Sexualidade

Transexualidade: quando corpo e mente falam a mesma língua

Apoio da família e de amigos é fundamental para os transexuais, bem como ajuda médica e auxílio multidisciplinar para os que desejam fazer a transição de gênero

Laura Valente
Nascida em Belo Horizonte em um corpo masculino, Carol Marra, hoje, é uma mulher completa.
Formada em jornalismo, modelo, atriz de cinema e TV, ela acaba de assinar contrato para ser o novo rosto de uma linha internacional de cosméticos, numa carreira que vai muito bem.

Olhando para ela, ninguém imagina que a cirurgia de redesignação foi realizada este ano. Tal qual a personagem Ivana, desde criança ela se sentia uma menina em corpo de menino. Quando entrou na adolescência, ela conta ter adotado o visual andrógino para que as pessoas não a identificassem como menino, “mas ainda assim meu nome era masculino”, lembra. O visual feminino foi sendo adotado aos poucos, quando ela começou a trabalhar como assistente de produção de moda e a experimentar as peças de mulher em si mesma, “me realizava um pouco”, diz. Assim, começou a manter algumas peças femininas no porta-malas do carro e, fora de casa, desfilava os looks.

A decisão de contar para a família e fazer a transição veio apenas mais tarde, depois de conhecer e se apaixonar por um rapaz. “Fui visitá-lo na cidade dele disposta a contar tudo, com sutiã de enchimento – nem hormônio eu tomava ainda, mas já era extremamente feminina –, mas vivi uma cena bizarra. Na rua, avistamos um grupo de travestis e ele afirmou que aquilo deveria fazer parte da limpeza urbana, uma crueldade.
Ali tive uma crise de choro grande e percebi que não poderia mais viver uma mentira para agradar aos outros.”

De volta, ela decidiu abrir o jogo. “Pedi a ajuda de um psicólogo para conversar com meus pais. Dali, joguei minhas roupas de homem fora, tirei tudo do armário com a minha mãe ao lado e disse a ela que seria filho para sempre, que só a minha casca iria mudar. Lembrei-me de uma história que ela gostava de contar na minha infância, do lagarto peludo que um dia entrou no casulo e virou borboleta. E garanti a ela que a partir daquele momento seria muito mais feliz. Com o meu pai, já falecido, nunca houve abertura para falarmos sobre isso. Já a minha mãe aceitou e, hoje, às vezes, só lembramos de antes quando ela confunde o meu nome de batismo com o atual.”

Já em busca de independência financeira, Carol se mudou para São Paulo, iniciou a transição e investiu na carreira de atriz. Totalmente mulher, não revela o nome antigo. “Fui a primeira trans brasileira a mudar de nome e de gênero no documento de identidade (que não a identifica como transgênero), abri uma jurisprudência. Mas, apesar do avanço, as pessoas são maldosas, então prefiro ser somente a Carol Marra.”

Ela revela ainda que, apesar de ser um sonho antigo, optou por fazer a cirurgia apenas aos 32 anos por vários motivos, incluindo a agenda de trabalho, o aporte de recursos e os trâmites necessários para conseguir todos os laudos necessários. “Paguei para operar, pois plano de saúde nenhum opera e a fila do SUS é interminável. Foi uma cirurgia muito delicada, de grande porte e de risco, que constrói o canal vaginal, redireciona o trato urinário, cria uma vulva com as zonas erógenas preservadas e tal, mas deu supercerto. Não foi traumático, não tive dor extrema”, revela.
E avisa: “Genitália não define o sexo, eu já era mulher antes de operar. Quando nem tinha feito nada, era ainda mais feminina que hoje. Mas precisava passar por isso e penso que a mudança interior é muito grande, mais importante até que a estética”.

Conhecida em todo o país e até no exterior, Carol se apresenta como a mulher que é de fato. “Não sou marginal, não saio escondido, não sou ET.” Com a fama, ela tem aproveitado os holofotes para chamar a atenção para uma causa maior. “Nunca quis ser e nem sou militante, mas recebi tantas mensagens de apoio, carinho e de questionamentos que penso em manter um canal aberto com o público trans para ajudar no que for preciso, já que muitas vezes essas pessoas não recebem o carinho da família, da sociedade, não têm nenhum colo.”

Para finalizar, ela conta que sim, gosta da novela de Glória Perez, e torce para que o debate vá além da personagem Ivana. “O tema trans está em alta, saímos da invisibilidade, da marginalidade. Agora, meu recado para a sociedade é: as pessoas deveriam ter mais respeito pelo próximo. Parar um minuto das suas vidas e se colocar na pele do outro, imaginar o que sentimos, nossa dor, nosso dilema. E a partir daí formar uma opinião, tentar compreender, colocar-se no lugar do outro. Não precisa gostar, mas o respeito é fundamental”, afirma.

O ator Tarso Brant conta que quando descobriu que seria possível mudar sua aparência foi em frente.
“Ser trans não significa ser diferente, mas apenas alguém que optou por um caminho diferente do convencional”, desmistifica. O rapaz conta ainda que se submeteu à terapia hormonal (com acompanhamento médico) e à cirurgia de retirada da glândula mamária (mamoplastia redutora). “Durante o processo, tive o apoio de todos os amigos e familiares, e o mais interessante foi o fato de meus entes queridos não se preocuparem em questionar minhas escolhas, mas, sim, entenderem a felicidade que elas me trariam”, comemora.

Para Tarso Brant, o Brasil é um país que tem todo o potencial de lidar com essa causa, pois temos todos os recursos necessários... desde que eles sejam usados de maneira apropriada. “Você é trans? Acredite e tenha fé que essa situação foi proposta para sua melhora íntima. Como seres humanos somos iguais, só depende de cada um trilhar seu próprio caminho para a evolução. Busque desenvolver suas aptidões, hábitos saudáveis, estar em paz consigo mesmo sem que críticas alheias lhe tirem o sossego de estar em processo de autoconhecimento.”
Tarso Brant conta que se submeteu à terapia hormonal com acompanhamento médico - Foto: Rafael Machado Felipe/Divulgação
AUXÍLIO 
O primeiro passo para a transição é buscar ajudar médica e um auxílio multidisciplinar, como explica a psicanalista Soraya Hissa de Carvalho: “A adequação de gênero não envolve necessariamente cirurgia ou terapia hormonal, pois cada caso é específico. O primeiro passo é buscar apoio até para que o indivíduo tenha certeza do que está acontecendo e, se for o caso, comece o tratamento de modificação física de forma correta”.

A profissional finaliza com um recado para as famílias de pessoas trans. “Se a família identificar traços de transexualidade em um indivíduo, deve buscar ajuda psicológica. É preciso entender que essas pessoas não se enxergam naquele corpo, olham no espelho e não se reconhecem, não se admiram. Então, é fundamental contar com explicações e orientações, e ter em mente que, desde que o mundo é mundo, existem casos de transexualidade, assunto que enfim entrou em debate e vem ganhando visibilidade.”.