“Que diferença faz um dia? Vinte e quatro pequenas horas?”, questiona a antiga canção de María Grever e Stanley Adams. Se um dia parece pouco, o que dizer de uma hora? Pois, de acordo com diversos estudos, inclusive feitos no Brasil, 60 minutos podem, sim, fazer uma grande diferença quando o assunto é saúde. De aumento na incidência de infartos a mais internações por diabetes, esses trabalhos mostram que existe uma relação de causa e efeito envolvendo o horário de verão. A literatura científica indica que, no dia imediatamente após o adiantamento do relógio, o número de ocorrências médicas tem um crescimento significativo.
Foi o que constatou o professor da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat) Weily Toro Machado, autor de um artigo publicado no jornal Economic letters, assinado também por Robson Tigre e Breno Sampaio. Ao analisar informações do banco de dados do DataSUS, do Ministério da Saúde, os pesquisadores encontraram associação entre o horário de verão e a elevação na incidência de morte por infarto. O trabalho baseia-se na tese de doutorado de Machado, defendida na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), em que o pesquisador avalia outras relações de causa e efeito, incluindo um número maior de internações por diabetes mellitus.
O economista conta que seu objetivo era investigar o impacto do horário de verão no cotidiano dos brasileiros. Depois de ler um estudo estrangeiro publicado no The New England Journal of Medicine, sobre a incidência de infartos e a política de adiantamento do relógio, Weily Toro Machado decidiu verificar se o mesmo ocorria no Brasil.
Nos estados em que a prática é adotada (todos, menos os do Nordeste e do Norte), na segunda-feira imediatamente seguinte à mudança de horário, o aumento de mortes por infarto variou de 7% a 8,5%. Já nas localidades sem horário de verão, não houve alteração estatística. “Usamos a econometria, um método estatístico que nos permite mostrar uma relação de causa e efeito, sendo que a única coisa que aconteceu naquele período foi a mudança de horário. Isso me permite fazer essa inferência de casualidade”, explica o pesquisador. O Centro-Oeste foi a região mais afetada do país, e a maior parte dos casos ocorreu entre a população com mais de 60 anos.
O diretor científico da Sociedade Brasileira de Cardiologia e pesquisador colaborador da Universidade de Brasília (UnB) Fausto Stauffer explica que, teoricamente, essa associação pode ser explicada pelos efeitos das alterações no ciclo cicardiano, o popular relógio biológico. “A privação de sono libera mais hormônios adenérgicos, o que pode provocar espasmos na artéria do coração. Também há uma produção maior de citocinas pró-inflamatórias, e o aumento das placas nas artérias está associado à inflamação”, diz Stauffer, que também coordena a Cardiologia do Hospital Santa Lúcia Norte.
“Sair de um estado de sono para o de vigília já é um evento estressante para o corpo”, diz Martin Young, professor da Divisão de Doenças Cardiovasculares da Universidade do Alabama em Birmingham. “Quando temos uma mudança abrupta, como perder uma hora de sono no horário de verão, nossos relógios internos não têm tempo suficiente para preparar nossos órgãos”, alega.
Um dos mecanismos afetados, de acordo com Young, é o tom simpático, quando, pela manhã, o corpo envia um grande número de sinais para o coração. Durante a noite, a quantidade de sinais é bem menor. “Porém, quando alguém é privado de sono, o tom simpático pode ficar elevado, mesmo durante o sono, o que é fortemente associado a doenças cardiovasculares. O período do sono é um momento em que o coração não deveria ser desafiado”, afirma.
Influências externas
O cardiologista Fausto Stauffer lembra, porém, que os efeitos da quebra do ciclo cicardiano no sistema cardiovascular, especialmente no que diz respeito à privação crônica do sono, ainda não foram estudados em seres humanos.
O presidente da Sociedade de Cardiologia do Estado do Rio de Janeiro (Socerj), Ricardo Mourilhe, não se convence de que a alteração do relógio em uma hora pode provocar algum problema de saúde. “Nos estudos de observação, muitos fatores externos sobre os quais o pesquisador não tem controle influenciam nos resultados. Para se ter ideia, uma vez, um estudo mostrou uma incidência maior de mortalidade entre não fumantes, comparada a fumantes”, exemplifica. Além disso, ele ressalta que há resultados conflitantes mesmo entre um estudo observacional e outro.
Por exemplo, em 2013, uma pesquisa da Divisão de Cardiologia do Hospital William Beaumont, de Michigan, com dados de 935 pessoas, referentes a 2006 a 2012, detectou aumento na incidência de infarto agudo de miocárdio no primeiro dia após a mudança para o horário de verão. Um ano antes, um trabalho do Instituto Karolinska, da Suécia, encontrou aumento de 5% nessas ocorrências na primeira semana de mudança de horário, crescimento esse classificado como modesto pelos pesquisadores. Já um artigo da Universidade do Colorado em Boulder, publicado em 2014, constatou alteração no horário das ocorrências de infarto, mas não detectou qualquer influência sobre a incidência desses eventos.
Já o economista Weily Toro Machado, da Unemat, acredita que, aliada às estatísticas, a literatura científica garante a credibilidade dos estudos observacionais. Até dezembro, será publicado um novo trabalho, conduzido por ele, mostrando que as internações por diabetes mellitus também elevam em 8,5% logo depois da implementação do horário de verão. O pesquisador também prepara um trabalho para avaliar os custos da saúde pública com o aumento das hospitalizações associadas à alteração nos relógios. “Se temos um aumento de internação, há aumento no gasto público. Então, se por um lado o horário de verão gera economia de energia, o que é muito questionado, por outro, também há um aumento dos gastos de saúde pública”, afirma.
Suspeita de impactos psicológicos
Os estudos observacionais começam a investigar outra associação: a influência do horário de verão sobre transtornos mentais. Contudo, essa é uma área sobre a qual se sabe ainda menos do que a relação da privação de uma hora de sono e doenças cardiovasculares e metabólicas.
Um trabalho recente nesse sentido foi apresentado pelo Hospital Universitário de Aarhus, em Copenhague, baseado em 185.419 diagnósticos de depressão registrados na Dinamarca, entre 1995 e 2012. De acordo com o principal autor do estudo, Søren D. Østergaard, a equipe encontrou um dado curioso. O fim do horário de verão foi acompanhado de um crescimento de 8% nos episódios de depressão. “Estamos relativamente certos de que é a transição do horário de verão para o horário normal que causa o aumento no número de diagnóstico. Não, por exemplo, a mudança na duração do dia ou o mau tempo”, disse, em nota.
Østergaard destacou que o risco é “especialmente verdadeiro” para pessoas com tendência à depressão. De acordo com ele, entre 7h e 8h, as pessoas se beneficiam pouco do dia, porque estão se arrumando para o trabalho, tomando café da manhã, dirigindo etc. “Quando chegamos em casa e temos algum tempo livre, já está escuro na Dinamarca. Além disso, a transição para o tempo padrão pode estar associada a um efeito psicológico negativo, já que ela marca claramente a vinda de dias longos, escuros e frios.”
Chegada do outono
A psiquiatra Helena Moura, preceptora da residência de psiquiatria do Hospital de Base, explica que essa é uma realidade típica de países com clima temperado que, diferentemente do Brasil, escurecem muito cedo. “No estudo dinamarquês, o fim do horário de verão parece deixar as pessoas com medo da chegada do outono, quando esses dias mais curtos e escuros começam. Seria um efeito mais psicológico do que fisiológico, mas não temos como ter certeza”, destaca.
Ela diz que já se sabe que a luz solar tem uma influência no humor. “Mas isso é algo que ainda estamos tentando entender melhor”, pondera. Uma pesquisa em curso citada por Helena Moura vem ocorrendo no Brasil, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Lá, cientistas sob a coordenação da psiquiatra Maria Paz Hidalgo investigam diferenças na resposta ao estresse de ratos que, ou passam o dia inteiro sob luz artificial, ou têm contato na maior parte do dia com a iluminação natural. Os resultados preliminares indicam que os do segundo grupo apresentam um nível maior de resiliência. .