A campanha “Criança não namora! Nem de brincadeira”, organizada pela Secretaria Estadual de Assistência Social (Seas) do Governo do Estado do Amazonas, lançada em abril, repercutiu nas redes sociais. Com mais de 400 mil compartilhamentos, muitos foram de pais e mães que defendem a ideia, que surgiu a partir de discussões de grupos formados por psicólogos, assistentes sociais e professores que utilizam a internet para conscientizar responsáveis quanto aos riscos de expor as crianças aos relacionamentos afetivos próprios da fase adulta. “Não é engraçadinho incentivar beijinhos de namoro ou declarações de amor entre as crianças. É nosso papel separar o mundo adulto do mundo infantil”, diz a professora Dany Santos, blogueira do Quartinho da Dany e parceira da campanha. Luiz Coderch, psicólogo e terapeuta sexual da Seas, afirma que “toda brincadeira executada na infância é um treinamento para um comportamento adulto”. Por isso a importância do acompanhamento e do diálogo.
Flávia Borges, de 39 anos, é mãe da Alice, de 3. Ela se espantou quando a filha cantou que já sabia com quem iria se casar.
Para Luiz Coderch, esse tipo de cantiga é clara para adultos, que entendem o que é namoro ou casamento. Para crianças não. “Quando eu passo isso para a criança, estou passando algo que é do meu mundo, da fase adulta, para a fase infantil. Eu tiro da criança a chance de treinar para a vida adulta”, afirma.
ORIENTAÇÃO
A psicóloga Luciana Nogueira de Carvalho, psiquiatra da infância e adolescência, discorda apenas da conotação moral do tema e da chamada “nem de brincadeira”. De acordo com ela, “é no brincar que a criança elabora as coisas, e a questão fundamental é a orientação para que a criança possa, sim, saber quando um adulto toca seu corpo de maneira inadequada. O brincar é extremamente saudável e um processo necessário.
Adultos em miniatura
Respeitar o tempo de infância das crianças é fundamental para permitir que elas tenham pleno desenvolvimento emocional e preparação para a vida. Pais devem dialogar mais com seus filhos
Atualmente, a sensação é de que as crianças brincam pouco e passam mais tempo em casa, com seus smartphones, televisões e computadores individuais. O debate sobre o uso infantil das redes sociais é atual e assertivo, sobretudo neste momento em que a série 13 reasons why tornou-se assunto. Como os pais podem se aproximar do mundo dos filhos para melhor orientá-los?
“A minha geração de pais, com 30, 40 anos, está muito conectada também e nem sempre estamos juntos quando eles assistem coisas na internet, onde eles acessam o que querem e não temos controle. Minha filha, Mariah, de 6, não mexe no meu celular e, quando o faz, é comigo ao lado. A gente tem que parar de tratar todas as coisas como inofensivas.
“Eu não forço a Mariah para ir no colo, abraçar, beijar alguém. O corpo é dela e se ela não quer que ninguém o toque, ninguém vai tocar. Ela cresceu com isso e tem essa consciência e eu acredito que aos 15 ou 16 anos ela vai ter facilidade em se posicionar e falar: 'Olha, não chegue perto de mim porque eu não quero'. Isso é importante para ela e para a outra pessoa”, declara a fotógrafa. O mesmo vale para o que muitos consideram outra brincadeira: o namoro entre crianças. “Se eu incentivo os namorinhos, um pedófilo vai ter acesso mais fácil a ela e ela não saberá o que está acontecendo, porque eles vão 'brincar' de namoro quando um possível pedófilo disser: 'Vamos só brincar de namorar?'. Se acho bonitinho quando ela diz ter um namoradinho, eu a exponho a um perigo silencioso”, pondera.
PROCESSO CULTURAL
E a pressa em viver uma vida adulta é parte de um processo cultural. Não é preciso circular pelo Centro de Belo Horizonte mais do que 10 minutos para ver pipocar no comércio artigos adultos, mas fabricados para consumo infantil: maquiagem, sapatos com salto, esmaltes, malinhas de pequenos executivos e até sutiãs com bojo (este, pensado para dar firmeza e sustentação para seios maiores, que definitivamente não é o caso das crianças).
Segundo especialistas, vestir ou produzir uma criança como adulto é arrancá-la do ciclo natural das coisas e mergulhá-la no universo adulto. Os resultados podem ser os piores possíveis: desde transtornos de ansiedade e depressão até comportamentos carregados para a adolescência, como agressividade e insegurança. “Os pais precisam deixar que a criança viva a infância livremente e se conscientizar de que os filhos não são adultos em miniatura. Muitos pais e mães pensam que sim e transformam as crianças em pequenos trabalhadores, cheios de tarefas a cumprir. Muitas meninas, antes dos 10 anos, já frequentam salões de beleza e precocemente limitam o tempo do brincar. Assim, ocorre uma inversão do que seria considerado próprio de cada etapa do desenvolvimento”, pondera a psicóloga Luciana Carvalho.
Achar “bonitinho” o namoro entre crianças volta a ser destaque nessa discussão, pois elas não estão familiarizadas com o significado de um relacionamento afetivo, o que pode causar danos. “O que vejo na clínica é um adoecimento que poderia ser evitado caso as crianças brincassem mais”, avalia Luciana. A fotógrafa Ana Paula concorda. “Acredito que seja prejudicial e que cause dano para as meninas, principalmente. A gente se acostuma a ser um trofeuzinho porque é muito comum o menino ter três namoradinhas e isso ser 'lindo', enquanto a menininha não pode namorar ninguém. Mulheres são exclusivas, de um só, e crescem sendo um troféu e isso vai sendo impregnado nas garotas desde cedo”, defende.
“Quando João era mais novo, eu me arrepiava sempre que ouvia alguém falando em namorar ou algo assim, não só pela 'adultização' precoce, mas porque me preocupo com esses padrões na vida dele, padrões de namoro, de heteronormatividade. Não quero que ele cresça se moldando em padrões, nem que reproduza moldes prontos”, considera Amanda Gonçalves, de 23, estudante de pedagogia e mãe do João Francisco, de 4. “Acho legal, durante a criação, dar ênfase às questões de gênero. Os meninos principalmente, nessa questão da mulher, porque a sociedade já vai torná-los machistas o suficiente. Meu papel é tentar desconstruir isso. E nas meninas, ênfase no empoderamento.”
MEMÓRIA: Caso Eloá
O caso Eloá Pimentel, morta aos 15 anos pelo ex-namorado Lindemberg Fernandes Alves, agora com 29 anos, serviu de alerta para as famílias sobre namoros precoces. Após mais de 100 horas de cárcere privado (o mais longo cárcere privado do país), o ex-motoboy atirou na menina que, baleada na cabeça e na virilha, não resistiu e morreu. Os jovens mantiveram um relacionamento por quase três anos, iniciado quando Eloá tinha apenas 12 anos e Lindemberg, 19. O relacionamento, segundo conhecidos da família à época do crime, foi inicialmente rejeitado pela família da menina e acabou sendo aceito logo depois. Naquele ano, a deputada federal Maria do Rosário (PT-RS) era ministra da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e declarou que a atuação do Estado nos casos de violações dos direitos de crianças não é suficiente e que “estamos tentando fazer nossa parte, mas precisamos de pais e mães mais atentos, cuidadores mais atentos, sociedade mais atenta sobre a adultização”.
Papel de todos
Como geralmente as crianças reproduzem o comportamento dos adultos, esse passa a ser um problema da sociedade. Psicólogo defende que é preciso que pais e educadores se envolvam
A partir da publicação da campanha “Criança não namora! Nem de brincadeira”, a Secretaria Estadual de Assistência Social (Seas) do Governo do Estado do Amazonas vem recebendo histórias de pais de outros estados sobre problemas associados aos relacionamentos infantis que ocorrem no ambiente escolar. Em um dos depoimentos, uma mãe da cidade do Rio de Janeiro relatou que a filha de apenas 5 anos recebeu um pedido de casamento em cartão feito pela mãe de um amiguinho do colégio. Apesar de ter exposto o ocorrido à direção da unidade educacional, foi aconselhada a entender que mães de meninos têm esse tipo de comportamento.
Para Luiz Coderch, psicólogo e terapeuta sexual da Seas, que também coordena as atividades dos Centros Estaduais de Convivência da Seas, muitos pais e professores não sabem como agir em relação ao assunto e precisam de um suporte. “Geralmente, as crianças reproduzem o comportamento dos adultos. Então, esse é um problema de toda a sociedade.”
Na opinião da videomaker Flávia Borges, a escola não só tem parte no processo de adultização das crianças, como muitas vezes é uma grande influenciadora do namoro infantil. “Uma vez, a Alice me contou que deu um beijinho na boca do amigo Arthur. Quando fui questionar na escola, disseram que acharam 'uma gracinha'”, indigna-se. O pai de Alice, Joca Corsino, de 33, diz que é preciso incentivar outras atividades e interações sociais. “É natural que a criança se apaixone por um coleguinha ou tenha curiosidade. Por isso, devemos ser presentes e tentar sempre moderar”, posiciona-se. “Quando duas crianças se abraçam ou andam de mãos dadas, dizem que são namoradinhos, em vez de incentivar a amizade. Isso acaba abrindo espaço para a erotização e pode até atrapalhar o aprendizado. Assim como é papel dos pais, também é responsabilidade da escola separar o mundo adulto do infantil”, completa Flávia.
POLITICAMENTE CORRETA
Já para Ana Coutinho, o papel da escola é ser politicamente correta, sem ferir nenhuma diretriz social. A educação e orientação sobre a sexualidade devem vir da família. “Se eu não trato o namoro como tabu e na escola a minha filha recebe proibição disso ou o contrário, é mais um nó na cabeça dela”, e completa: “A política da escola precisa ser assertiva. Não tem muito o que falar, pois o diálogo deve vir de casa”.
O diálogo é a principal orientação que Rubens Eduardo Cordeiro, psicólogo e capelão geral do Colégio Batista Mineiro, dá durante as reuniões da Escola de Pais, projeto que existe há 20 anos. “Um menino de 7 anos diz que tem uma namorada, mas via de regra, a namorada não sabe. Ou quando diz que tem 40 namoradas. É preciso entender o que a criança quer dizer com isso, o que exige investigação, conversas, perguntas sobre como a 'namoradinha' é. Antes de estabelecermos uma sanção, mais importante é ouvir a criança, o que ela acha que é namorar. E aquela velha história: a criança pergunta o que é sexo, os pais entram em crise e atropelam tudo. A questão é, antes de tudo, ouvir. Isso vale pra pais e educadores”, aconselha o especialista.
Para facilitar a escuta e o diálogo, o Escola de Pais é focado nos familiares e visa orientar na educação e formação das crianças a partir de uma conversa aberta sobre os mais diversos temas que influenciam no desenvolvimento de crianças e jovens. Nesta edição do projeto, com o objetivo de aproximar ainda mais a família da escola, e apoiá-la no enfrentamento dos problemas cotidianos em relação à criação dos filhos, a instituição de ensino realiza quinzenalmente, às quartas-feiras, encontros com pequenos grupos de pais. Com isso, o Colégio Batista Mineiro pretende tornar mais personalizado e intimista o bate-papo com os familiares. “A nossa ação não quer diminuir o lugar e a importância da família. Ela é básica. A formação emocional tem papel fundamental sobre tudo e a escola não quer diminuir isso”, assegura.
PALAVRA DE ESPECIALISTA:
Questões de gênero
Viviane Modda, historiadora
“A história da educação no Brasil é marcada pela desigualdade de gênero, não estando descolada da realidade do patriarcado-racista-capitalista, conceito de Heleieth Saffioti. Quando a educação é universalizada, parte-se do pressuposto da igualdade ao incluir as mulheres, mas não há discussão sobre as desigualdades de sexo/gênero na formação e educação básica. Dessa forma, ainda há muito o que se trabalhar nas questões de gênero na infância no ensino básico, para que caminhemos para uma educação não-sexista de fato. Trabalhar as questões de gênero na educação significa trabalhar com a diferença para a equidade, caminho imprescindível para uma sociedade mais igualitária.”
* Matéria de Jessica de Almeida, estagiária sob a supervisão da editora Teresa Caram.