o que demostrou um estudo publicado na plataforma PLOS, em 18 de Março de 2015, pelo Political Risk Group (PGR). O PGR  é uma entidade internacional que se propôs a desenvolver um índice que mede o grau de corrupção existente em diferentes países da Europa e correlaciona-los à taxa de resistência das bactérias identificadas em infecções nestes mesmos locais. O resultado apontou uma relação direta entre corrupção, consumo de antibióticos e resistência bacteriana. Ou seja, quanto mais corrupto era um país, mais ele consumia antibióticos e com mais bactérias multirresistentes a sua população convivia. Merece destaque o fato da resistência microbiana aumentar de forma significativa a chance de óbito por Sepsis. Não há surpresa nesse resultado: -baixa governança, muita lambança!

Fico pensando se o Brasil tivesse entrado neste estudo. Certamente sairíamos com a medalha de ouro, visto que, temos um dos mais altos índices de resistência bacteriana do mundo. Trágica e vergonhosa medalha de ouro.

Na próxima semana veremos como surgem essas bactérias no planeta, tanto na comunidade quanto nos hospitais, e o que nos cabe fazer em nosso dia a dia para controla-las. 

 

Se você tem dúvidas e perguntas, fale comigo:cstarling@task.com.br