Uma criança do sexo feminino, do Norte de Minas, foi o primeiro caso diagnosticado no Brasil com a síndrome de Jalili, doença rara que provoca a cegueira e, ao mesmo tempo, a má-formação dos dentes. Até hoje, em todo o mundo, ocorreram pouco mais de 80 registros de pessoas com a doença, que é de origem genética e não tem cura.
O caso do interior mineiro foi descoberto pela pesquisadora e odontopediatra Célia Márcia Fernandes Maia, que realiza estudos sobre o assunto no Programa de Pós-graduação em Ciências da Saúde, da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes). Especialista em atendimento a pacientes com necessidades especiais, ela também estuda outros dois casos da síndrome, descobertos no interior de São Paulo. Três registros no Brasil também são os primeiros da doença na América do Sul. Até então, na América Latina, havia somente um caso descrito - na Guatemala.
Conforme explica a pesquisadora da Unimontes, a síndrome de Jalili é provocada pela mutação do gene CNNM4 - responsável pelo transporte intracelular do elemento magnésio, e caracteriza-se clinicamente pela má-formação do esmalte dos dentes (amelogênese imperfeita) e, ao mesmo tempo, pela degeneração da retina ocular (distrofia de cones e bastonetes). A pessoa convive com a sensibilidade aguda à luminosidade e deficiência visual - que evolui para a perda total da visão. Os casos são predominantes em famílias com filhos gerados a partir de casamentos consanguíneos.
A síndrome foi descoberta em 1988 pelo pesquisador e oftalmologista egípcio Ismail K. Jalili, em experimento junto a famílias da Faixa de Gaza, no Oriente Médio. Ele concluiu que a doença genética está relacionada com os casamentos consanguíneos. Foram constatadas alterações visuais e dentárias em 29 pessoas cujos pais tinham algum parentesco. Na Faixa de Gaza, existem muitos casamentos que já têm algum vínculo familiar.
A pesquisadora da Unimontes iniciou seus estudos em 2014, quando descobriu o caso da síndrome de Jalili em Minas. Durante a pesquisa, em 2015, foram descobertos mais dois casos da síndrome no Brasil - e que também passaram a ser estudados por Célia Maia: uma criança do sexo feminino, de 8 anos, e o pai dela, que residem no interior paulista. Mesmo com a alteração de gene, o pai tem problema na visão, mas não desenvolveu um dos principais sinais da síndrome: a amelogênese imperfeita, que provoca a má-formação do esmalte dos dentes "Trata-se de um dos primeiros casos descritos que foge das consequências comuns ao portador da síndrome”, observa Célia.
Os casos da criança e do pai do interior de São Paulo têm outro aspecto que chama a atenção: não envolvem filhos de casamentos consanguíneos. Isso contribuiu para reforçar a constatação de que a síndrome de Jalili também pode ocorrer em casos em que não há casamentos entre parentes.
Ao concluir mestrado em ciências da saúde, Célia Maia elaborou artigo científico "Report of two unrelated families with Jalili syndrome and a novel nonsense heterozygous mutation in CNNM4 Gene" (Relato de duas famílias sem parentesco com a síndrome de Jalili e uma nova mutação heterozigótica no gene CNNM4), publicado na revista científica European Journal of Medical Genetics, da Inglaterra.
Óculos escuros
Célia Maia conta que despertou interesse pelos estudos sobre a síndrome de Jalili ao atender a criança portadora em Montes Claros, em 2014. A pequena paciente, então com 8 anos (atualmente, ela está com 12), foi encaminhada por outra odontopediatra e apresentava uma má-formação nos dentes.
O fato de a menina usar óculos escuros, por causa da alta sensibilidade`à luz, chamou a atenção da especialista. “Perguntei à mãe por que a criança usava óculos escuros. Ela respondeu que a filha tinha um problema de visão. Aí, imaginei que o problema na visão poderia estar associado à alteração nos dentes e comecei a investigar o caso, consultando outros especialistas”, revela a odontopediatra e pesquisadora.
Ela informa que a paciente tinha recebido um diagnóstico em Belo Horizonte de que era portadora da amaurose congênita de Leber, doença que provoca a perda progressiva da visão, até a cegueira total. “Só que a amaurose congênita é uma alteração na retina que não está associada com a má-formação dentária. Além disso, a alteração nos tecidos dos dentes é um indicativo de associação com outras alterações sistêmicas”, disse Célia, ao explicar por que decidiu avançar mais nos estudos e chegou à descoberta de que se tratava de um caso da síndrome de Jalili.
Um dos aspectos que chamaram a atenção da pesquisadora é que os pais (um pequeno comerciante e uma dona de casa) eram parentes consanguíneos (primos de terceiro grau). Célia Maia relata que, com o envolvimento de outros pesquisadores, foi feita a coleta de amostras de saliva da paciente, do único irmão dela e dos pais para testes de sequenciamento genético na Faculdade de Odontologia do câmpus da Universidade de Campinas (Unicamp), em Piracicaba (SP), e também na Clínica Genética da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. Os exames confirmaram que a menina era portadora da doença rara, com resultado negativo para outros integrantes da família.
“A partir das análises genéticas e das inúmeras avaliações oftalmológicas, foi possível identificar a mutação no gene CNNM4, que está associado à síndrome e que causa a alteração no transporte de magnésio dentro do organismo. Segundo elemento mais presente no corpo humano, o magnésio faz parte de vários tecidos e é essencial na transformação do estímulo luminoso em elétrico na retina, formando a imagem, além de ser um dos componentes fundamentais na formação do esmalte dentário”, explica a pesquisadora da Unimontes.
Célia Maia ressalta que o estudo sobre a Sindrome de Jalili avançou porque contou com o apoio de outros especialistas e pesquisadores. Ela citou os pesquisadores pesquisadores Vera Lúcia Gil da Silva Lopes, Elaine Lustosa Mendes e Priscila Hae Hyun Rim, da área de Genética Clínica da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp; Renato Assis Machado e Ricardo Della Coletta, da área de Patologia Oral e Genética Odontológica da Faculdade de Odontologia/Unicamp; e dos professores e pesquisadores Hercílio Martelli Junior, Daniella Reis Barbosa Martelli e Verônica Oliveira Dias, do departamento de Odontologia da Unimontes. A pesquisa contou ainda com o apoio do oftalmologista Luciano Sólia Nasser (doutor em Ciências da Saúde pela Unimontes).
"Esta pesquisa destaca o alcance do trabalho multiprofissional para o diagnóstico e tratamento de uma doença incomum e, ao mesmo tempo, ressalta a importância de estudos interdisciplinares na área da saúde, com contribuição significativa para diagnósticos mais precisos", destaca o orientador do estudo, o professor Hercílio Martelli Júnior. A pesquisa teve o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).