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Menos é mais

Conheça histórias de pessoas que escolheram viver o minimalismo

Marina Julião* e Renata Rusky

A servidora pública e artista plástica Rachel Lima diz que perceber o exagero externo foi um exercício de autoconhecimento e a fez notar o excesso interno - Foto: Arthur Menescal/Esp. CB/D.A Press
Propagandas dizem que precisamos, vitrines seduzem, influenciadores digitais convencem... E nós... Compramos. Muitas vezes, sem refletir se queremos ou temos mesmo necessidade daquilo. Queremos estar na moda, mostrar que podemos, nos colocar em uma posição de destaque na sociedade. Como resultado do consumismo desenfreado, o Brasil tem cerca de 62,1 milhões de endividados, segundo o Serviço de Proteção ao Crédito e a Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas. Além disso, em 2017, o país produziu cerca de 71,8 milhões de toneladas de resíduos sólidos urbanos, 1% a mais que no ano anterior. E o pior: nem tudo é descartado corretamente.



A professora Suely Guimarães, doutora em psicologia do UniCeub, explica que muitas pessoas compram como uma maneira de se autoafirmar. “Com medo de ser julgada ou malvista pelos outros, ela compra e se endivida” explica Suely. Em 2018, a blogueira americana Lisette Calveiro veio a público admitir que contraiu uma dívida de mais de US$ 10 mil em roupas e acessórios usados para postar no Instagram. Ela gastava todo o seu salário para compartilhar uma vida de mentira. Depois de desativar suas redes sociais e economizar por 14 meses, conseguiu quitar o rombo.

Na contramão, algumas pessoas decidiram viver diferente. Adotaram o mínimo como estilo de vida.
“O minimalismo vai contra essa onda de consumo desenfreado”, explica Gustavo de Castro, professor de comunicação da Universidade de Brasília (UnB). Gustavo explica que a cultura da substituição e a necessidade de sempre trocar um objeto por outro mais novo é uma característica da sociedade contemporânea. Para ele, o minimalismo não significa necessariamente ter menos coisas, mas, sim, viver em equilíbrio e somente com o essencial.

Somente o necessário
Justificativa de quem se desapega de bens materiais é que vive com menos obrigações e, portanto, com mais tempo para se dedicar àquilo que realmente lhe traz felicidade

Os minimalistas têm aquilo de que precisam e não acumulam objetos sem utilidade. Pensam duas, três, quatro vezes antes de adquirir algo e só compram o que realmente precisam. Com isso, podem até viver com menos dinheiro, trabalhar menos horas e investir mais tempo naquilo que realmente traz felicidade. Para a professora Suely Guimarães, doutora em psicologia do UniCeub, quem se desapega de bens materiais vive com menos obrigações e, por consequência, se beneficia de um estado mental mais leve. “A pessoa pode usar o dinheiro que gastaria em compras com uma viagem, por exemplo”, garante.


Uma pesquisa da Box 1824, empresa de mapeamento e estudo de comportamento de consumo e tendência de mercado, mostrou que o chamado lowsumerism - junção dos termos low (baixo) e consumism (consumismo), significando redução do consumo - está crescendo. “Conversamos com muitas pessoas, não só do Brasil, mas da Ásia, Europa, Estados Unidos, e percebemos que elas estão fazendo uma série de questionamentos sobre o consumo excessivo”, afirmou Henrique Diaz, diretor de Planejamento da Box 1824.

Para ele, os jovens estão entendendo que a forma como o mundo adquire bens não é viável a longo prazo e que a autoestima deles está sendo construída em cima das coisas erradas. Um dos catalisadores dessa mudança de comportamento, segundo Diaz, é a internet. “Nela, há uma infinidade de instrumentos de educação financeira e ambiental.” Além disso, ela teria incentivado uma nova mentalidade de consumo: a da economia compartilhada, que incentiva o acesso, não a posse. É o caso da bicicletas alugadas e de plataformas como Netflix e Spotify, em que não é necessário ter o DVD de um filme ou o CD de uma banda para curti-los.

PROCESSO

Aos 26 anos, a servidora pública e artista plástica Rachel Lima, hoje com 35, assumiu um cargo de chefia. O trabalho era tão estressante e a responsabilidade tão grande, que quase todo o salário que recebia era gasto em coisas de que ela não precisava, especialmente roupas. Era uma forma de Rachel sentir algum prazer. “Sempre fui de me analisar muito, então, comecei a notar esse meu comportamento e achar que estava errado”, relembra.


Murilo Miranda, de 26 anos, optou por ter poucos bens materiais - Foto: Barbara Cabral/Esp. CB/D.A Pres
Foi nessa época que conheceu o minimalismo e percebeu que aquela seria a saída para as angústias que vivia. O impulso de comprar mais e mais deu lugar à autoavaliação e à reflexão sobre as suas reais necessidades. “Quem compra muito quer preencher algo dentro de si e era isso que eu fazia”, conta. Acabou fazendo uma grande limpa em casa, doou peças de roupa e de decoração, e se tornou uma pessoa mais básica no modo de se vestir. Com os diversos bem materiais dos quais se desapegou, também se despediu de sentimentos que lhe faziam mal.

Em outros tempos, Rachel pensava em sair da quitinete onde vive para um apartamento maior e mais espaçoso. Atualmente, é plano abandonado. Ao contrário, fez até uma reforma. Antes, sala e quarto eram separados. Então, decidiu unir tudo e ter um espaço mais a cara dela.
Para não ser tentada a voltar aos velhos hábitos, deixou de seguir influenciadoras digitais e, a cada três meses, faz uma varredura na casa para ver se não há coisas inúteis guardadas.

Perceber o exagero externo foi um exercício de autoconhecimento e a fez notar o excesso interno. De 40 horas, diminuiu a carga horária de trabalho para 30. “Se não trabalhasse tanto, ficaria menos estressada. Menos estressada, não preciso comprar tanto para me sentir bem e posso viver com um salário menor”, concluiu. A decisão é alvo de críticas. Segundo a servidora, alguns colegas e familiares acreditam que se trata de falta de ambição, não entendem como ela pode escolher ter menos dinheiro. “A gente não precisa ganhar mais. A gente precisa gastar menos. Agora, tenho mais tempo para visitar meus pais, ficar com meus cachorros, visitar amigos”, justifica.

Armário cápsula

O arquiteto Fábio Cherman usava móveis funcionais no apartamento de 27m², em que morou por quatro anos - Foto: Minervino Junior/CB/D.A PressO conceito surgiu na década de 1970, com a estilista Susie Faux. “Ela imaginou a possibilidade de ter um armário com poucos e bons itens que combinassem entre si”, explica a consultora de imagem Shaila Manzoni. Segundo ela, alguns dos benefícios são aproveitar melhor as peças que tem; economizar, otimizar espaço, não ter a sensação de abrir o armário e não saber o que vestir e descobrir o próprio estilo. Saiba como fazer:

- Escolha apenas peças que você realmente ama e vestem bem.

- Priorize os básicos que combinam com tudo, desde que sejam do seu gosto.

- Leve em conta seus compromissos e estilo de vida.

- Teste se os modelos combinam entre si.

- O conceito de guarda-roupa cápsula soma 33 peças para serem usadas durante três meses. Mas não se prenda a esse número. As necessidades das pessoas são diferentes. Portanto, monte o seu armário com a quantidade de peças que for melhor para você.

Fonte: Shaila Manzoni, consultora de imagem

Praticidade e consciência financeira e ambiental

Ao chegar à casa do empresário Murilo Miranda, de 26, onde mora com a mãe, é possível ver a diferença gritante entre o quarto dele, clean, e a sala, decorada pela mãe. Eles são opostos: ela gosta de encher a casa de adornos; ele prefere o mínimo. O jovem pode ser definido com uma palavra: prático. Ele vive com o essencial e sempre foi assim. Sem que ninguém tenha lhe ensinado isso, entende que quando se tem muitas coisas, mais tempo se perde com elas. “Nunca tive paciência para cuidar de objetos. Quanto menos tiver, menos trabalho tenho”, explica.

Marie Kondo, considerada guru da organização, ajuda muita gente em programa da Netflix - Foto: Denise Crew/NetflixNo quarto dele, um visual simples, paredes brancas, sem quadros nem nada. Há apenas a mesa do computador, a cadeira, algumas caixas, nas quais organiza peças do PC, cabos e livros. O armário embutido também é branco e guarda poucas roupas, além de algum chocolate e um pote de suplemento proteico. A escassez de coisas que considera inúteis faz com que a arrumação do próprio quarto seja muito rápida. Garante que sempre sabe onde tudo está e nunca sofre procurando nada.

Murilo estima que tenha cerca de 15 blusas (entre camisetas, camisas e blusas de frio). Quanto a calçados, tem dois tênis “velhinhos”. A mãe reclama, diz que ele devia comprar novos. Mas, enquanto não estiverem rasgados ou com buracos, ele segue usando os mesmos. “Só compro algo novo quando realmente preciso”, afirma.

O dinheiro que economiza gasta em viagens. No último ano, passou 21 dias inesquecíveis na Austrália. De lá, trouxe alguns doces para colegas, e só. Nenhum suvenir de recordação, nem mesmo um ímã de geladeira. “Tirei muitas fotos e elas já valem como lembrança. Mesmo em viagens, economizo para fazer a próxima”, conta.

Além de não querer perder tempo com o que não precisa e de gostar de economizar, Murilo também tem consciência ambiental: “O consumismo é um problema para o meio ambiente. Tem gente que compra celular todo ano, por exemplo, e o lixo que isso gera é absurdo”. Ele conta que, de vez em quando, come em fast food, mas sempre fica com a consciência pesada por conta da quantidade de caixinhas de papelão, canudos e copos descartados.

A DOENÇA DO TER

Pessoas que acumulam muitos objetos, a ponto de afetar o próprio bem-estar, precisam de tratamento. “Os acumuladores podem sofrer de transtorno obsessivo compulsivo (Toc) e devem procurar ajuda profissional”, explica Suely Guimarães. “A principal característica do transtorno é o entulhamento de coisas inúteis; às vezes, quartos inteiros estão cheios de objetos que não têm utilidade alguma”, acrescenta a médica.

A situação pode chegar a níveis extremamente complicados, em que não só a vida da pessoa fica comprometida, mas a de todos que convivem com ela. Nesses casos, o tratamento psicológico é necessário e, em casos mais extremos, medicamentos também podem ser usados. “Com a terapia, a pessoa percebe que é possível se livrar de algumas coisas”, garante Suely.

Menos coisas, mais organização
Para especialistas, abrir mão de determinados objetos não significa se desfazer da experiência a que eles remetem. Além disso, deixar a casa em ordem ficará muito mais fácil


Todo excesso vem de alguma causa: seja uma perda, seja ansiedade, seja sensação de fraqueza”, afirma a profissional da organização Priscila Caldas. Ela explica que a organização se trata de um processo de conscientização e orienta as pessoas a tirarem tudo do lugar e reunir em um local só para que vejam a quantidade de coisas acumuladas. A partir daí, é preciso identificar o que é inútil. Em se tratando de objetos de recordação, Priscila explica que se desfazer deles não significa abrir mão da experiência a que eles remetem, e lamenta que as pessoas valorizem mais as coisas materiais do que os momentos vividos.

Eliana Vargas, profissional da organização, diz que sempre aborda o minimalismo e o desapego com suas clientes. Ela as encoraja a repensar a utilidade das peças que têm. “Se não usou uma roupa nos últimos seis meses, a probabilidade de vesti-la é muito baixa, então, aconselho deixá-la ir”, explica a profissional. O mesmo vale para objetos de decoração, utensílios de cozinha e livros. Por onde começar? “Do micro pro macro”, aconselha Eliana. Ela aconselha limpar primeiro o criado-mudo, ou algumas gavetas, e depois ir trabalhando o desapego em áreas maiores.

CASA EM ORDEM

Considerada por muitos a “maga da organização”, a japonesa Marie Kondo ficou famosa ao lançar seu livro A mágica da arrumação, publicado no Brasil em 2015. Marie usa maneiras mais lúdicas de adotar o descarte, e seu conselho principal ficou famoso no mundo inteiro: “Apenas guarde aquilo que lhe trouxer alegria”.

A família de Kátia trocou a casa grande por um apartamento de espaço mais limitado: exercício de desapego - Foto: Carlos Vieira/CB/D.A Press
Em 2019, a empresa de streaming Netflix lançou a Ordem na casa com Marie Kondo, série que acompanha a transformação na casa de oito famílias, com a orientação de Marie. Sucesso total, a série trouxe à tona várias questões relacionadas à arrumação e ao minimalismo.

No canal por assinatura GNT, Micaela Góes comanda o Santa ajuda, programa que ajuda a organizar a casa dos participantes. Há cinco anos no ar, mais de 150 pessoas já participaram do desafio, e, além de receber dicas de organização, tiveram a rotina transformada.

Endereço da nova mentalidade

Há cerca de um ano, Kátia Farias, de 49 anos, e os dois filhos, Carla, de 16, e Pedro, de 18, mudaram-se de uma casa com três salas, churrasqueira, piscina, quarto de ferramentas, sótão e escritório para um apartamento de três quartos na Asa Norte. Foi necessário contratar uma profissional de organização e uma empresa para fazer um garage sale. Carla tem certeza de que teriam caixas pelo apartamento novo se não fosse pela assessoria. Venderam tudo da casa antiga. “Não foi um processo fácil, porque foi tudo construído por nós e, aos poucos, fomos comprando cada móvel”, relembra Kátia.

Shaila Mazoni, consultora de estilo - Foto: Eliane Rocha/Divulgação
Sobrava espaço e acúmulo. A família guardava peças de vestuário pequenas, pensando que voltariam a servir um dia; desenhos, roupas e brinquedos de quando os filhos eram pequenos e que estavam largados no sótão. Quem teve mais dificuldade de desapegar foi Pedro: “Guardava muita roupa do meu pai para usar no futuro, quando coubesse. Também tinha coisas que pensava: ‘Usei na minha formatura’”. Apesar do exercício de desapego, acabou mantendo algumas, mas estão guardadas em um saco a vácuo para não ocupar tanto espaço.

ORGANIZAÇÃO

A mudança fez com que todos amadurecessem. Antes, uma funcionária limpava a casa todos os dias. Agora, passaram a ter apenas uma diarista, que vai uma vez por semana. “Com pouca coisa e em um apartamento menor, fica mais fácil organizar tudo. Ainda assim, se tivesse a mentalidade de antes, não conseguiria”, admite Carla. Kátia também não se vê acumulando tanta coisa mais. “Deu tanto trabalho e vi que era absurdo adquirir e acumular tanto”, afirma.

Grande ideia para pequeno espaço

No documentário Minimalistas, David Friedlander, diretor de Comunicação da Life Edited - empresa norte-americana que tem a missão de criar as melhores alternativas para espaços pequenos -, apresenta um mapa de calor que mostra onde as pessoas se deslocam em suas casas ao longo de um dia normal. Foi descoberto que os moradores usavam apenas 40% do espaço. No mesmo filme, o arquiteto Frank Mascia também afirma que “nada é mais responsável que viver no menor local onde você pode”.

- Foto: Joshua Weaver/Divulgação
Em Brasília, há quem defenda a mesma questão. Fábio Cherman, arquiteto, viveu quatro anos em um apartamento de 27 metros quadrados (m²), no Centro de Brasília. O espaço tinha móveis multifuncionais, desenhados por ele mesmo. “Funcionalidade e elegância não se separam”, defende.

Nas grandes metrópoles, apartamentos compactos são cada vez mais comuns. Em cidades com metros quadrados caríssimos, como Nova York e Tóquio, morar perto do Centro significa abrir mão do espaço, ou investir em aluguéis nas alturas. Para Fábio, o mercado é bem diverso e conta que tem feito muitos projetos para lugares pequenos. “Já fiz um apartamento de 28m² para um casal com duas crianças, em São Paulo. Era a ‘casa da cidade’. Mas nos fins de semana eles partiam para o interior.”

O que realmente importa


Joshua Millburn e Ryan Nicodemus são amigos desde a 5ª série. Ao se aproximarem dos 30 anos, aparentemente, tinham tudo de que precisavam para viver: bons salários, carros, apartamento confortável. Mas, mesmo assim, não se sentiam felizes. Resolveram, então, mudar radicalmente a rotina e se desfizeram de praticamente todos os bens materiais, largaram seus empregos e se mudaram de cidade. Foi aí que criaram o site The Minimalists (https://www.theminimalists.com) e começaram a compartilhar suas novas histórias, pensamentos e estilo de vida. De 2011 para cá, a dupla publicou três livros, lançou um podcast, rodou o mundo fazendo palestras e produziu o documentário Minimalismo, sobre as coisas importantes, disponível na Netflix.

*Estagiária sob a supervisão de Flávia Duarte
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