Não há expectativa maior do que a dos pais quanto à chegada de um bebê. Escolinha de natação, futebol nos fins de semana, graduação de sucesso e, no futuro, muitos filhos para encher a casa. Quando se recebe o diagnóstico de autismo, o mundo parece desabar. Ter um filho autista é embarcar na jornada rumo a um universo desconhecido e encontrar formas de desvendar esse novo mundo.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) calcula que o autismo afeta uma em cada 160 crianças no mundo. Estima-se que existam cerca de 70 milhões de pessoas nessa condição – no Brasil, o número gira em torno de 2 milhões. Apesar da grande quantidade, para muitos, o assunto ainda é uma incógnita. O que se sabe é que o Transtorno do Espectro Autista (TEA) é uma espécie de pane do desenvolvimento neurológico, manifesta-se ainda na infância e não tem cura. Ele costuma ser identificado pelos médicos entre 1 ano e meio e 3 anos de idade, mas os próprios pais são capazes de detectar os primeiros sinais a partir dos 8 meses e, assim, buscar ajuda especializada o quanto antes.
Bebê superdesejado, Enzo chegou ao mundo cheio de saúde e de amor para dar.
PEREGRINAÇÃO Sandra começou uma longa jornada atrás de um diagnóstico. Três neurologistas não foram capazes de identificar o que estava errado. Outro profissional chegou a afirmar que era comum uma criança não falar até os 3 anos. Somente em São Paulo a mãe conseguiu o diagnóstico definitivo do transtorno.
Apesar de a aceitação nunca ser fácil, compreender o autismo é a melhor forma de conviver com ele. Sandra logo começou a peregrinação por tratamentos e pesquisas sobre o assunto. “Sabia que não podia esperar, minha corrida contra o tempo foi grande. Desde o início, quis encontrar o melhor para ele.” A mãe de primeira viagem também criou um grupo para acolher mães que tiveram o mesmo diagnóstico. “A gente dá muitas cabeçadas antes de chegar ao tratamento correto. Precisamos de algum apoio.”
INCLUSÃO É UM PASSO IMPORTANTE
Até os 2 anos e meio, Enzo, filho da fonoaudióloga Sandra Bacelar, se desenvolveu em ritmo normal, sem nenhum problema de saúde. Depois de voltar de uma viagem, a mãe notou comportamento estranho do filho, que só ficava quietinho.
Aos 6 anos, Enzo, hoje, tem um bom contato visual – algo, muitas vezes, difícil para crianças autistas. O progresso também está nos pequenos fonemas que começou a pronunciar. Ele tem seu tempo próprio de aprendizado. “O autismo não tem cura, mas não é por isso que nossas crianças são bichos de sete cabeças. Ninguém precisa ter medo deles. Pelo contrário. Não existem seres mais puros”, afirma, emocionada, a mãe.
Fisiologicamente, Enzo não tem nada de errado, exceto algumas dificuldades motoras. É uma criança linda, receptiva e alegre. Um sedutor.
Por isso, a mãe fez questão de inseri-lo em uma escola regular. “A partir do momento em que escondemos essas crianças ou as colocamos em escola especial, também estamos privando as ‘normais’ de conviver com eles”, enfatiza a mãe. Para facilitar a inclusão, Sandra, todo ano, prepara uma cartinha e a encaminha aos pais dos coleguinhas de turma de Enzo. Nela é explicado o que é o autismo, como o filho tende a se comportar e o motivo de suas atitudes consideradas diferentes por muitos. “Acima de tudo, enalteço a importância do filho deles na vida do Enzo. Eles vão ensinar muitas coisas a ele e, juntos, vão mudar o mundo preconceituoso em que vivemos.”
TERAPIAS Em casa, a mãe montou um espaço para que as terapias pudessem ser realizadas. Entre elas está o acompanhamento psicológico e fonoaudiológico – o último feito com a própria Sandra, profissional da área. “Ele também faz terapia ocupacional para cuidar da parte sensorial.” A natação não fica de fora. Além de divertido, o exercício ajuda a estimular o corpo e a mente, já que há contato direto entre água e pele, possibilitando inúmeras sensações para crianças autistas.
Mesmo com as limitações, Enzo é uma criança alegre. Não é difícil arrancar um sorriso do menino, que se sentiu à vontade na frente das câmeras. “Quero que ele se torne independente. Se vai conseguir estudar e trabalhar, só o tempo dirá. Mas quero que o Enzo consiga se virar sozinho. Trocar-se, alimentar-se, tomar banho…”, diz Sandra. Para isso, a família vive um dia de cada vez, respeitando o tempo do pequeno. “Hoje, não me vejo mãe de outra criança que não seja o Enzo.”
Os sinais
Desde cedo, é possível identificar sinais no comportamento da criança que possam indicar algum espectro autista. Para os especialistas, a partir dos 8 meses, o bebê com TEA já age de forma diferente:
» Dificilmente interage com a mãe durante a amamentação
» Evita olhar nos olhos das pessoas
» Tem dificuldade em se encaixar socialmente
» Comunica-se com dificuldade
» Gosta de realizar movimentos corporais repetitivos
» Tem interesses em coisas muito específicas, que não despertariam curiosidade em outras pessoas
» Não demonstra afetividade
» Não reage quando é chamado pelo nome
» Não gosta de alterações na rotina
» Tem dificuldades em gesticular com sinais
A diferênça invisível
Quem vê Caio brincando no balanço não imagina que o garoto, de 9 anos, convive com o autismo. Risonho, brincalhão e cheio de energia, o pequeno anda de um lado para o outro pronunciando sons que expressam sua alegria. A mãe acompanha o filho sem perdê-lo de vista, mas libertando-o para ser quem é. No início, tudo foi mais complicado. A servidora pública Fernanda Carvalho, de 42, sentia-se perdida e não sabia a quem pedir ajuda. “Fui sendo guiada, aos poucos, pelos profissionais com quem esbarrava. Aprendi a viver um dia de cada vez, procurando sempre fazer o melhor para ele.”
Com a descoberta do diagnóstico, Fernanda e o marido, Mário de Carvalho, viveram um luto. “Quando a ficha caiu, só conseguia pensar que, a partir daquele momento, eu não tinha mais o direito de morrer. Precisaria estar sempre presente para cuidar dele.” Para superar os medos e as inseguranças foi necessário enterrar sonhos e planos que tinha para o primeiro filho, então com 2 anos e meio.
Desde bebê, Caio já apresentava comportamentos do TEA, que a mãe, por desconhecimento, deixou passar despercebido. Ele não pedia colo, estava sempre quietinho e, quando acordava, ficava na cama resmungando até que alguém passasse para pegá-lo. Uma criança que, apesar de não falar, sempre soube se comunicar à sua maneira.
Segundo a fonoaudióloga Larissa Barboza, se falta comunicação, a pessoa praticamente deixa de existir, pois para de ser atuante na sociedade. “Quando temos uma criança que tem qualquer alteração no desenvolvimento da linguagem, temos ali um ser que se torna alheio no corpo social. Isso gera certo isolamento, além de poder desencadear outros transtornos.” A ideia da fono, então, não é forçar o autista a falar e a se socializar, mas, sim, trazer funcionalidade para que a comunicação, oral ou alternativa, ocorra aos poucos.
São altos e baixos, a caminhada é longa, mas não há tempo para ficar parado. “Às vezes, é um pouco frustrante… Ele tem 9 anos e ainda não fala. Quando está incomodado com algo, fico pensando em como ajudar.” Mas cada progresso é uma vitória. Por meio de palavras-chaves ou sons variados, Caio sabe pedir água e comida, além de fazer xixi sozinho.
Até o ano passado, ele estudava em uma escola pública, mas ficava em uma sala para crianças com necessidades especiais. Como Fernanda não via evolução, escolheu um colégio que o tratasse como qualquer outra criança. Desde então, os profissionais que o acompanham afirmam que ele só tem melhorado. Ele corre e brinca com os coleguinhas e corresponde às demonstrações de carinho. “Ele está mais calmo e atencioso. É ótimo estar misturado com os outros para ele acompanhar o comportamento e querer repeti-lo.”
Além da escola, Caio faz acompanhamento com uma pedagoga, que o estimula a se comunicar. A mãe deseja que o pequeno conquiste seu espaço no mundo e saiba se expressar de alguma forma, seja oralmente, seja por escrita.
EVOLUÇÃO
Larissa Barboza trabalha com autistas há nove anos e relata que a evolução varia de acordo com cada quadro. “Pode demorar meses para se conseguir um contato visual ou qualquer som que seja, mas, eventualmente, a gente consegue. E, quando conseguimos, soltamos fogos de artifício, porque sabemos o que cada processo representa na vida deles.”
Com a família, Caio dá o seu jeitinho. A irmã, apesar de ter apenas 5 anos, entende o comportamento de Caio e está sempre ao seu lado. Emocionada, a mãe conta sobre a relação dos dois. “Mesmo no início, quando ele puxava o cabelo dela ou a empurrava, Marina não se afastava. Sempre busca pelo irmão e pede abraço.” A pequena lhe explica quando algo está errado e ensina como mudar.
Andar de bicicleta, brincar no parquinho, sair para comer ou ir ao cinema. Ao lado da família, Caio adora passear. “Achamos importante ele ter esse contato com a sociedade, mesmo que muitos não entendam seu comportamento. Alguns olham atravessado, outros o julgam como se fosse uma criança sem educação.”
Devagarzinho, tudo vai melhorando, e Fernanda torce para que o filho um dia consiga ser ao menos um pouco independente. “Meu sonho é chegar a algum lugar e as pessoas agirem de forma natural, oferecendo ajuda se for necessário, ou simplesmente um sorriso de empatia, em vez de se afastar.” (AR* e MP)
HISTÓRIAS DE SUPERAÇÃO
Uma vez que a família tenha o diagnóstico em mãos, é indicado que passe a investir em terapias multidisciplinares. A psicologia exerce papel essencial no desenvolvimento do autista. Inicialmente, o profissional realiza uma avaliação para descobrir os pontos de defasagem e os potenciais a serem trabalhados. A partir daí, são criadas estratégias personalizadas para o aprendizado ou o desenvolvimento de novas habilidades.
A ideia da psicologia é intervir nos comportamentos disruptivos, muito comuns entre autistas. “Rigidez do pensamento ou comportamento, dificuldade de locomoção e compreensão de regras são alguns deles. Por isso investimos no reforço positivo, para que eles compreendam a mensagem que queremos passar”, explica a psicóloga infantil Aline Melo. O transtorno tem maior parte da carga negativa concentrada na comunicação. “Queremos que os autistas se tornem mais funcionais nos meios sociais e na família. Trabalhamos para que eles entendam como funciona nossa sociedade, suas regras e costumes.”
Aline afirma que muitos profissionais, assim como ela, preferem não nivelar o autista, pois trata-se de um transtorno muito amplo, no qual cada um apresenta suas próprias características. “Na hora de trabalhar, focamos em identificar certos pontos, como a dificuldade em aprender, a agressividade e o nível de fala.” Assim, a abordagem usada sempre varia. São pacientes que tendem a ter um foco como interesse – como letras, números, idiomas –, o que facilita o trabalho.
Com crianças, a profissional se empenha na inclusão voltada ao compartilhar e à compreensão da relação com as pessoas. Com adolescentes e adultos, tudo é mais social e a emoção precisa sempre ser trabalhada. “É sobressair, demonstrar interesse, saber se portar e lidar com situações cotidianas. Coisas simples para nós, mas nem sempre para eles.” Além de sessões direcionadas ao autista, o psicólogo desempenha a função de instruir e amparar a família nos momentos delicados.
CRESCIMENTO DIÁRIO Amanda Pascoal, de 26 anos, era considerada uma criança normal. Começou a falar na idade certa e aprendeu a ler cedo. Sua grande paixão era o fundo do mar. Sereias e golfinhos eram o assunto da vez… Toda vez. Apesar de o assunto ser sempre o mesmo, os pais de Amanda nunca a reprimiram. Pelo contrário, estimulavam o interesse da filha pelos cetáceos. O problema era que a pequena engolia livros, mas não conseguia interpretar o que estava escrito nas páginas. A família buscou ajuda e, após inúmeros profissionais apresentarem diagnóstico inconclusivo, aos 8 anos Amanda descobriu que era autista.
Para ela, a vida teve altos e baixos, mas nunca se deixou abalar. “Nasci autista e vou morrer autista. Essa vida é a única que conheço e nunca soube ser diferente do que sou. O autismo colore todos os aspectos da minha existência e sou feliz assim.”
Na infância, Amanda passou por escolas que se tornaram grandes pesadelos devido à falta de inclusão. Sofreu bullying por causa do seu jeito, que muitos não entendiam, e tinha algumas dificuldades de aprendizagem. “Apesar de tudo isso, considero que fui uma criança muito feliz. Focava nas coisas boas e nos assuntos que tinha prazer de falar e conhecer.”
Hoje, Amanda carrega um currículo de sucesso. É formada em conservação e restauração de bens culturais, cursa licenciatura em artes visuais e trabalha como arte-educadora. Além disso, ela é ativista na causa autista e trabalha desde o ano passado com o Movimento Orgulho Autista do Brasil (Moab), como diretora de atenção ao autista adulto.
Namorando há quatro anos, repleta de pessoas queridas e com uma família que sempre lhe deu suporte, Amanda se considera realizada e tem um desejo: “Espero que o diagnóstico ocorra de forma mais simples e que os mitos sobre o autismo fiquem para trás. É sempre aquele papo de que os autistas não gostam do toque, não olham no olho e não evoluem”. O sonho do acesso a tratamentos para todos não fica para trás. “Os autistas precisam viver bem, com qualidade de vida. Todos precisam do diagnóstico precoce e tratamento.”
• DOIS MOTIVOS PARA LUTAR
Pedro Henrique, de 12 anos, e Márcio Vinícius, de 10, têm transtorno do espectro autista, como os outros 2 milhões de brasileiros citados no começo da matéria. Mas eles têm uma ligação que torna a história curiosa e inspiradora: são irmãos, filhos de Vanusa Alves, de 41, e Antônio Márcio, de 36. Os primeiros sinais do autismo foram percebidos desde cedo pelos pais, que notavam em Pedro comportamentos pouco convencionais.
“Dos 6 aos 8 meses, percebi que as atitudes dele não eram iguais às das crianças da mesma idade. Ele tinha dificuldade na coordenação motora, girava muito os objetos, pegava os carrinhos e, em vez passar as rodas no chão, brincava com elas viradas. Também não olhava nos meus olhos e parecia que não escutava”, lembram.
Com o autismo diagnosticado, a mãe começou a batalha diária de atendimentos terapêuticos, levando Pedro por um braço e usando o outro para empurrar o carrinho de bebê com Vinícius, já que não tinha com quem deixar a criança. A cena se repetia tantas vezes que o filho mais novo estava sempre na presença de profissionais especializados em TEA, que perceberam no segundo bebê de Vanusa traços característicos do autismo, dobrando as dificuldades dos pais.
“Tive de abandonar o emprego e fiquei com o psicológico muito abalado, já que sempre trabalhei. Senti-me inútil por viver só em função das crianças. Meu marido, por trabalhar no Entorno, passava muito tempo longe. Eu ia para todos os atendimentos de ônibus, carregando um e puxando o outro.”
ATIVIDADES Vanusa não sabe explicar os motivos médicos de ter dado à luz dois filhos com autismo, mas também não questiona: “Se Deus mandou os dois, o que vou fazer?”. É a pergunta que faz logo antes de responder: “Só tenho que amar, cuidar e ensinar para eles sobre a vida e como lidar com o preconceito”.
Com dois filhos especiais, não são raras as situações em que a mãe passa por constrangimentos, o que a obriga a evitar certos locais e até certas amizades. “O Vinícius, por exemplo, tem dificuldade na fala, então, quando vai brincar com outras crianças, elas estranham, sentem medo e acabam se afastando dele. Daí ele fica triste, porque percebe que está sendo rejeitado.”
Mesmo com toda dificuldade, Vanusa não deixa passar nenhuma oportunidade de fazer com que os filhos tenham os melhores atendimentos. O mais velho está matriculado em uma escola pública especial e o mais novo estuda em um colégio regular. A natação e a equoterapia também fazem parte da rotina dos meninos, que, agora mais velhos, ajudam nas longas locomoções.
• O PODER DA MÚSICA
Um trabalho multidisciplinar é essencial para a evolução do quadro autista. A musicoterapia faz parte desse time e brinca com objetos terapêuticos e música para estimular a fala, a socialização e a autoestima. Segundo a musicoterapeuta Ana Carolina Steinkopf, a maioria dos autistas é monotônico, ou seja, não varia a entonação. Assim, a música auxilia também no desenvolvimento da voz. Além disso, as sessões auxiliam a interação entre a família, na qual pais e irmãos conseguem falar a mesma língua do autista.
Com esse intuito, a musicoterapeuta criou, em 2015, o projeto Uma sinfonia diferente. “A ideia inicial era ter um espaço em que os autistas fossem protagonistas. Mas vi a oportunidade de mostrá-los às pessoas com outros olhos, quebrando o estigma de que autista vive somente no mundo dele, não interage. Conseguimos mostrar o contrário, que eles são muito capazes.” O grupo mostra o seu potencial e incentiva o processo terapêutico por meio da música.
Com muita risada e alto-astral, ensaios semanais são feitos com grupos de cinco pessoas, nos quais as músicas são escolhidas e cantadas. Depois de um tempo, os grupos se juntam e se tornam uma turma maior, que segue para o teatro. Lá, eles se acostumam com a luz, a banda e a plateia para, no dia da apresentação, estar tudo perfeito.
DIVERSÃO Mas as atividades não se limitam aos ensaios. O projeto promove encontros divertidos, recheados de música para toda a família. “Fazemos piquenique, passeios e encontros de pais e filhos. Sem contar que todo 2 de abril – Dia Mundial da Conscientização do Autismo – programamos um evento bem legal”, finaliza Ana Carolina. E, apesar de cada um ter seu tempo de aprendizagem, os resultados são sempre positivos – os autistas se tornam mais sorridentes, brincalhões e interagem com mais facilidade.
* Estagiário sob a supervisão da subeditora Sibele Negromonte
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