Ninguém está livre de viver uma adversidade. Na infância ou na idade adulta, eventos traumáticos podem ficar marcados na memória. Muitas vezes, abrem feridas com potencial real de influenciar o desenvolvimento pessoal, profissional, os relacionamentos e mesmo a saúde física e mental. É na fase infantojuvenil que o famigerado bullying, por exemplo, faz estragos, com impacto negativo para o bem-estar.
Outras vezes, crises surgem quando menos se espera, interferindo de forma avassaladora no cotidiano e obrigando o indivíduo a se posicionar diante de uma situação dolorosa.No entanto, a possibilidade de curar as feridas e seguir em frente é real. Nesta edição do Bem Viver, mostramos como o trauma mudou histórias de gente como a jornalista Rafaela dos Santos Lima, de 25 anos, que venceu a bulimia e escolheu a dança como ferramenta de apoio e superação.
Ou da psicóloga e advogada Juliana de Souza Ervilha, diagnosticada com esclerose múltipla e fibromialgia. Hoje, ela comanda redes sociais que ajudam outros pacientes a entender melhor as doenças e conseguir acesso a medicamentos. “Nenhuma dor é maior ou menor que outra. A minha vida de antes não existe mais, morreu. Mas optei por dar valor à minha nova vida, que pode ser ainda melhor e com mais significado que a anterior”, destaca.Também convidamos pedagogos e psicólogos para falar sobre como surgem os traumas e de que forma o indivíduo pode buscar apoio e ajuda para se reerguer.
Falar é um passo importante
Não guardar a dor para si mesmo configura uma das saídas para a cura. Psicóloga, que perdeu o marido por suicídio, hoje é especialista no tema luto e prevenção, e palestra em todo o país
Você aceitaria participar de um jantar cujo intuito é conversar sobre a morte? Pois saiba que a empreitada existe desde 2012 e já foi realizada milhares de vezes, em mais de 30 países. Em Belo Horizonte, a psicóloga Luciana Carvalho Rocha é uma das anfitriãs do evento. E não por acaso. Desde que perdeu o marido de forma traumática, ela se especializou em tanatologia, luto, prevenção e posvenção ao suicídio. “Apesar de eu ser psicóloga há duas décadas, o ocorrido me pegou totalmente desprevenida. Foi aquele impacto, susto, trauma. Fiquei catatônica, mas a preocupação com nossos dois filhos, que na época tinham 5 e 10 anos, me fez reagir”, lembra.
Durante o período de luto, Luciana conta que o apoio de familiares e amigos foi fundamental, assim como a decisão de falar a respeito da dor e da convivência com o companheiro, com o qual estava casada há 15 anos. “Desde o início, decidi que tinha que seguir em frente. E o que me ajudou muito foi falar sobre o ocorrido e sobre ele. Acredito que, diante de um evento traumático, é importante viver a dor e essencial poder falar sobre ela. O mesmo ocorre com a morte, com o luto, assunto que precisamos desmistificar”, afirma.
A cicatriz, revela, é permanente. Mas Luciana diz que um trauma pode ser também oportunidade de aprendizado e crescimento. “Se a pessoa decide tirar proveito da dor, pode se desenvolver como ser humano. Depois de sete meses da perda, resolvi que queria trabalhar com isso, com pessoas enlutadas. E me especializei em luto, cuidados paliativos e prevenção e posvenção ao suicídio. Hoje, viajo todo o Brasil ministrando palestras e ajudando outras pessoas, inclusive nas redes sociais e via Skype. Já atendi pacientes até dos EUA e da Europa. Recebo muito retorno positivo, o que gera gratidão: por meio da dor, a vida me ofereceu uma nova oportunidade”, conclui. A psicóloga psossui redes sociais no Instagram e no Facebook.
REDE DO BEM
Outro exemplo impactante de que é possível dar a volta por cima diante de adversidades vem da advogada e também psicóloga Juliana de Souza Ervilha. Atualmente com 40 anos, ela estava no consultório, atendendo um paciente, quando sentiu o sintoma do que seria, mais tarde, diagnosticado como esclerose múltipla. “Estava com 28 anos e havia acabado de me matricular na Faculdade de Direito. Quando recebi o diagnóstico definitivo, não tinha nenhuma referência sobre a doença, ainda pouquíssimo conhecida. Vivi um período muito difícil, pensei em desistir do curso, passei por todo o processo de perda de autoestima devido às crises, a ter que usar bengala, a ficar sem saber para quem contar ou não”, lembra.
No entanto, apesar das dificuldades, Juliana optou por enfrentar a doença de cabeça erguida e começou a reagir. “Com pequenas e grandes conquistas pessoais fui percebendo que minha vida antiga estava acabada. Mas que havia ganho outra, que poderia ser boa também. Enfeitei a bengala, quando me internava ia de pijama novo, de batom, fazia as unhas no hospital. A minha perspectiva passou a ser a busca da saúde e não apenas a de tratamento da doença.”
Com o tempo, as crises ficaram mais espaçadas. Juliana trabalhou um período na área de direito. Passou pela felicidade de um casamento e pela dor da separação. Num insight, decidiu fazer um Instagram para falar sobre a esclerose múltipla e os impactos da doença no cotidiano do paciente. Na primeira publicação, conquistou 40 curtidas. “Surpresa, pensei: olha, tem gente que dá importância para o que eu falo! Dali não parei mais. Hoje, falo que a vida me deu um limão e fiz dele uma limonada. Direcionei o canal para ajudar outras pessoas, inclusive a linkar a oferta gratuita de remédios a pacientes que precisam deles e não têm condições de comprar. A Rede do Bem também aborda a fibromialgia – diagnóstico que recebi há 4 anos e passei a tratar da mesma forma. Hoje, me orgulho de dizer que a rede social conta com 23 mil seguidores.”
Juliana destaca que a conta tem seções como depoimentos, novidades sobre as duas doenças, respostas com informações checadas e precisas, além de campanhas para a doação de remédios. O resultado é pura satisfação. “Sim, eu tenho esclerose múltipla e fibromialgia. Mas a minha vida e a de todos esses pacientes é preciosa demais para deixar a peteca cair. O valor que essa vida nova tem é imensurável, não chega aos pés da outra vida, a perfeitinha. Aprendi a me preocupar com essas vidas, e passar essa mensagem para mais e mais pessoas só me deixa mais feliz. Aprendi que nenhuma dor é maior ou menor que a outra. O dono da dor é quem sabe. Tive e tenho momentos difíceis, mas estou aqui com a minha família, com os amigos, seguindo e ajudando muita gente a ser feliz com a própria existência. Vale a pena viver!”
Dicas para reagir
A psicóloga Luciana Carvalho Rocha indica alguns passos para superar as dificuldades e seguir em frente. Confira:
» Aposte na flexibilidade: pessoas muito rígidas têm mais dificuldade de se adaptar a novas situações;
» Prefira a opção de focar nas coisas boas e não nas ruins. No caso de um luto, por exemplo, pense em como a pessoa viveu, que é muito mais do que a forma como morreu;
» Meditar ajuda a manter o equilíbrio e a aceitar mudanças;
» A revolta não ajuda: procure entender o que ocorreu e aceitar o que a vida coloca para você;
» Filtre os pensamentos; quem só pensa no negativo corre o risco de desenvolver ansiedade, depressão e outras doenças. É você o responsável por direcionar suas ações e pensamentos;
» Importe-se menos com a opinião dos outros e siga o seu coração. Cada luto é único e individual. Não há receitas prontas. Faça o que é bom para você;
» A dificuldade persiste? Procure ajuda profissional. Muitas vezes, a psicoterapia aliada a tratamento clínico com psiquiatra ajuda o indivíduo a superar um momento ruim ou um trauma;
» Viva o presente e não perca energia executando mais de uma atividade ao mesmo tempo. Seja inteiro naquilo a que se propõe a fazer;
» O momento de ser feliz é agora. Por isso, pense em fazer o que pode de melhor hoje;
» Lembre-se: a forma como olhamos para o mundo e para as situações faz toda a diferença. Procure ter gratidão pelo que você é e pela forma como vive.
Cinco perguntas para...
Ângela Mathyde Soares, professora, pedagoga, psicopedagoga, escritora e CEO da clínica Aprendizagem e Companhia - Saúde Integral
1) O que é um trauma?
O trauma é um dano emocional e ocorre mediante acontecimentos com os quais o indivíduo não dá conta de lidar, não elabora. Um trauma pode provocar vários sintomas emocionais, físicos, de relacionamentos e mesmo a síndrome do coração quebrado. Órgãos como pulmão, coração e rim sofrem muito com as questões dos traumas.
2) As crianças também têm sintomas que indicam traumas?
Sim. Sintomas recorrentes como barriga ou cabeça doendo, birra, medo de dormir (terror noturno) podem indicar que há problemas emocionais com as crianças.
3) O que causa os traumas infantis?
Situações de separação, como não dormir mais com os pais ou começar a ir para a escola, se mal trabalhadas podem gerar um trauma. Também o bulliyng ou o descaso pela história e/ou a presença da criança. Pais que acham que o social da criança é sair com eles, por exemplo, limitando o programa ao determinado por eles e não ao desejo do filho. Há toda uma gama aí de falta de cuidados que pode ter impacto emocional na criança.
4) Há dicas para observar se há algo errado?
A criança deve ser bem assistida em todas as fases do desenvolvimento. Então, os pais precisam saber o que ocorre na escola. Nunca agir com descaso para que o filho não tenha o sentimento de abandono. Estar atento à rotina, demandas e sinais que a criança dá. Mais uma vez, sintomas como sentir muito medo, presença de terror noturno, falta de apetite, fazer xixi ou cocô na calça com frequência, abusar da TV, internet e/ou dependência de jogos deve ser observado. Também tiques nervosos, mordidas, o comportamento agressivo, opositor em tudo, desafiador.
5) E como é possível buscar ajuda?
Há profissionais que ajudam na reorganização das funções no ambiente familiar, auxiliam o monitoramento da criança pelo responsável, no entendimento dessa relação. Alguns cuidados básicos devem ser sempre observados, como a atenção às falas na presença da criança. Ações como falar mal do cônjuge (do pai ou da mãe), por exemplo, geram estresse, sintoma que existe até em bebês. O ideal é pensar que todos os aspectos do desenvolvimento infantil devem ser bem trabalhados e bem assistidos.
Quem dança seus males espanta
Depois de bulimia, jovem recuperou a autoestima com terapia e rebolado. Para a psicologia positiva, 10 exercícios simples ajudam o indivíduo a olhar para si com mais empatia
“Fui uma criança gorda e sofri bullying toda a infância. Aos 11 anos, decidi emagrecer a todo custo e desenvolvi bulimia. Aos 16, fui internada com Índice de Massa Corporal (IMC) baixíssimo, tive um quadro sério de depressão e só então comecei a tratar com ajuda terapêutica e psiquiátrica”, relata a jornalista Rafaela dos Santos Lima, atualmente com 25.
Com a ajuda, Rafaela superou a doença, mas até hoje sente os reflexos dos tempos difíceis. “Lido com crises de pânico e acredito que esse quadro venha da infância, que ainda pesa, traz memórias ruins. Mas sou outra pessoa, trabalho, namoro, tenho paz em casa. Uma vida normal.”
Rafaela também aponta a dança como fortaleza. Ela integra o Twerk, grupo de dança do estúdio Paola Afrodite, que reúne mulheres em torno de ritmos variados, como o funk e o hip-hop. “É um estilo mais sensual, em que o grupo se apoia, se ajuda. Lá aprendemos a nos libertar de padrões. A não julgar e, consequentemente, a não sermos julgadas. Daí usamos pouca roupa e não nos importamos com questões estéticas, mas sim com a experiência. Participar desse grupo tem feito um bem enorme pra mim”, aponta.
Segundo especialistas, fazer algo de que gosta, cuidar de si mesmo e aprender a desfrutar as pequenas conquistas fazem parte do arsenal de possibilidades que podem levar o indivíduo a superar uma dor e a desenvolver a autoestima. Fortalecer a capacidade que todos têm de florescer e desenvolver potencialidades são ações trabalhadas pela psicologia positiva, abordagem surgida em 1998, nos EUA, e que vem ganhando visibilidade no Brasil.
A psicóloga Renata Livramento, especialista em psicologia clínica e coordenadora do MBA em psicologia positiva e desenvolvimento humano e da pós-graduação de educação positiva, ambos cursos da UNA, explica alguns fundamentos da abordagem. “A psicologia positiva tem uma visão integral do ser humano, enquanto a tradicional foca mais nos aspectos patológicos, de sofrimento ou disfuncionais. Não negamos essa parte, mas acrescentamos um estudo científico sobre a parte funcional que tem a ver com desenvolver potenciais, talentos, resiliência, melhorar o bem-estar e ajudar o indivíduo a ser mais feliz.”
CONCEITO DE FELICIDADE
Renata explica que, para a psicologia positiva, o conceito de felicidade remete a fatos do desenvolvimento individual, como ter um propósito de vida, experimentar emoções agradáveis (mas não o tempo inteiro), descobrir virtudes, forças, potenciais.
“Somos fruto tanto do biopsicossocial - em que sofremos influências de questões genéticas e evolutivas -, quanto do microambiente e macroambiente (família e sociedade). Cada indivíduo reage de maneira subjetiva e individual a esses aspectos. É claro que algumas condições ultrapassam as adversidades comuns, a exemplo da violência e/ou situações abusivas. Diante delas, o indivíduo sofre um nível de pressão tão alto que fica impactado. Alguns são mais resilientes e outros sucumbem ao trauma”, explica.
Ainda de acordo com a psicóloga, o trauma pode ser comparado a uma ferida. E assim como uma lesão - seja mais profunda ou superficial -, pode e deve ser tratado. Ela cita a psicoterapia, orientações com os pais, processos psicoeducacionais ou psicoterápicos como aliados do indivíduo que busca a cura para um trauma ou ferida. E afirma que, quando tratada e superada, uma situação de adversidade já não dói ou gera sofrimento, mas grandes aprendizados.
“Muitas vezes, a experiência do trauma transforma e fortalece o indivíduo”, afirma. A dica da especialista são exercícios que favorecem a espiral positiva, o que leva à geração de emoções mais agradáveis, além de cuidados com o bem-estar e a saúde. (Veja arte na página).
PAIS E FILHOS
Cristina Santos, psicóloga clínica especialista em casais e família, chama a atenção para a relação entre pais e filhos no contexto dos traumas, que conceitua como “alguma lembrança ou memória de sofrimento e dor que acompanha o indivíduo”.
Ela lembra que, mesmo sem querer, os pais podem carregar demais ao repreender uma criança e, com isso, provocar eventos negativos. “Pense num filho que ouve o pai ou a mãe dizer: 'Você é lerdo, não vai dar nada na vida'. Como ele ainda não tem a capacidade de elaborar aquele comentário, o absorve. A criança funciona como uma esponjinha e, por isso, esses traumas são mais gravados na infância. Já a influência ao longo da vida vai depender da capacidade de resiliência de cada um. Porém, é sempre bom ficar atento ao próprio comportamento em relação à educação dos filhos.”
Segundo Cristina, além de criticar e corrigir, o que é normal na relação dos pais com os filhos, o adulto também deve se lembrar de elogiar, incentivar. “Muitas vezes, o diálogo se resume a perguntar sobre a escola. Mas não pode ser só isso. É legal participar da vida da criança de forma positiva, buscando fortalecer a autoestima dela em todos os âmbitos. Inclusive quando o assunto é sério.”
Felicidade em ação
Fundadora do Instituto Brasileiro de Psicologia Positiva, a psicóloga Renata Livramento elaborou o e-book 10 práticas para uma vida mais feliz!, que traz exercícios que aproximam o indivíduo do bem-estar. Confira um resumo aqui e o conteúdo completo em www.felicidadeemacao.com.br.
- Relembre fatos positivos
No fim do dia, liste e escreva três coisas positivas que ocorreram até o momento e considere o que as causou.
Por que funciona: a prática solicita a você prestar mais atenção aos eventos positivos de sua jornada e a se engajar neles de forma mais completa.
- Pratique atos aleatórios de gentileza
Em pequenas ou grandes ações, os atos de gentileza geram efeitos profundos - não apenas para quem os recebe, mas também para quem os doa. Renata indica cinco ações em um dia da semana.
Por que funciona: pesquisadores acreditam que essa prática o faz sentir-se mais feliz porque isso faz com que você pense melhor sobre si mesmo e se torne mais consciente das interações sociais positivas.
- Exerça o perdão
Renata lista oito passos para o perdão, criados pelo pesquisador Robert Enright. Em alguns casos pode ser útil consultar um psicólogo ou psiquiatra, especialmente se você estiver passando por um evento traumático.
Por que funciona: praticar o perdão pode sintonizá-lo com a dor residual de sua experiência e incentivá-lo a encontrar sentido e alguma positividade nela.
- Faça um diário de gratidão
Pelo menos três vezes na semana escreva eventos e conquistas pelas quais é grato.
Por que funciona: apesar da importância de analisar e aprender com os eventos ruins, às vezes pensamos demais sobre o que não vai bem ou não é bom o suficiente. O diário de gratidão nos força a prestar atenção em coisas positivas e, portanto, mais sintonizadas com as pequenas fontes de prazer que nos cercam.
- Pratique a escrita expressiva
Durante 20min por dia, em quatro dias consecutivos, escreva seus sentimentos mais profundos sobre um abalo emocional que viveu. Explore o evento e descreva a forma como o afetou.
Por que funciona: eventos estressantes ou transições de vida reverberam e fazem o indivíduo se sentir menos conectado aos outros. A escrita expressiva nos permite dar um passo atrás por um momento e avaliar nossas vidas, numa ação que resulta em mais capacidade para lidar com os desafios. Transformar uma experiência complicada e confusa em uma história coerente pode fazer a experiência parecer mais gerenciável.
- Lembre-se: otimismo e felicidade podem ser aprendidos. Isso mesmo, é uma questão de escolha.