Novembro azul: cuidar da saúde também é coisa de homem

O mês marca as campanhas de conscientização sobre a doença, uma das que mais afetam a população masculina. A comunidade é chamada para um diálogo franco e aberto a respeito do câncer de próstata

Laura Valente
"Se alguém me diz que tem vergonha ou receio de fazer o exame de toque retal, concluo que ele tem vergonha e receio de viver" - Adão Aparecido de Oliveira, aposentado, de 55 anos - Foto: Leandro Couri/EM/D.A Press

A iniciativa que partiu de um grupo de amigos reunidos em um pub, na Austrália - empreender uma campanha contra o câncer de próstata -, se espalhou pelo mundo e vem ajudando, em muito, a população masculina. Assim surgiu o Movember, junção entre os termos mustache (bigode, em inglês) e november, que chegou ao Brasil como Novembro Azul, no fim dos anos 2000.

Aqui, a campanha começou a ganhar notoriedade por meio de instituições privadas e públicas comprometidas em realizar ações que objetivam informar e conscientizar a população sobre a importância dos cuidados com a saúde do homem e com a detecção precoce da doença - o câncer mais comum e a segunda maior causa de morte por câncer entre eles. Justificativas para o movimento não faltam, como exemplifica o ocorrido com o ator norte-americano Ben Stiller. Acostumado a realizar o rastreamento, os famosos exames PSA e de toque retal, o comediante recebeu o diagnóstico, aos 47 anos, e pôde se tratar a tempo de evitar o pior. “Fazer o teste PSA salvou minha vida. Literalmente”, disse ele aos quatro ventos numa tentativa de mostrar ao mundo a importância dos testes que têm sido alvo de polêmica entre entidades que propõem sua dispensa como ação de política pública de saúde e as que, ao contrário, defendem a indicação.

Enquanto o debate toma corpo, pessoas como Adão Aparecido de Oliveira, aposentado, de 55, e Roberto João Gouvêa, de 66, engenheiro civil, que participaram desta reportagem contando como descobriram e venceram a doença, reafirmam a importância dos testes e rechaçam o preconceito: “Se alguém me diz que tem vergonha ou receio de fazer o exame de toque retal, que dura poucos segundos, concluo que ele tem vergonha e receio de viver.
Pensar assim não é sinal de virilidade, mas ignorância. A prevenção e o cuidado são os melhores remédios”, afirma Adão.

“Não entra na minha cabeça a ideia de você não se prevenir. Ouço casos assim com muita tristeza. Mesmo que seja tendência mundial o debate a respeito do rastreamento, não vejo nexo na dispensa dos exames. A melhor forma de se livrar desse mal é se precaver”, reflete Roberto João.

A opinião de quem já passou e superou a doença tem razão de ser: segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), mais de 1,2 milhão de novos casos de câncer de próstata ocorrem anualmente no mundo, gerando a expectativa de mais de 335 mil óbitos no mesmo período (segundo dados de 2013, que revelam aumento em relação a 2012 de 9,7% e 9,2%, respectivamente). No Brasil, a estimativa é chegar ao fim de 2017 com 61,2 mil casos novos e cerca de 13.772 óbitos, o que significa que é o segundo tumor que mais mata os homens no país, perdendo apenas para o câncer de pulmão.

A boa notícia é que a população está, sim, mais informada e consciente, muito em função da campanha Novembro Azul, que prevê ações durante todo o mês e em especial no dia 17, data marco para o combate à doença. Para este ano, inúmeras atividades serão realizadas numa tentativa de diminuir as estatísticas. Uma delas é a distribuição da cartilha Câncer de próstata: precisamos falar sobre isso, desenvolvida pelo Instituto Nacional do Câncer (INCA). Outra notícia positiva vem da inovação tecnológica que traz novos recursos em diagnósticos e em alternativas menos invasivas para o tratamento da doença, inclusive com o auxílio da robótica nas cirurgias.

"Enfrentei e venci a doença"
Os médicos indicam que homens acima dos 50 anos devem fazer exames de rastreamento.
Se há casos na família, o checape específico precisa ser realizado mais cedo. Quem já viveu o mal reforça o alerta

O engenheiro civil Roberto João Gouvêa, de 66 anos, foi diagnosticado com um tumor maligno em estágio inicial - Foto: Arquivo Pessoal
O paulistano Roberto João Gouvêa, de 66 anos, engenheiro civil, começa a conversa contando a história do pai, que descobriu por acaso o câncer de próstata na década de 1980, época em que não havia campanhas como o Novembro Azul. “Ele foi diagnosticado antes dos 60 anos, por um golpe de sorte, pois sentiu um incômodo após uma cirurgia de catarata e acabou sendo atendido no plantão de um excelente urologista. Descobriu o problema bem no estágio inicial, tratou, ficou curado, e hoje está aí, com 93 anos”, comemora o filho. A partir do episódio, Roberto recebeu a indicação de fazer o rastreamento regularmente. “Comecei a fazer PSA cedo, por volta dos 40 anos. Ia tudo normal até 2009, quando houve alterações no exame e fui diagnosticado também com um tumor maligno em estágio inicial.” Ele conta que estava prestes a se casar pela segunda vez, mas se lembra de que, mesmo frente às possíveis sequelas provocadas pelo tratamento - as temidas incontinência urinária e disfunção erétil -, fantasmas que assombram a maioria dos pacientes e reforçam o preconceito em torno da doença, pesou mais o desejo de se ver livre do tumor. “Pensei o seguinte: vou fazer a cirurgia e posso ficar impotente, mas ouvir dizer que todo morto é impotente, então...”, brinca.

Quando contou o diagnóstico para a noiva, Roberto recebeu muito apoio. “Ela, que já esteve próxima a pessoas que lutaram contra o câncer (inclusive um filho que venceu a leucemia), foi absolutamente solidária e incentivadora para que eu fizesse a cirurgia.
Marcou-me uma conversa em que falei que estávamos prestes a construir uma história e me via preocupado com a possibilidade de o 'bicho' não voltar a funcionar. Positiva, ela afirmou que, nesse caso, daríamos um outro jeito.”

Com o diagnóstico confirmado, ele procurou médicos para avaliar que tipo de tratamento poderia recorrer: radioterapia, cirurgias aberta ou por laparoscopia. “Consultei-me com vários especialistas e ouvi opiniões diferentes antes de decidir. Por fim, como sou muito assertivo, preto no branco, procurei o Hospital do Câncer, de excelência na área, e cheguei ao médico urologista Francisco da Fonseca. Saí de lá com cirurgia marcada para dois meses à frente.”

O engenheiro sentiu medo de a doença avançar nesse período, como conta, mas descobriu que o câncer de próstata tem progressão lenta na maioria dos casos. Assim, se submeteu à cirurgia aberta no dia marcado. “Naquela época, a tecnologia não era tão avançada como hoje, mas confiei nas mãos do médico para não 'cortar nenhum fio errado'. Graças a Deus, correu tudo bem e a recuperação foi espetacular. Nunca tive incontinência e, depois de quatro ou cinco meses, retomei a atividade sexual normalmente, de acordo com qualquer homem saudável da minha idade.”

GRUPO DE RISCO

Ativo também no trabalho e na vida social, Roberto lembra que ainda não é considerado um paciente curado. Mas reforça: “Fui um afortunado, fiz a lição de casa para não ser pego desprevenido e enfrentei o câncer de próstata”. O engenheiro ressalta ainda a importância de exames PSA e de toque retal para a detecção precoce da doença, recado que transmite para homens com histórico familiar da doença, como ele, mas também para a comunidade masculina em geral. “Todo homem faz parte do grupo de risco, pois tem próstata.”

Quando questionado a respeito da posição de entidades que vêm dispensando o rastreamento do câncer de próstata como protocolo de programas de saúde pública (saiba mais na página 5), o engenheiro é taxativo. “Para mim, é uma postura absurda. Meu pai descobriu a doença por acaso, com menos de 60 anos, e provavelmente não estaria vivo senão por essa sorte. Sei de todo o estigma em torno do exame de toque retal, das gozações – principalmente em camadas culturais mais baixas –, mas é um exame muito rápido e de extrema importância, assim como o PSA. A prevenção e o cuidado são os melhores aliados do homem que dá valor à vida”, reforça.

Antes dos 50 anos

Na mesma faixa etária do ator Ben Stiller, aos 46 anos - antes da idade geralmente indicada para o início dos exames de rastreamento -, o controlador de almoxarifado aposentado Adão Aparecido de Oliveira foi diagnosticado com câncer de próstata. “Minha sorte é que sempre fui atento e realizava exames periódicos de PSA com os de rotina, como hemograma, colesterol e glicose. Aí o resultado veio alterado”, revela.

Oliveira segue o relato lembrando do baque que levou com o diagnóstico confirmado pela biópsia. “Por mais que a gente se ache esclarecido, até autodidata em alguma coisa, é comum acreditar que o câncer de próstata só afeta homens acima de 60 anos. Então, levei o maior susto. Lembro-me de que saí do consultório chorando igual a uma criança e pensei: estou morto.”

Ainda abalado, ele procurou uma segunda opinião médica e também se consultou com a psicóloga Adriana Duarte, especialista em pacientes oncológicos, uma ajuda que aponta ter sido fundamental. “Com tudo isso, o astral foi melhorando e ganhei mais confiança para encarar o tratamento de braquiterapia (radioterapia interna).”

APOIO FAMILIAR

Após o tratamento, Adão ressalta que o apoio e o carinho recebidos do filho, Arthur (na época adolescente) e da ex-mulher Uilza tornaram a recuperação mais leve. “Agradeço a Deus, à família e aos amigos, pois receber a ajuda de quem se gosta é muito importante para o paciente”, diz.

Recuperado, ele conta que continua a fazer os exames regularmente, além de contar a própria história para todo mundo, a fim de minimizar o estigma e o preconceito em torno do câncer de próstata. “Ouço muitas piadinhas, mas tento mudar a opinião de homens que insistem no preconceito dizendo a eles que estou vivo para contar minha história graças aos exames e à cirurgia. Por meio da atitude de cuidado com a minha saúde, venci a doença”, reforça. Oliveira lembra ainda que, no caso dele, a progressão do tumor se revelou rápida, com índices de PSA triplicados em sete meses. E avisa: “Se não descobrisse o câncer precocemente, não estaria falando com você hoje. Por isso gosto de dar meu testemunho: o câncer de próstata é muito mais comum do que a maioria acredita”.

Novas tecnologias
Aparelhos de precisão, drogas mais assertivas e menos invasivas e a cirurgia robótica são inovações na batalha contra a doença, favorecendo também a qualidade de vida do paciente

Se os números não animam - no Brasil, um homem morre a cada 38 minutos devido ao câncer de próstata, segundo os dados mais recentes do Instituto Nacional do Câncer (13.772 óbitos/ano) -, os avanços tecnológicos na medicina trazem esperança. Em relação a temas como detecção precoce, precisão no diagnóstico e novidades em tratamentos cirúrgicos, o aparelho de imagem PET/CT, o fármaco PSMA (usado no exame) e as cirurgias realizadas com o auxílio da robótica têm sido celebrados pela comunidade médica (leia mais no quadro).

Leonardo Pimentel, coordenador do Radiocare - Centro Especializado em Radioterapia do Hospital Felício Rocho -, lembra que os avanços são animadores para potencializar a chance de cura - Foto: Edy Fernandes/Divulgação
O médico Leonardo Pimentel, coordenador do Radiocare - Centro Especializado em Radioterapia do Hospital Felício Rocho, aponta ainda o IGRT, ou radioterapia guiada por imagem, como um avanço. “No aparelho, que chegou a BH há cerca de 10 anos, uma tomografia é realizada na hora da aplicação do tratamento, o que traz como vantagem conseguir enxergar a próstata no momento da irradiação e, consequentemente, garantir margem de segurança maior na delimitação da área atingida.”

O especialista também cita o IMRT, ou radioterapia com intensidade modulada, como alternativa eficaz por conseguir minimizar a radiação nos órgãos sadios, próximos à próstata. O inconveniente, no entanto, é o fato de nem todos os planos de saúde autorizarem o tratamento com tais tecnologias. “Uma outra novidade, chamada radioterapia estereotática ablativa (SABR), permite realizar todo o tratamento em apenas cinco aplicações - o que minimiza o desconforto em relação à radioterapia clássica, geralmente aplicada ao longo de oito semanas. Mas a técnica é indicada apenas para tumores de próstata iniciais e, necessariamente, precisamos usar o IGRT e o IMRT, o que depende de investimento particular ou de autorizações de planos de saúde”, avisa.

Pimentel lembra que tais avanços são animadores para potencializar a chance de cura em pacientes de câncer de próstata - percentual que chega a 90% para casos descobertos precocemente. “A mortalidade do câncer de próstata é considerada baixa em relação a outros tipos da doença, principalmente se descoberto cedo e tratando-se de um tumor menos agressivo. Assim, quanto antes é descoberto, maior é a possibilidade de a doença estar restrita à glândula. Consequentemente, mais chances de cura e menos riscos de sequelas pós-tratamento.”

Cirurgia robótica já existe em BH

O médico Bruno Mello Santos, doutor em cirurgia, professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e urologista da Rede Mater Dei, conta que nos anos 2000, nos Estados Unidos (EUA), foi realizada a primeira cirurgia robótica em paciente com câncer de próstata, a prostatectomia radical robótica. “A partir daí, a técnica vem ganhando popularidade”, afirma.

Bruno Mello Santos, urologista da Rede Mater Dei, reforça que o diagnóstico precoce e a identificação dos pacientes que se beneficiarão de cada tipo de tratamento são os pilares do sucesso do tratamento do câncer de próstata - Foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press
Entre as vantagens da nova tecnologia, ele descreve a maior precisão de ações e outros benefícios. “A cirurgia robótica permite ao médico visualizar uma imagem com mais definição, em três dimensões (3D), e alcançar regiões bem profundas. As pinças são articuladas, promovem uma dissecção mais delicada e meticulosa dos tecidos. Como uma questão primordial do tratamento de câncer de próstata é a preservação dos pequenos ramos de nervos responsáveis pela ereção, qualquer melhoria na visualização e na dissecção terá um potencial de melhora nesse resultado tão almejado”, explica.

O médico revela que o uso de plataformas robóticas já é bem comum nos Estados Unidos e na Europa, e, aos poucos, vem chegando aqui, uma demora justificada muito em função do custo e da grande carga tributária envolvida na importação dos aparelhos. “A boa notícia é que centros de excelência têm investido na tecnologia. Atualmente, dispomos de algumas plataformas em Belo Horizonte, única cidade de Minas Gerais a contar com tal avanço.”

Santos cita ainda a melhoria dos equipamentos de radioterapia, além das inúmeras novas drogas disponíveis, hoje, para o tratamento do câncer de próstata mais avançado. “Outras alternativas de tratamento minimamente invasivo também estão em estudo, mas, por enquanto, a prostatectomia radical, seja aberta, laparoscópica ou robótica, ainda é o padrão ouro no tratamento cirúrgico dessa doença tão comum”, ressalta.

Para finalizar, o especialista reforça que o diagnóstico precoce e a identificação dos pacientes que se beneficiarão de cada tipo de tratamento são os pilares do sucesso do tratamento do câncer de próstata, e lembra que, em muitos casos, doenças pouco agressivas e indolentes permitem que os pacientes sejam apenas acompanhados sem qualquer tipo de tratamento, modalidade chamada vigilância ativa.

Sintomas

Em fase inicial, o câncer da próstata tem uma evolução silenciosa. Por isso, muitos homens não apresentam nenhum sintoma ou, quando apresentam, são semelhantes aos do crescimento benigno da próstata, também chamado de HPB. No entanto, quando alguns sinais começam a aparecer, 95% dos tumores já estão em fase avançada, dificultando a cura. Confira aqueles suspeitos, que merecem uma consulta ao médico:

» A sensação de que sua bexiga não se esvaziou completamente e ainda persiste a vontade de urinar
» Dificuldade de iniciar a passagem da urina
» Dificuldade de interromper o ato de urinar
» Urinar em gotas ou jatos sucessivos
» Necessidade de fazer força para manter o jato de urina
» Necessidade premente de urinar imediatamente
» Sensação de dor na parte baixa das costas ou na pélvis (abaixo dos testículos)
» Problemas em conseguir ou manter a ereção
» Sangue na urina ou no esperma (esses são casos muito raros)
» Dor durante a passagem da urina, quando ejacula ou nos testículos
» Dor lombar, no quadril ou nos joelhos
» Sangramento pela uretra

SAIBA MAIS: PLANEJAMENTO

Estudos comprovam que uso da tecnologia PET/CT PSMA alterou em mais de 50% o planejamento do tratamento de casos de câncer de próstata. Leonardo Lamego, médico coordenador da medicina nuclear da Rede Mater Dei de Saúde, informa que o PSMA é uma substância, um antígeno marcador específico da membrana prostática (célula cancerígena), indicado na localização da recidiva do câncer de próstata. Os estudos sobre esse marcador se iniciaram na década de 1980, porém somente em 2015 foi possível a associação do PSMA com o gálio 68, permitindo a visualização dos tecidos por ele marcados. A partir dessa associação, foi possível a realização do PET/CT, que é uma tomografia por emissão de pósitrons, associada a uma tomografia computadorizada, tornando viável a captação de imagens funcionais e anatômicas. Esse modelo de imagem permitiu a localização precisa da recorrência da doença, possibilitando então ao médico escolher o melhor tratamento para seu paciente, de acordo com a localização da recidiva do tumor e/ou suas metástases. Estudos recentes comprovaram que, após a realização do PET/CT PSMA, o planejamento do tratamento foi alterado em até 63% dos casos, diminuindo a incidência de efeitos deletérios (ou nocivos) dos tratamentos recomendados.

Glossário
» PET/CT: aparelho de imagem
» PSMA Gálio 68: o fármaco utilizado no exame
» IGRT: Radioterapia Guiada por Imagem
» IMRT: Radioterapia com Intensidade Modulada
» SABR: Radioterapia Estereotática Ablativa

PROCEDIMENTO EM ESTUDO

Disponível na Rede Mater Dei de Saúde, a cirurgia robótica ainda não consta no roll de procedimentos da Agência Nacional de Saúde (ANS), mas o grupo está em negociação com os planos para viabilizar a realização do procedimento. A expectativa é de uso mais frequente da tecnologia robótica, com redução de custo relacionada à escala de utilização do equipamento.


- Foto: Carlos Leite/DivulgaçãoENTREVISTA / ARN MIGOWSKI - Psicanalista, médico epidemiologista e chefe da Divisão de Detecção Precoce de Câncer do Inca

Polêmica envolve os exames de rastreamento
Inca sugere testes apenas para grupos específicos ou quem tem sintomas da doença


Órgão vinculado ao Ministério da Saúde, o Instituto Nacional do Câncer (Inca) produziu a cartilha Câncer de próstata: vamos falar sobre isso?. O material traz informações sobre a doença, além de abordar questão polêmica sobre as indicações de entidades internacionais e nacionais em políticas públicas que restringem o rastreamento da doença por meio dos exames de toque retal e PSA para a população em geral. Segundo a entidade, a realização de tais testes traz malefícios e não devem ser feitos por toda a comunidade, mas apenas por grupos específicos e/ou homens que sentirem sintomas da doença. Saiba mais na entrevista a seguir.

Segundo dados do Inca, 61,2 mil novos casos de câncer de próstata ocorreriam no Brasil em 2016, correto?

Correto, e essa estimativa é válida também para 2017.

O mesmo portal traz o número de 13.772 mortes em 2013. Trata-se de um percentual considerado baixo? Por favor, justifique.

O número não é baixo. Ele apenas é relativamente pequeno em relação à incidência do próprio câncer de próstata no país, o que o caracteriza como um tipo de câncer de baixa letalidade em geral e alta taxa de sobrevivência após o diagnóstico da doença, o que também se relaciona, em parte, ao sobrediagnóstico associado ao rastreamento, ou seja, excesso de diagnóstico de casos assintomáticos que não evoluiriam para a morte mesmo sem tratamento.

Quais são os objetivos da cartilha lançada pelo Inca e Ministério da Saúde?

Informar a população sobre o câncer de próstata de forma geral, inclusive sobre os limites dos exames de rotina em homens assintomáticos (incluindo as incertezas e riscos). Mas apenas para uma abordagem inicial, pois a cartilha é limitada na quantificação dos riscos e não esgota o assunto.

Este mesmo material não indica que o rastreamento do câncer de próstata seja realizado como estratégia de política pública de prevenção ou redução na mortalidade pela doença. Por favor, justifique a orientação.

Há evidências científicas de boa qualidade que afirmam que o rastreamento do câncer de próstata produz mais dano do que benefício. Por isso, o Instituto Nacional de Câncer mantém a recomendação de que não se organizem programas de rastreamento para o câncer da próstata e que homens que demandam espontaneamente a realização de exames de rastreamento sejam informados por seus médicos sobre os riscos e provável ausência de benefícios associados a essa prática.

De que forma o rastreamento interfere nas estatísticas sobre a mortalidade provocada pelo câncer de próstata?

Talvez o rastreamento com PSA possa evitar alguns óbitos por câncer de próstata, mas existe controvérsia sobre a existência desse benefício entre os principais estudos existentes. Mesmo considerando a existência de benefício, é importante considerar também que a prática de rastreamento pode causar alguns óbitos desnecessários por outras causas, além de danos como impotência sexual e incontinência urinária. Por isso a necessidade de decisão compartilhada, mesmo para os homens que pedem ativamente esses exames de rotina.

Quais são esses malefícios? Por favor, explique os termos sobrediagnóstico e sobretratamento.

Sobrediagnóstico significa um excesso de diagnóstico de câncer de próstata em homens que, sem esses exames de rotina (geralmente toque retal e PSA), nunca descobririam esses cânceres em vida. Individualmente, o médico não pode ter certeza completa se um homem assintomático rastreado é ou não um paciente sobrediagnosticado, gerando o excesso de tratamento (sobretratamento).

De toda forma, a decisão por fazer ou não o rastreamento deve partir do paciente e de seu médico, certo?

O Inca recomenda que homens que demandam espontaneamente a realização de exames de rastreamento sejam informados por seus médicos sobre os riscos e possível ausência de benefícios associados a essa prática. Então, deve necessariamente haver um extenso processo de decisão informada e compartilhada entre médico e paciente antes da opção pelo rastreamento.

O senso comum indica descobrir e tratar agressivamente um câncer, correto? Em que medida essa orientação do Inca e de outros órgãos internacionais de saúde pública poderiam prejudicar o paciente?

O que o Inca e outros órgãos internacionais de saúde pública têm como objetivo é fornecer recomendações mediante o balanço entre riscos e benefícios. Essa estratégia também é conhecida como prevenção quaternária.

O doente sem sintoma que não procurar a prevenção por meio de exames periódicos como PSA e toque retal corre mais riscos de morrer por câncer de próstata?

Infelizmente, nenhum exame periódico como PSA ou toque retal é capaz de prevenir o câncer de próstata. Talvez o rastreamento com PSA possa evitar alguns óbitos por câncer de próstata, mas existe controvérsia sobre a existência desse benefício entre os principais estudos existentes. Para o toque retal de rastreamento, a incerteza sobre benefício é ainda maior. Mesmo considerando a existência de benefício, é importante considerar também que a prática de rastreamento pode causar alguns óbitos desnecessários por outras causas, além de danos como impotência sexual e incontinência urinária.

A questão da expectativa de vida também é citada no documento publicado no portal do Inca. Qual é a orientação em relação a pacientes com expectativa de vida menor que 10/15 anos, que devem ser informados sobre a improvável existência de benefícios com o rastreamento?

Para esses homens, a probabilidade de sobrediagnóstico e sobretratamento com o rastreamento aumenta ainda mais em função das mortes por outras causas. Por isso, em vez de benefícios, nesses casos o rastreamento acaba trazendo apenas riscos desnecessários e diminuição da qualidade de vida.

Médicos especialistas criticam a orientação, afirmando que a política pública brasileira quer evitar a obrigação de fazer os exames e/ou tratar a população. Qual é a opinião do Inca a respeito?

O sobrediagnóstico e o sobretratamento criam ilusão de benefício também para os médicos, que acabam supervalorizando o rastreamento. Esse é um fenômeno bem conhecido e denominado como “paradoxo da popularidade do rastreamento” no meio científico. Mas isso tende a diminuir. A necessidade da decisão compartilhada já é praticamente uma unanimidade no mundo e até mesmo no Brasil, onde essa é uma realidade mais recente. Contudo, é preciso que a decisão compartilhada seja mesmo implementada na prática clínica brasileira.

Ciente de que o câncer de próstata é o mais frequente e uma das principais causas de morte por câncer na população masculina no mundo e no Brasil (GLOBOCAN, 2008), quais são, afinal, as principais recomendações no tocante à prevenção e ao rastreamento da doença?

Para prevenção devemos considerar que é uma doença multifatorial, mas algumas estratégias podem reduzir o risco de desenvolver câncer de próstata como atividade física regular, dieta saudável com consumo de pelo menos cinco porções diárias de frutas, legumes e verduras, manutenção do peso corporal adequado e moderação no consumo de bebidas alcoólicas. Não fazer o rastreamento também diminui a incidência, pois evita o sobrediagnóstico. Para diagnóstico precoce, o sistema de saúde deve ser capaz de dar acesso à avaliação médica e garantir a integralidade com acesso a exames confirmatórios como biópsias e ao tratamento dos casos que necessitarem. Para rastreamento, devem-se evitar campanhas que superestimem os benefícios e não informem os riscos associados ao rastreamento do câncer de próstata. Homens que demandam espontaneamente a realização de exames de rotina devem ser informados por seus médicos sobre os riscos e possível ausência de benefícios associados a essa prática e ser envolvidos em um extenso processo de decisão compartilhada antes da decisão pelo rastreamento. Para aqueles que aceitam o rastreamento e porventura vierem a ter um câncer detectado, a vigilância ativa (sem tratamento imediato) deve ser oferecida dependendo das características do câncer diagnosticado e de valores e preferências do paciente.

Engajamento que salva vidas
Entidades de apoio, como a Lado a Lado pela Vida e o Oncoguia, levam informação de qualidade à população. Este mês, propõem ações especiais para dar visibilidade ao tema

Em comparação às mulheres, historica e culturalmente, os homens se dão e recebem menos atenção no quesito saúde. Exemplo vem da educação sexual em família, quando à menina adolescente é proposta visita periódica ao ginecologista e ao menino é, geralmente, dispensada a ida ao urologista. Outro sinal pode ser percebido na repercussão de campanhas contra os cânceres que acometem um e outro sexo, vide o movimento maciço em torno do Outubro Rosa x o movimento que se desenvolve, aos poucos, em relação ao Novembro Azul.

O ator Carlos Casagrande participa da campanha Novembro Azul do Instituto Lado a Lado pela Vida - Foto: Instituto lado a Lado/Divulgação
No entanto, a partir dos anos 2000 vem surgindo no Brasil entidades e iniciativas que objetivam virar essa página ao reforçar a ideia de que também a população do sexo masculino deve ser sensibilizada e estimulada a cuidar da saúde. Pioneiro e responsável por trazer o conceito Novembro Azul para o país, em 2008, o Instituto Lado a Lado pela Vida, entidade sem fins lucrativos sediada em São Paulo (SP), é referência na proposição do debate com foco no assunto. “Fundado e presidido por Marlene Oliveira, o Instituto realiza trabalho voltado para a saúde do homem, em especial para o câncer de próstata, a fim de conscientizar a população masculina e em geral sobre a doença e sobre a saúde”, revela Denise Blaques, diretora da entidade.

Ela conta que o projeto surgiu por incentivo do urologista Eric Roger Wroclawski (já falecido), que sabia sobre a importância de divulgar informações sobre a doença. “Antes de falecer, justamente em decorrência de um câncer de próstata, ele deixou o estatuto da entidade pronto. Marlene, amiga do médico, aproveitou aquele legado para fundar a entidade e, assim, lutar contra a perda de vidas entre a população masculina.”

A princípio, o instituto baseou as ações no internacional Movember, movimento surgido na Austrália e simbolizado por ações de conscientização e pela proposição de que os homens deixassem o bigode crescer neste período do ano, num sinal de adesão e de divulgação da campanha. “Aqui no Brasil, a ideia de deixar o bigode crescer em apoio à causa não deu certo. Então, o instituto resolveu criar o Novembro Azul, em referência ao Outubro Rosa, um movimento também internacional e já reconhecido pela população em geral.”

Assim, ela explica que o trabalho do instituto é promover ações para a prevenção e os cuidados com a saúde masculina, tanto no tocante ao câncer de próstata - primeiro tema abordado e principal bandeira da instituição -, quanto a outros tipos da doença que acometem os homens, como os cânceres de pênis e testículos. “Um dos grandes entraves na questão da saúde masculina é que o comportamento deles se difere do da mulher, que tem bastante interesse em cuidados e prevenção. Exemplos vêm da inexistência de centros de referência, grupos de apoio e de políticas públicas específicas para essa parcela da população. Pesam, ainda, o fato de o homem ser mais reservado e de o tema câncer de próstata ser cercado de preconceitos em relação, principalmente, ao exame de toque retal e às possíveis sequelas de um tratamento. Por isso, além de falar sobre a saúde masculina como um todo, criamos o fórum Ser homem no Brasil (com próxima edição terça-feira, em Brasília), em que temos debatido junto à comunidade e órgãos governamentais a necessidade da implementação de políticas públicas e linhas de abordagem aos cuidados com a saúde específicas para esse público.”

Gap entre diagnóstico e tratamento

Denise aborda também a questão cultural, criticando a ideia do senso comum em que é dispensado aos homens cuidados preventivos com a própria saúde, e lembra que a mulher é uma grande aliada nessa questão, reforçando, no entanto, que a responsabilidade é deles, pessoal. “Na cultura do brasileiro, não existe uma educação que observe a saúde masculina. Assim, os homens não têm um acompanhamento regular, procurando o médico apenas em caso de sintomas clínicos.” Outra crítica é direcionada ao Sistema Único de Saúde (SUS). “A morosidade do SUS promove um gap entre o diagnóstico e a marcação de cirurgias ou tratamentos, o que reforça as estatísticas negativas, já que muitos pacientes de câncer já chegam ao hospital metastáticos.”

O médico Rafael Kaliks é oncologista do Hospital Israelita Albert Einstein e diretor científico do Instituto Oncoguia, outra organização da sociedade civil de interesse público (Oscip) que apoia vítimas do câncer. Por meio de um portal com informações a respeito da doença e de ações e projetos educativos na comunidade, a entidade versa sobre temas como direitos do paciente, políticas públicas, regras de convênios e saúde pública, além de trazer depoimentos e outros assuntos de interesse.

Especialista no tema, Kaliks reforça a importância da detecção precoce. “Por ser uma doença silenciosa, boa parte dos casos são descobertos já em estágio avançado. Por isso o rastreamento e o diagnóstico precoce são importantes para decidir se um paciente deve ser tratado ou pode ser apenas acompanhado.”

O médico ressalta ainda que, entre oncologistas urologistas, a posição sobre a indicação de rastreamento para homens acima dos 50 anos é proativa, principalmente para aqueles com histórico familiar de casos da doença. Ele não concorda com a posição do Ministério da Saúde e de outros órgãos no tocante à dispensa do rastreamento para a comunidade em geral. “Como a maioria dos homens só vai ao médico quando está doente, consideramos tal postura um erro”, diz.

BOMBAS DE TESTOSTERONA

O médico lembra um comportamento de risco cada vez mais comum, relacionado à vaidade: a ingestão de bombas ou o uso de cremes de testosterona, ação que vem se difundindo entre homens de idade madura preocupados em repor a musculatura perdida com o passar dos anos. “Essa atitude aumenta o risco e a velocidade de crescimento de um tumor de próstata. Todos os meses chegam pacientes aqui que fizeram essa besteira.”

Para finalizar, Kaliks aproveita o Novembro Azul para falar que a doença é potencialmente letal, mas também tratável e curável. “Se conseguíssemos que todo homem com 50 anos fosse ao médico, comemoraríamos uma grande vitória, já que a doença prevê alta chance de cura. É importante ressaltar também que após o tratamento uma parcela grande experimenta uma rotina de vida normal, sem sequelas.”

Ações Novembro Azul 2017

» 13/11, das 19h às 21h: Webmeeting com o tema Os cânceres de maior incidência nos homens: próstata, pulmão, pele e melanoma, pênis e testículos.

» De 13 a 17/11, das 9h às 16h: Mutirão da Saúde do Homem, Instituto Lado a Lado e Associação Presente Minas Gerais

» 17/11, 19h: Solenidade e iluminação do Cristo Redentor, Rio de Janeiro

» 21/11: A Sociedade Brasileira de Urologia participa do Fórum de Políticas Públicas e Saúde do Homem, na Câmara dos Deputados, em Brasília. O fórum ocorre todos os anos por sugestão da entidade para discussão da saúde do homem. Neste ano, o tema é Masculinidade e saúde do homem. O coordenador do Novembro Azul 2017, Geraldo Faria, falará sobre Desafios da resistência masculina ao exame urológico.

» 21/11, das 19h às 21h: Webmeeting com os temas A violência na vida do homem e A sexualidade e o câncer

» 30/11, das 19h às 21h: Webmeeting com o tema A saúde mental e emocional: como cuidar?

Onde se informar:

» Sociedade Brasileira de Urologia www.portaldaurologia.org.br e www.fb.com/SociedadeBrasileiraUrologia/

» Instituto Lado a Lado pela Vida www.ladoaladopelavida.org.br/

» Oncoguia www.oncoguia.org.br/

» Associação Presente de Apoio a Pacientes com Câncer - Padre Tiãozinho www.associacaopresente.org.br/.