Cera de ouvido é usada para diagnosticar o câncer

Pesquisa da UFG, inédita no mundo, pode revolucionar a área oncológica por identificar a doença em exame rápido e de custo reduzido; próximo desafio é o financiamento

Laura Valente 02/09/2019 12:58
Natalia Cruz (Secom/UFG)/divulgação
Descoberta da UFG relaciona cera de ouvido ao diagnóstico do câncer (foto: Natalia Cruz (Secom/UFG)/divulgação)
De uma hora para outra, o professor Nelson Roberto Antoniosi Filho ficou famoso. Só nesta segunda-feira, recebeu dezenas de pedidos de entrevistas vindos de veículos de comunicação de todo o país. E não é para menos. Ele coordena a pesquisa da Universidade Federal de Goiás (UFG) que fez uma descoberta e tanto: o uso da cera de ouvido no diagnóstico do câncer. Inédita, a pesquisa promete revolucionar o tratamento da doença no Brasil e, quiçá, no mundo. 
 

“Publicamos o estudo em janeiro. Trata-se de uma pesquisa inédita no mundo e capaz de revelar o diagnóstico para todos os tipos de câncer com precisão, no prazo de 5 horas. Além de não ser invasivo, o exame é muito mais barato em comparação a um diagnóstico de imagem, por exemplo. Nossa expectativa é de que custe cerca de R$ 400 em laboratórios particulares. Outro mérito é a possibilidade do diagnóstico precoce, uma arma e tanto no combate ao câncer já que quanto mais cedo a doença é descoberta maiores são as chances de cura”, destaca. 

Como funciona 


De acordo com o estudo, realizado no Laboratório de Métodos de Extração e Separação (Lames), ligado ao Instituto de Química (IQ) da UFG,  basta um exame clínico da cera de ouvido para detectar os vários tipos de câncer: carcinoma, leucemia ou linfoma.

O processo todo permite que em cinco horas seja verificado se o paciente tem ou não câncer. A análise pode ser feita em até sete dias a partir da data da coleta. "É bastante vantajoso, pois, além de não ser invasivo, praticamente todas as universidades brasileiras têm a tecnologia adequada e a instrumentação necessária para se fazer esse tipo de análise", pontua o professor. 

Por enquanto, não é possível identificar o órgão ou órgãos afetados pela doença. Mas chegar lá é possível, segundo o professor. Vale ressaltar que a pesquisa com a cera de ouvido elaborada pelo grupo também já é capaz de diagnosticar diabetes e a expectativa aponta para mais descobertas relacionadas a doenças como Alzheimer, autismo e depressão, entre outras.  

“Do ponto de vista químico, a cera é um concentrado de tudo aquilo que nossas células produzem, uma impressão digital do metabolismo. Na análise, conseguimos identificar substâncias produzidas por células cancerosas em menor ou maior concentração”, explica o professor. Ou seja, se o indivíduo está doente, a composição da cera será diferente à produzida por um indivíduo saudável.  
 
Natalia Cruz (Secom/UFG)/divulgação
Exame que diagnostica o câncer a partir da análise da cera dura o total de 5h (foto: Natalia Cruz (Secom/UFG)/divulgação)
 
 
Ele afirma que uma pequena quantidade de amostra de cera já contém elevada concentração de substâncias de interesse. "A análise do cerume consegue identificar 158 substâncias metabólicas. Dessas, 27 discriminam a ocorrência de câncer".

Elaborado por João Marcos Gonçalves Barbosa e coordenado por Antoniosi, a pesquisa envolveu 102 voluntários

Os detalhes do estudo estão no artigo científico Cerumenogram: a new frontier in cancer diagnosis in humans, publicado no Scientific Reports Nature, veículo de comunicação dos mesmos editores da revista Nature, e teve impacto na comunidade científica mundial.

“Em um país que gastou de R$ 35 bilhões a R$ 50 bilhões no ano passado com o câncer, segundo estimativas da ONU, a pesquisa é relevante para a sociedade em geral, pois pode reduzir custos financeiros e sociais, salvando milhares de vidas.” O professor lembra que só no ano passado cerca de 225 mil pessoas morreram de câncer no país.  


Próximos passos 


Antoniosi lembra que a pesquisa é de domínio público (não é patenteada). “À medida que tenha sido publicado, o estudo está acessível para qualquer entidade. Nossa ideia é retornar para a sociedade o pagamento de impostos em ciência, tecnologia e inovação, além, é claro, de salvar vidas. No entanto, um próximo passo para que o exame se torne uma realidade nos hospitais e laboratórios do país é a continuidade do financiamento para a pesquisa.” 

Ele afirma ainda que o exame da cera pode ser mais preciso para o diagnóstico em geral em comparação com aqueles que já existem. “O exame de sangue, por exemplo, é usado para diagnosticar alguns tipos de câncer. Caso do PSA, por exemplo, como sinalizador do câncer de próstata. Já para outros tipos, há técnicas como a mamografia e outros exames de imagem. Daí a importância do exame da cera, que traz 100% de confiabilidade no diagnóstico e é mais acessível”, compara.   

O professor afirma que em breve a pesquisa tende a ser refinada. O porém, diz ele, é o agravamento da crise nas universidades públicas com o contingenciamento de recursos impostos pelo atual governo federal. “Já estamos sem recursos para pagar os serviços básicos para o funcionamento da universidade, como água e luz. Nossos alunos estão perdendo as bolsas e corremos o risco de não dar continuidade às pesquisas.” 
  

Entenda como o exame funciona 

O exame é feito a partir da coleta da cera de ouvido no laboratório com uma cureta. A amostra fica armazenada em um recipiente, que a isola do meio exterior, e é mantida a menos 20 graus celsius (-20%u2070 C) até fazer a análise. Na sequência, o produto é colocado em um frasco, que é selado e depositado em um compartimento aquecido.

O aquecimento faz com que os compostos voláteis da cera de ouvido passem para uma fase de vapor a qual é recolhida depois por uma seringa e introduzida dentro do equipamento (cromatógrafo a gás), no qual as substâncias são separadas e chegam a um outro aparelho (espectrômetro de massas), que revela quais são as substâncias presentes no material. É possível obter um perfil das substâncias presentes em indivíduos que têm câncer e em indivíduos que são sadios.
 
"Nós observamos que esses perfis são diferentes e com base nessas diferenças conseguimos montar um banco de dados e dizer se uma pessoa está ou não com câncer, inclusive quando se encontra em estágio inicial" , revela o coordenador. 

 
Repercussão 

 
Os resultados chamam a atenção da comunidade científica para a continuidade dos estudos.
 
Em Goiás, o Hospital Araujo Jorge deverá firmar parceria com a UFG para a ampliação dos estudos.
 
Em São Paulo, por solicitação do médico Luiz Juliano Neto, o hospital A.C.Camargo, referência internacional no tratamento e na pesquisa do câncer, também deseja firmar parceria em pesquisa com a UFG.
 
Uma das maiores autoridades mundiais em câncer de cabeça e pescoço, o oncologista Luiz Paulo Kowalski, também do A.C.Camargo, demonstrou grande interesse em contribuir com as pesquisas, por meio da coleta de material e validação dos resultados em pacientes já diagnosticados.