O sentido de brincar vem da palavra brinco, cuja raiz é o latim, vinculu. Em bom português: tudo que ata, liga. Quando brincamos com alguém estabelecemos uma união, de caráter lúdico, agradável, propensa a formar laços, algumas vezes, eternos. No mês das crianças, a diversão da meninada ganha destaque. Mas a atividade típica da infância não é mera diversão. É direito. E está expressa em legislações brasileira e de âmbito internacional. Seja em casa, seja na pracinha, em família ou entre amigos, reforça afetos, estimula o desenvolvimento cognitivo e motor e traz felicidade.
São várias as formas de deixar o lúdico falar mais alto. Na escola, é sinônimo de explorações em diversos níveis e de descobertas do próprio corpo e do ambiente. No espaço público, é a oportunidade de encontrar sentidos e de sentir o ambiente onde se vive. Brincadeiras perpassam também a leitura. Na contação de histórias, a fantasia abre caminhos para um mundo novo. Quem narra dá vida a personagens e à imaginação.
Brincar aproxima. Por meio do brincar a criança aprende a conhecer a si própria, os outros e o mundo ao seu redor. Aprende a expressar seus sentimentos, a organizar emoções e a construir sua autonomia, explica a psicóloga e diretora da Escola Infantil Galileo Galilei, Vanda Alves. Segundo ela, cada um brinca a seu modo, mas, no grupo, precisará construir o seu espaço e aprender a dividi- lo, a resolver os questionamentos dos amigos. “Vai tomando conhecimento do outro e aprendendo regras e limites. Adquire sentido de identidade e de pertencer àquele grupo. Por meio da fantasia, da imaginação, a criança vai se preparando emocionalmente para controlar suas atitudes dentro de um contexto social.
No mundo da criança
Pais que brincam com seus filhos criam uma relação muito mais sólida e saudável. Estabelecer uma rotina de brincadeiras diárias é fundamental para a troca de afeto
Jogo de memória, jogo da velha, leituras, desafios, aprendizado, ensinamentos, trocas de experiências. Tudo isso somado para resumir a relação numa única palavra: afeto. Pais e filhos sorriem, dão gargalhadas, inventam, criam e se divertem. O momento é único. Gostoso, aconchegante. Ali, a fantasia fala alto, a imaginação voa e a criatividade se estabelece. É no quarto colorido montado especialmente para eles que os irmãos Arthur, de 5 anos, e Pedro Brandão, de 3, se jogam nesse mundo de criança junto com os pais, para deixar o amor entre eles ainda mais forte.
Os policiais Nayana de Souza Ramos, de 33, e Welvisson Gomes Brandão, de 42, estabeleceram uma rotina de brincadeiras diárias para que nenhum momento da infância dos garotos seja perdida.
A mãe afirma que, se deixar a própria rotina em primeiro lugar, é facilmente consumida pela falta de tempo. “Por isso, tiro esse momento. Paro tudo e só faço o que preciso depois que eles dormem”, relata. Arthur e Pedro vão para a escola pela manhã e retornam no fim do dia. Mais que brincadeira, é nesse momento só deles que os pais aproveitam para ensinar, conversar, passar valores e princípios. “Um cantinho de brincadeiras é algo que todo mundo pode fazer. É importante para eles se desenvolverem. Brincar juntos é muito importante e eles amam. Cansa-me, mas faço com muito prazer.”
A psicopedagoga e mestre em educação Jane Patrícia Haddad afirma que o brincar possibilita à criança se expressar, criar e recriar seus “dramas”. Além disso, o momento da brincadeira se configura como oportunidade singular e um convite a se desenvolver saudavelmente. “Gosto muito de observar as crianças, o como elas reproduzem os seus dilemas pessoais nas brincadeiras. Em um mundo da pressa, o tempo do brincar parece bobagem, mas não é. Pelo contrário, ele é essencial”, ressalta. “Como adultos que somos, deveríamos abrir mais espaço para as brincadeiras de roda, de construção de brinquedos, de negociação e, principalmente, abrir espaço para o descobrir de um mundo cru, que esquece que educar é incompatível com a pressa, que esquece que a infância é o momento de explorar o papel no mundo”, acrescenta.
Para ela, esse investimento começa no primeiro ambiente de aprendizagem: a família. Citando o pediatra e psicanalista inglês Donald Woods Winnicott (1896-19710, Jane destaca que “a brincadeira é universal e é própria da saúde: o brincar facilita o crescer, logo, a saúde”. A psicopedagoga acredita que o momento de permitir que as crianças sejam crianças e podem levar o seu tempo é muito delicado. “Quando elas chegaram ao mundo, ele já estava girando. Cabe a nós, adultos, orientá-los e permitir que eles cresçam em seu tempo e não no nosso. Criança é simples, nós, adultos, é que complicamos”, diz.
A especialista chama a atenção para o fato de as crianças terem cada vez menos tempo para brincar, por causa de agendas cheias com aulas extracurriculares. Segundo ela, as pessoas se preocupam tanto em preparar as crianças para o futuro que se esquecem do presente. “O momento presente é da importância do percurso, um tempo que vai no sentido contrário da inovação, da eficiência e do resultado.”
De acordo com ela, as crianças observam os adultos e reproduzem, em suas brincadeiras, o que veem, sentem e interpretam. “A bússola é a palavra do adulto, porém, é com as crianças que aprendemos. Sugiro que os adultos prestem atenção nas brincadeiras e apurem o seu olhar e escuta. Ali tem muito o que nós devemos aprender”, diz. “O lúdico é um convite à vida, é a possibilidade de uma comunicação consigo mesmo e com o outro, com o mundo.”
LEI
No Brasil e no mundo, brincar é prioridade absoluta. É bem-estar, é afeto, é diversão. Mas não é só isso. É lei. Está expresso em estatutos, recomendações e proposições para garantir uma liberdade nem sempre respeitada. Advogado do programa Prioridade Absoluta, do Instituto Alana, Guilherme Perisse afirma que as legislações abordam questões propositivas. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), por exemplo, classifica o brincar como uma das formas de garantir a liberdade das crianças, em seu artigo 16. “Em qualquer lugar onde o cidadão tem direito à liberdade, a criança tem o direito ao brincar”, afirma.
O marco legal da primeira infância, legislação específica para crianças de 0 a 6 anos, constitui áreas prioritárias para a primeira infância, como cultura, brincar e o lazer, entendido também como uma expressão cultural da meninada. Já a Convenção dos Direitos Internacionais das Crianças trata do reconhecimento, por parte do estado, ao direito de descanso, lazer e atividades recreativas da idade.
O artigo 227 da Constituição brasileira, por sua vez, fala da prioridade absoluta: é dever da família, do estado e da sociedade assegurar uma série de direitos, como educação, lazer e cultura. “Não tem como garantir a liberdade sem garantir o brincar. No mínimo, essas quatro leis garantem expressamente o direito da criança ao brincar”, afirma o advogado. “O direito das crianças é um dos campos com os maiores desafios para se garantir. Internacionalmente, há muitas violações, no Brasil, muitas delas são chocantes - muitas com as quais convivemos, mas sequer conhecemos”, ressalta Perisse.
Ele lembra que, já em 1959, a Declaração Universal dos Direitos das Crianças, no seu Princípio nº 7, evocava que a criança deve desfrutar plenamente de jogos e brincadeiras dirigidos à educação. “Essa é uma visão antiga. Hoje, é interessante que o brincar seja livre e os meninos criem suas próprias regras.”
Até mesmo a Organização das Nações Unidas (ONU) aborda a questão no artigo 31 de seu Comentário Geral e destaca desafios: falta reconhecimento da importância do brincar, as pessoas reconhecem ambientes como inseguros e perigosos e há uma dificuldade da sociedade e do poder público de equilibrar riscos e segurança do brincar. Também cita a negligência do poder público em trazer a previsão do brincar, bem como a falta de investimentos em oportunidades culturais.
A ONU aborda, ainda, aspectos ligados a vulnerabilidades específicas, como as atribuições domésticas dadas a meninas, as impedindo de brincar. “A diferenciação de gênero também já chega no brincar e reforça estigmas sociais. Crianças com deficiências têm barreiras impostas e se frustram na plena afruição do direito ao brincar. Aquelas em situação de vulnerabilidade social, impossibilitadas de acessar espaços públicos. E crianças de comunidades tradicionais que sofrem discriminação étnica, religiosa ou social, que pode acarretar na exclusão do brincar”, ressalta Guilherme Perisse.
Escola é lugar de... diversão
Além de promover o aprendizado, instituições de ensino são sinônimo de brincadeiras, principalmente na primeira infância, em que o lúdico é estratégia para ensinar e aprender
Escola é lugar de aprendizagem, mas é também sinônimo de brincadeiras. Principalmente na primeira infância. Nessa fase, o lúdico é uma importante estratégia para ensinar e aprender. Cores, formas, as primeiras letras, números, noções de matemática e muita, mas muita história mexem com o imaginário de quem está apenas começando a viver. Jogos pedagógicos e aqueles de antigamente, em que a regra é a integração entre as crianças e a fantasia correndo solta, ditam os rumos do currículo e até mesmo da grade de atividades.
Psicóloga e diretora da Escola Infantil Galileo Galilei, Vanda Alves ressalta que o lúdico é usado como recurso para despertar o prazer de aprender. Nesse ambiente, a criança será desafiada a pensar e a resolver situações/problemas. “Quando brincam, elas se apropriam do conhecimento de forma prazerosa, divertida e espontânea”, diz. Para isso, é preciso oferecer um ambiente favorável com materiais para que isso ocorra e centrar no brincar individual e coletivo para que a meninada desenvolva habilidades e competências.
Segundo ela, o objetivo é oferecer vários tipos de experiências. No brincar livre, a criança sente-se aventureira e exploradora. Nos jogos simbólicos, desempenha personagens de seu cotidiano. “A escola é um lugar de brincar para crescer, desafiar e aprender”, destaca. No Galileo, toda segunda-feira é dia do brinquedo e, somente nesse dia, é permitido aos alunos levar algo de casa. A intenção é estimular a socialização e valores como a partilha: saber brincar com o que é seu e do outro, respeitando e compartilhando. Valores esses que já estão no cotidiano escolar, uma vez que a instituição tem vários brinquedos que não pertencem só a uma criança, mas ao coletivo, a obrigando, desde sempre, a dividir.
Na grade de horários, há uma rotina de jogos. Os práticos são aqueles com os quais os alunos fazem explorações sensoriais e motoras, como segurar objetos durante uma brincadeira (peteca, boliche, entre outros). Os simbólicos permitem a meninos e meninas, aos poucos, compreender a imitação, o faz de conta (brincar de casinha, de escolinha, de supermercado). Por fim, os jogos de regras, usados até a fase adulta: memória, bingo, dança das cadeiras, coelhinho sai da toca e outros. Até o contato com areia é valorizado – pelo menos uma vez por semana, a meninada se joga no cantinho da terra, se suja, descobre novas sensações e descarrega energias.
COTIDIANO
Outra diretora do Galileo, Denise Gaia explica que, ao brincar com jogos simbólicos, a criança terá que imaginar situações do seu cotidiano, compreendendo as regras que os regem, usando o raciocínio, sentimentos de vitórias e derrotas, aprender a respeitar o próximo, saber esperar sua vez, aprender a perder e reconhecer o erro, dividir e compartilhar brinquedo, ser amigo. “Esses são objetivos que visamos alcançar nos momentos dos jogos. Entretanto, não podemos deixar que os alunos joguem por jogar. Os objetivos precisam estar definidos pelo educador nos momentos em que são usados os jogos no planejamento de sala de aula”, afirma.
Tudo isso é desenvolvido num cenário peculiar da sociedade, conforme lembra Vanda Alves. “A geração de hoje vive um mundo diferente. O mundo virtual já faz parte da vida dela, e usar internet e jogar no computador também desenvolve habilidades de grande valor. Temos de ficar atentos, entretanto, sobre o que ocorre ‘lá fora’, no ambiente externo”, diz. Segundo a psicóloga, aspectos da vida moderna, como morar em apartamento, ter um único filho e o medo das ruas deixam de oferecer outros tipos de experiências que podem prejudicar o desenvolvimento da criança. “Nosso objetivo é resgatar as brincadeiras esquecidas e promover maior contato com a natureza, valorizar o relacionar com os amigos, as conversas, explorar mais a cidade em que vivemos. Há um movimento muito interessante, de se apropriar mais das praças e parques, que dão garantia de liberdade e boas brincadeiras. Por isso, queremos oferecer outros tipos de experiências com o mundo e com o conhecimento”, afirma Vanda.
Nas asas da imaginação
A brincadeira das letras é um momento prazeroso, divertido, de afetividade e interação. Isso amplia ainda mais a importância da seleção dos livros, para que sejam interessantes para todos, diz a especialista em mobilização social da Fundação Itaú Social, Claudia Sintoni. E para a leitura se tornar um hábito, é importante estruturar uma rotina que incentive a criança a construir sua relação com os livros.
Ela ressalta que o lúdico é um elemento que proporciona a convivência com diferentes pessoas e contextos e, nesse sentido, a leitura se aproxima do brincar, especialmente quando se fala da leitura compartilhada com o adulto. “É por meio dela que a criança conquista um novo universo para explorar, expande seu imaginário e criatividade, amplia o repertório cultural e experiências”, afirma. Ela destaca que não é necessário incluir na leitura outros recursos, como fantoches, vozes de personagens ou dramatizações. “O texto e as ilustrações são recursos suficientes para que os pequenos tenham uma experiência significativa e interessante. Além disso, eles exercitam mais a capacidade de interpretação apenas ouvindo a voz de quem lê.”
Estudo da fundação “Impacto da leitura feita pelo adulto para a criança, na primeira infância, para o desenvolvimento do indivíduo”, indica, entre outros aspectos, que quando os pais leem para as crianças antes de dormir há melhora na qualidade do sono e diminuição da ansiedade, do isolamento e do comportamento agressivo, aumentando o bem-estar e refletindo na saúde geral da criança. A leitura de obras de ficção tende a melhorar a empatia e as habilidades sociais dos indivíduos. “A narrativa literária ensina a lidar com sentimentos e fortalece a criança para que se torne um adulto emocionalmente saudável e preparado para ser ativo na aprendizagem da vida e do conhecimento”, afirma a especialista.
Sem contar os benefícios emocionais e socioculturais. Ouvir histórias estimula a imaginação e a criatividade e aumenta a habilidade de se comunicar. As crianças aprimoram capacidades criativas, de imaginação e sensibilidade para a arte e a cultura, de acordo com Claudia Sintoni.
Aventura e mistério
Na casa da advogada Carolina Cortese Coelho, de 39 anos, ler é sinônimo de se divertir. A rotina com Isabela, de 8, e Bernardo Coelho Fortes, de 3 anos e 8 meses, é em parte estabelecida pelas leituras sugeridas semanalmente pelas escolas dos filhos e pelo que as crianças querem ouvir. “Não forço, pois tem momentos em que as crianças não estão dispostas. Em outros, querem ler mais de um livrinho”, conta.
Isabela lê sozinha, mas se está com uma certa preguiça, a mãe toma frente e participa da leitura. Para estimulá-la, o combinado é que todas as noites ela lerá duas páginas de um livrinho de sua escolha. Com Bernardo, os pais fazem entonação de voz e, às vezes, até teatralizam a historinha, especialmente aquelas pelas quais ele mais se interessou. O menino gosta muito de livros sobre bichos, fazendas e, ultimamente, sobre as letras do alfabeto. A garota adora histórias de aventuras, com algum mistério a ser resolvido.
Fato é: na casa da família, leitura é sinônimo também de diversão. E, para Carolina, são vários os benefícios da contação de histórias, como estimular a imaginação da criança, a curiosidade, a vontade de aprender a decifrar as letras e gostar dos livros. “Do ponto de vista da personalidade, há uma interação familiar preciosa, desenvolve-se uma confiança da criança com os pais. E quanto ao intelecto só há ganhos, pois as crianças aprendem muito com as histórias e, como mãe, aprendo sobre os meus filhos vendo a reação deles àquilo que conto”, ressalta.
“Ler auxilia na concentração para executar tarefas escolares, o vocabulário fica mais rico, eles passam a contar suas próprias vivências diárias com mais detalhes. Além disso, amplia a visão sobre o mundo, aguça muito a curiosidade e tira o foco dos eletrônicos”, diz a advogada. Isabela não tem dúvidas sobre essa brincadeira das letras: “Sinto-me dentro dos livros, dentro das histórias, como se estivesse participando delas”.
45 milhões de livros
A campanha “Leia para uma criança”, promovida pela Fundação Itaú Social e o Banco Itaú, vai disponibilizar ao público este ano, gratuitamente, 3,6 milhões de livros. O objetivo da ação é incentivar a leitura do adulto para a criança como oportunidade de fortalecimento dos vínculos familiares e da participação ativa na educação desde a primeira infância. Os títulos da campanha, recomendados por especialistas em literatura infantil, são O menino azul, de Cecília Meireles, e Em cima daquela serra, de Eucanaã Ferraz. Os livros podem ser solicitados por qualquer pessoa no site www.itau.com.br/crianca. Depois do cadastro, o material será enviado para o endereço indicado, por meio do serviço postal. Também foram disponibilizados 5 mil livros no formato de fonte ampliada e braile, adaptados pela Fundação Dorina Nowill para Cegos, para contemplar pessoas com deficiência visual. Desde 2010 até o fim deste ano, o programa terá oferecido 45 milhões de livros.
Brincadeira à moda antiga
Longe dos tablets, celulares e computadores, uma turminha da pesada põe a mão na massa para confeccionar os próprios brinquedos. Elas se sujam, rolam no chão, sobem em árvores e pintam e bordam
Junia Oliveira e Gustavo Werneck
Nem shopping, nem playground de prédios, muito menos a sala do apartamento. Para algumas crianças de Belo Horizonte, lugar de brincar é no quintal de casa. Eletrônicos também estão fora de cogitação - vale mais dar asas à imaginação, inventando situações e personagens e pondo a mão na massa para confeccionar os próprios brinquedos. Quer mais? Subir em árvore para comer a fruta fresca ou, simplesmente, ver o mundo mais de cima. Parece coisa de antigamente, mas não é. Em plena era digital e numa cidade onde edifícios substituem casas a cada dia que passa, pais estimulam o lúdico à moda antiga e a meninada faz o que deve fazer: se suja, rola no chão, pinta e borda. No interior, as brincadeiras ao ar livre seguem no mesmo ritmo, com direito a jogo de futebol com meninos e meninas num campinho de terra batida.
O pequeno Edgar França, de 4 anos, não entendeu quando o pai disse, certo dia, que lhe daria um carrinho de rolimã. “Isso compra no shopping, papai?”, perguntou o menino. “Não, meu filho, vou fazer pra você. Aliás, faremos juntos”, respondeu o corretor de imóveis Euler Lúcio de Paula França, de 44. Euler é daqueles que têm na memória uma infância repleta de brincadeiras. Ele conta que, ao lado dos cinco irmãos, a farra era boa. “E continua até hoje. Agora, quando nos encontramos na casa do meu pai, brincam filhos e netos”, relata. Ao filho, ensina as mesmas brincadeiras de que gostava. “Na realidade, ele é quem nos estimula a brincar. Aliás, intima”, confessa em meio a risadas.
Edgar é esperto, com energia de sobra. O quintal da casa, no Bairro Minaslândia, na Região Norte de BH, é seu reduto favorito. Bola, bicicleta, pique-esconde. Detrás dos carros, pede para ser encontrado. Adora correr. Durante a semana, chega pela manhã na escola, no Bairro Funcionários, na Região Centro-Sul, e só sai à noite. Por isso, a diversão corre solta mesmo é no fim de semana. Enquanto a mãe, a auxiliar administrativa Graciele Helena de Oliveira, de 33, põe ordem na casa, Edgar e o pai exploram o quintal.
E por lá a imaginação não tem limites. Tem até confecção de pipas. O sucesso foi tanto que Euler foi à escola para fazer papagaios junto com os oito coleguinhas do filho. “Brincar é importante para dar a noção do coletivo. Muita gente tem tentado resgatar isso. São aspectos da formação da criança. Oportunidade de repassar durante a brincadeira, como ter mais atenção ao próximo, ajudar o amiguinho que cai a se levantar. A primeira vez que o Edgar ralou o joelho parecia que o mundo ia acabar. Hoje, nem chora mais”, diz.
LIBERDADE PLENA
Futebol e casinha reinam no quintal da casa do Bairro Campo Alegre, na Região da Pampulha, onde Pedro Lucas, de 9, e Vitória Júlia, de 12, também sentem o gostinho de liberdade plena. É o paraíso dos dois irmãos, onde se sentem à vontade e estão sempre prontos para inventar uma brincadeira. Vitória ainda gosta de bonecas e panelinhas. Nesse mundo de faz de contas, prepara bolo e comidinhas com as plantas que estão ao redor. Pedro adora chutar uma bola. Amarelinha é um dos jogos favoritos da dupla. O varal estendido para secar roupas serve de rede para peteca e outros jogos de bola.
“Eles enjoam rápido do brinquedo pronto, mas esse é um mundo que eles fantasiam. A brincadeira ao ar livre é mais sadia e estimulo muito esse modo de vida”, afirma a mãe das crianças, a técnica de enfermagem Dulcinéia Conceição de Matos, de 37. “Quando era criança, minhas brincadeiras eram assim, com rouba-bandeira, queimada e outras tantas que reuniam a meninada. Hoje em dia é tudo artificial. As crianças ficam presas em tablets, celulares e computadores. Prezo muito por essa liberdade na vida deles”, completa.
E a meninada não se contenta em correr e pular. É preciso ir mais alto e, para isso, lá estão os pés de carambola, manga e goiaba, onde Pedro adora subir. “Subo para relaxar. É muito legal brincar no quintal e é difícil explicar do que mais gosto. Deixo minha imaginação falar”, diz o menino.
PEDAÇO DE MANGUEIRA
No grupo, correndo de lá pra cá e daqui pra lá, estão Jhenifer Emanuele, de 12, Luiz Eduardo e Perla Stefany, ambos de 10, Vitor Gabriel, de 7, e Julio César, de 11. Também de longe, Aline Aparecida Silva observa, com tranquilidade, o filho Luiz Eduardo marcando um gol e a sobrinha Mirele Vitória inventando moda. A menina pula corda, na realidade, um pedaço de mangueira de jardim. “Fazem brincadeira com tudo”, diverte-se Aline. Num intervalo do jogo, o adolescente Gladyston Vieira gruda no celular, bem debaixo da trave. “Cada época tem coisa boa. Infância é boa principalmente pela reunião familiar”, conta o garoto.
Ao ar livre é muito melhor
Mães de BH se juntam para resgatar o prazer e o direito de brincar em espaços públicos e estimular as descobertas de cantinhos para aproveitar o dia ao lado da criançada
Se a cidade é de todos e para todos, a crianças também podem e devem aproveitá-la. Praças e parques são alternativas para quem quer brincadeiras ao ar livre, longe dos muros dos prédios. Mas, correr, pular, socializar e viver plenamente esbarra, muitas vezes, na questão da estrutura e da segurança e no desafio do lúdico em local que não foi pensado para a meninada. Em Belo Horizonte, mães se juntaram para resgatar o prazer e o direito de brincar no espaço público e estimular, cada vez mais, a descoberta de cantinhos perfeitos para aproveitar o dia com a criançada.
A publicitária Flávia Pellegrini, de 37 anos, é mãe de Cecília, de 7, e Olívia, de 3, e idealizadora do movimento Na Pracinha. O projeto promove eventos brincantes gratuitos por BH e disponibiliza uma plataforma de conteúdo (napracinha.com.br) com dicas de passeios e reflexões sobre o brincar e a infância. Com cinco anos de existência, já foram realizados mais de 50 eventos, que reúnem, em média, de 200 a 400 famílias por edição. Flávia também é autora do guia Beagá pra brincar, que reúne mais de 100 dicas de passeios para fazer com as crianças pela cidade.
“Belo Horizonte tem se tornado uma cidade com um olhar mais atento para nossas crianças. Há muitas iniciativas de valorização da infância ocorrendo. Para a criança, o espaço ao ar livre é um grande palco para brincar, e ela vai explorá-lo mesmo diante de seus problemas estruturais, por exemplo”, diz. Segundo ela, ao longo dos cinco anos do movimento, por circular muito pela cidade, percebe que falta manutenção dos espaços, dos jardins, dos equipamentos, falta promover um ambiente seguro para as famílias, mas, ainda assim, a meninada permanece brincando por esses locais.
“Temos praças tomadas por vendedores ambulantes e locatários de brinquedos, o que provoca um grande desconforto diante da oferta de consumo persuadindo a criança. Há problemas de iluminação, ausência de policiamento. Não temos, por exemplo, um parque ou praça com brinquedos adaptados para crianças portadoras de necessidades especiais. Os que haviam, na Praça Floriano Peixoto (na Região Leste de BH) e no Parque Municipal (no Centro), foram quebrados. Os brinquedos são depredados ou usados de forma indevida, sem monitoramento. Não há campanhas educativas de conscientização sobre a manutenção do espaço público”, afirma.
Mas são tantos os benefícios, que vale a pena encarar os desafios que ainda se configuram na ocupação do espaço público. Brincar ao ar livre estimula a criatividade, pois a criança inventa a brincadeira a partir dos recursos que encontra na natureza. “Por meio do brincar ela se expressa, aprende, convive, experimenta, percebe o mundo, se desenvolve cognitiva, afetiva e socialmente. O brincar ao ar livre, junto à natureza, promove benefícios diretos à saúde de uma criança. Há estudos que comprovam que pode reduzir o estresse, os sintomas de déficit de atenção e hiperatividade, e até doenças como miopia e obesidade.”
A publicitária destaca que é importante os pais compreenderem os benefícios do brincar para os filhos. “A criança precisa de liberdade e autonomia para brincar da forma como desejar, livremente. Para isso, é necessário que se dê tempo e espaço para que ela se envolva em seu mundo de fantasia e imaginação”, afirma. Se a rotina familiar não permite muito tempo ao ar livre, durante os fins de semana, diz Flávia, vale priorizar os passeios em parques, aos shoppings centers, pois a natureza vai ofertar um mundo novo a ser explorado em conjunto. “É muito importante que os pais e cuidadores se envolvam nessa ludicidade, encantem-se pela criatividade, estando realmente presentes, sem se preocupar com as notificações das redes sociais ou aquela chamada que pode aguardar um tempinho. Brincar com os filhos é uma forma de viver o presente e torná-los melhores no futuro.”
APROPRIAÇÃO
O direito de a criança vivenciar as coisas do mundo e a essência do ser humano. Longe do consumo, do brinquedo de plástico, dos botões dos eletrônicos. Sentir cheiros, materiais, texturas, ver cores. Na complexidade de um pedaço de madeira ou de um galho de árvore, a oportunidade de se relacionar com a diversidade não só de pessoas, como de materiais. Integrante da equipe do programa Território do Brincar, do Instituto Alana, Gabriel Limaverde chama a atenção para a trajetória de distanciamento desse lugar público, que se fecha cada vez mais em lugares privados, emparedados e limitados. O programa é um trabalho de escuta, intercâmbio de saberes, registro e difusão da cultura infantil.
“O primeiro passo é vestir a camisa de cidadão e reclamar, no sentido de clamar de volta, resgatar o vínculo com o público, com o bem comum. Fazendo isso, honramos nosso direito à cidade, além de ser cidadãos ativos, participando e se vinculando a esse território”, diz. Ele conta que, em São Paulo, há um movimento forte em várias praças que, até pouco tempo, estavam abandonadas e foram ocupadas por moradores do entorno. Primeiro, uma limpeza, depois uma horta comunitária e, por fim, um show de música. “Um mesmo grupo começa a se reapropriar do espaço público e, junto com o território, se vincula com nossos concidadãos. Cabe a nós mesmos resgatar a ligação com esses lugares quando o poder público não o faz.”