Movimentos precisos, visão em 360 graus e completa imersão em partes do corpo humano jamais vistas a olho nu. A cirurgia robótica tem promovido avanços revolucionários na medicina. Mas, ao contrário do que se pode supor, o procedimento não é comandado pelo robô. Ele é apenas um instrumento, de alta precisão, controlado pelo médico. Minas Gerais é o terceiro estado que mais faz esse tipo de procedimento no país. Com quatro bases instaladas em hospitais particulares de Belo Horizonte, a média de cirurgias já passou de 100 por mês. São Paulo, que tem 28 robôs operando, lidera a lista, seguido pelo Rio de Janeiro.
O Brasil é o país que mais faz cirurgia robótica na América Latina. Com pouco mais de uma década da chegada do primeiro robô, temos hoje 57 plataformas espalhadas por todas as regiões. Segundo dados da Intuitive Surgical, empresa detentora da única marca de robô do mundo, em 2018, foram realizados mais de 8 mil procedimentos em todo o território nacional. Em 2011, primeiro ano do levantamento, o país aparecia tímido nos gráficos, com 450 cirurgias.
Para entender como funciona essa tecnologia a serviço da saúde, a equipe do Estado de Minas acompanhou uma cirurgia robótica conduzida pelo urologista Pedro Romanelli, um dos primeiros cirurgiões mineiros a se especializar nessa área. Na sala de cirurgia do Hospital Felício Rocho, a equipe médica está preparada para conduzir uma intervenção de próstata. O robô entra em cena. Não é um ser de metal com braços e pernas semelhantes às humanas. À primeira vista, aquele equipamento enorme, acoplado ao paciente por quatro pequenos furos, que são os braços do robô, nem parece tão tecnológico. Mas basta esperar o procedimento dar início para entender a dinâmica da tecnologia.
Um braço do robô é equipado com uma câmera que gera imagem em alta definição, tridimensional e com a ampliação de até 20 vezes. “Nesta microcâmera do robô tem duas óticas, cada uma joga para um olho do cirurgião. É como se estivéssemos dentro da cavidade da barriga do paciente. Então a gente tem um nível de detalhe muito grande”, explica Romanelli.
O cirurgião comanda o trabalho operatório de um console. Ali, era dentro da sala de cirurgia. Mas pode ficar em qualquer lugar, inclusive em outra cidade, estado ou país. O robô foi desenvolvido nos Estados Unidos há mais de duas décadas, justamente para fazer cirurgias a distância. “A cirurgia robótica começou a ser desenvolvida na época da guerra, com a ideia de que os cirurgiões pudessem operar os soldados feridos longe dos campos de batalha”, explica o médico, que também preside a Sociedade Brasileira de Urologia, seccional Minas Gerais. Na prática, conduzir operações a distância ainda é muito pouco usado. Na maioria das vezes, o cirurgião fica é ao lado do paciente mesmo.
SINCRONIZAÇÃO
Domínio da técnica para comandar o robô é fundamental. Sentado na cabine de comando, o médico emite todos os movimentos que o robô vai executar. As mãos, manuseando uma espécie de joystick de videogame, e os pés, operando quatro pedais, trabalham de forma simultânea e sincronizada. “O robô reproduz os movimentos do médico, mas com mais delicadeza porque filtra o tremor. Além disso, ele consegue chegar em lugar em que a mão do cirurgião não consegue”, comenta Pedro Romanelli.
A pesquisa da Intuitive fez um mapeamento nacional das especialidades que mais operam por robótica. A urologia lidera o ranking, com mais de 4 mil procedimentos realizados em 2018. “A robótica foi desenvolvida, inicialmente pela empresa, pensando na cirurgia cardíaca. Mas eles falam que miraram o coração e acertaram a próstata”, comenta Pedro Romanelli. “A próstata também é um órgão que fica em um local escondido, onde é difícil a gente conseguir fazer essa cirurgia. E a delicadeza do robô nos permite fazer isso de uma forma mais precisa”, afirma. A cirurgia geral aparece em segundo lugar, com mais de 2 mil operações, seguida da ginecologia, com cerca de 1 mil procedimentos robóticos.
Menor tempo de recuperação
Principal vantagem da cirurgia robótica é encurtar o período de internação. Por outro lado, o preço do procedimento no Brasil ainda é muito alto em relação à operação convencional
Quando descobriu que a mudança de coloração do esperma era um dos sintomas de um câncer na próstata, o caminhoneiro Roberto Márcio Castro, de 53 anos, levou um susto. “Faço controle anual desde os 45 anos. Faço o exame de toque e todos os outros que os médicos pedem. Então, receber uma notícia dessa foi um baque. Nunca estamos preparados”, conta Roberto Márcio, que recebeu apoio incondicional das duas filhas e da esposa. “É a família que nos sustenta nessa hora”, comenta.
A decisão por uma cirurgia robótica veio depois de muita pesquisa. “Uma de minhas filhas é enfermeira. Ela me ajudou muito a pesquisar sobre o tratamento. Conversei também com pessoas que tinham feito a cirurgia robótica e todas falaram muito bem da recuperação”, recorda. Mas a decisão só veio mesmo depois de passar por três médicos urologistas. “Descobri que fazendo a operação robótica, teria muito menos chances de complicações, como a incontinência urinária, e até mesmo menos chances de ter problemas na vida sexual”, conta Roberto.
E foi o que aconteceu. Às 12h de 10 de fevereiro deste ano, ele entrou na sala de cirurgia do Hospital Matter Dei, e às 16h o procedimento acabou. “Quatro horas depois, eu já estava conversando. Tive algumas dores durante a noite, mas na tarde do outro dia já recebi alta”, diz Roberto Márcio. “A recuperação foi muito rápida. A gente precisa ficar com uma sonda nos sete primeiros dias, mas já caminhava, saía de casa desde o quarto dia.”
TRAUMA MENOR
Para o paciente, as vantagens em fazer um procedimento com o uso da tecnologia robótica em relação ao procedimento convencional, via laparoscopia, vão desde a segurança ao menor tempo de recuperação. “Todas as cirurgias minimamente invasivas (sem grandes cortes) fazem com que tenhamos um trauma muito menor, sangramento muito menor, menos chance de transfusão e complicações pós-operatórias”, afirma o urologista Pedro Romanelli.
Na contramão das indicações positivas de intervenções com uso da tecnologia estão os custos. A cirurgia robótica ainda é cara. O procedimento na próstata, por exemplo, custa em torno de R$ 40 mil, o dobro do preço de uma cirurgia convencional. Mas, para Roberto Márcio, os benefícios da recuperação valeram a pena. “Acho que com a tecnologia tem muito mais chance de dar certo. A recuperação da nossa saúde é a coisa mais importante que existe”, avalia o caminhoneiro, que voltou para a estrada 45 dias depois de se curar do câncer.
O alto preço da tecnologia é uma das grandes barreiras para o avanço e popularização do procedimento no país. “O robô é caro. Tem custo de aproximadamente R$ 12 milhões, sem imposto. Mas, hoje, no Brasil, já temos cinco hospitais públicos que têm essa plataforma”, comenta Pedro Romanelli. Minas Gerais ainda não tem o equipamento na rede pública de saúde. Por enquanto, somente São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande Sul conseguiram disponibilizar a cirurgia em hospitais públicos.
Outro entrave no acesso das pessoas ao procedimento é que os convênios de saúde não cobrem a cirurgia. “A Agência Nacional de Saúde define o que é cobertura obrigatória pelos planos, e o robô ainda não está incluído nessa lista”, explica o especialista.
CAPACITAÇÃO
O robô-cirurgião chegou em Minas há dois anos. De lá para cá, mais de 100 profissionais se certificaram para fazer esse procedimento. A médica Sálua Calil, oncologista e ginecologista, especializou-se em robótica em 2017, nos Estados Unidos. “Fiz minha certificação na Califórnia, onde fica a fábrica da Intuitive, que é o nosso robô aqui no Brasil”, conta a primeira mulher a operar com robô em Minas Gerais. “Sempre me interessei por cirurgia avançada. E a robótica nos permite fazer uma cirurgia de alta complexidade, com um alto nível técnico”, comenta.
Assim como Sálua, o médico brasileiro que tiver interesse em se especializar em robótica vai ter de fazer o curso fora do Brasil. O país ainda não disponibiliza a formação. Os centros de treinamentos mais próximos estão na Colômbia e nos Estados Unidos. “É um curso que dura dois dias. Temos aulas teóricas e práticas”, conta a médica. Mesmo após receber o certificado, o profissional deve fazer as primeiras 20 cirurgias acompanhado de um tutor. “Assim como quando a gente tira carteira de motorista e ainda não sabemos dirigir, a mesma coisa ocorre com a cirurgia robótica”, compara Romanelli, que, também, atua como orientador de profissionais recém-formados em hospitais de Belo Horizonte.
Três perguntas para...
Rafael Coelho, urologista especialista em cirurgia robótica do Hospital 9 de Julho, em São Paulo
1) Como fica a relação médico-paciente com a chegada do robô?
Creio que a automatização e a robotização da medicina vão gerar conflitos sim na relação médico/paciente, à medida que as relações se tornam mais distantes e o contato médico/paciente superficializado. Será uma nova era da medicina, focada em resultados, estatística e padronização de condutas que, sem dúvida, elimina laços de empatia, amizade e humanidade entre médicos e pacientes. É um desafio para nós manter as relações humanas em um primeiro plano com os avanços da medicina e ciência. Creio que em algum momento teremos de reavaliar esses rumos para saber se estamos no caminho certo.
2) Só o uso da tecnologia garante o sucesso do procedimento?
O sucesso do procedimento é totalmente dependente do cirurgião. As plataformas robóticas atuais funcionam como um sistema master-slave, em que os braços robóticos são controlados totalmente por um cirurgião. A plataforma oferece vantagens, como imagem magnificada, tridimensional, instrumentos miniaturizados e articulados, além de filtrar o tremor do movimento; mas o resultado depende do cirurgião, que tem de saber usar esses recursos de maneira adequada para oferecer melhor resultado.
3) No futuro, o robô poderá assumir o controle e eliminar a necessidade do médico?
A empresa VERb surgical, resultado de um esforço conjunto da Google e JJ, já tem falando em cirurgia totalmente automatizada, em que não seria necessário um cirurgião. Entretanto, eles mesmo admitem que esse tipo de cirurgia ainda está muito distante e diversas barreiras terão de ser vencidas ainda para torná-la viável. Por hora, a empresa está investindo todos seus esforços na produção de uma plataforma robótica master-slave, totalmente dependente de um cirurgião.
Em nota, a Johnson & Johnson Medical Devices deu detalhes da tecnologia desenvolvida pela empresa. "A Johnson & Johnson Medical Devices criou a Verb Surgical em parceria com Google, que permitirá a troca de conhecimento de profissionais durante uma cirurgia, por exemplo. A inclusão de soluções colaborativas e digitais não se tratam de substituir a capacidade do cirurgião pelo robô, mas sim colocar toda a evolução tecnológica a serviço do médico, para que ele possa, a partir das melhores técnicas, do melhor instrumental e do compartilhamento de conhecimentos oferecer o melhor desfecho para o paciente", diz o comunicado.