Em novembro de 2013, o Journal of Strength and Conditioning Research Publish Ahead of Print, importante revista norte-americana sobre treinamento de força, publicou o estudo The nature and prevalence of injury during crossfit training alertando para o alto índice de lesão provocado pelo crossfit. Dos 132 praticantes, 73,5% sofreram algum tipo de lesão, entre os quais 7% foram submetidos a cirurgia, de acordo com os autores da pesquisa, Paul Taro Hak, Emil Hodzovic e Ben Hickey. E a maioria das lesões ocorreram nos ombros e na coluna. A idade média dos entrevistados variou entre 19 e 57 anos; 70,5% dos entrevistados eram homens; 29,5% mulheres, e a média do ritmo de treinamento era de 5,3 horas por semana
Um outro levantamento feito no Brasil por Sprey et al em 2015, entrevistando 622 praticantes de crossfit, por exemplo, encontrou prevalência de 31% de pessoas que já haviam se lesionado. Para fins de comparação com o esporte mais praticado pelos brasileiros, são citados estudos que encontraram incidência de 57% a 61% de atletas de futebol lesionados ao longo de uma temporada apenas.
Quem tem razão? Essa não é questão. A preocupação é que qualquer atividade física ou esportiva seja praticada com segurança. O que deve ser uma responsabilidade, em primeiro lugar, dos profissionais e depois dos praticantes, que têm de se esforçar, mas não ir além do limite. Afinal, não falamos aqui de atletas de alto rendimento que vivem a superação como meio de vida e, sabe-se, não são “saudáveis”!
LESÃO NO CÓCCIX
Já a experiência do arquiteto urbanista Henrique Mello não foi das melhores, pelo contrário. Ele conta que foi fazer uma aula experimental de crossfit em 10 de janeiro deste ano numa academia da cidade. O resultado foi dos piores. “Participei do WOD (workout of the day – treino do dia) durante 10 minutos e tive uma lesão no cóccix (coccidinia). Estou em processo de recuperação há dois meses e ainda tenho dificuldades para andar, sentar e fazer qualquer exercício físico”, diz.
Henrique, que tem 24 anos, enfatiza que sempre praticou esportes. “Nunca tive uma lesão e, antes da aula experimental, fazia academia regularmente (quatro vezes por semana)
Agora, Henrique revela que “o problema no cóccix teve complicações na bexiga e tenho sintomas que se assemelham a uma infecção urinária, mas ocorrem em decorrência do processo de inflamação. Convivo com os sintomas há dois meses e ainda estou em processo de recuperação. Além de todos os problemas, tive os custos com ressonância magnética, tomografia e outros exames que o meu plano de saúde cobre apenas parcialmente”.
Da empolgação por encarar uma nova atividade física, de continuar privilegiando sua saúde como adepto do esporte, Henrique agora lida com a lesão que, por enquanto, o deixa inapto para qualquer exercício. Seu depoimento, ele explica, é para alertar outras pessoas que pensam em adotar o crossfit como prática em seu dia a dia. “Acredito que toda academia de crossfit deveria fazer um trabalho inicial diferenciado com os alunos novos para só depois integrá-los ao restante da academia. Dentro desse período de adaptação, o aluno poderia passar por um processo de consciência corporal para que tenha entendimento dos próprios limites, o que poderia evitar lesões. O crossfit tem uma intensidade de exercícios muito alta e acredito que os novos alunos não estão sempre preparados para lidar com ela”, afirma.
MIX FUNCIONAL - Foto: Juarez Rodrigues/EM
O crossfit surgiu na década de 1990, na Califórnia, com o ex-ginasta Greg Glassman como um método de treinamento composto por exercícios funcionais, de alta intensidade e inspirado na ginástica, levantamento de peso, atletismo, halterofilismo e exercícios militares. Depois de virar febre nos EUA, espalhou-se pelo mundo com velocidade incrível e ganha cada vez mais popularidade e adeptos. Como é uma modalidade considerada nova, principalmente no Brasil, a discussão, além dos benefícios, é o fato de ela ser divulgada como uma prática para todas as idades e nível físico, de crianças a idosos, pela facilidade de adaptação dos exercícios do programa.
Aí começam os embates. Será mesmo apropriada a qualquer pessoa? Como o crossfit é uma marca (só a academia que paga pode usar o termo), há realmente um controle rigoroso da prática? Os professores são todos aptos a ensinar? Muitas academias usam outro termo, mas o treino é o mesmo do crossfit. Eles teriam domínio da técnica dos exercícios? É o que o Bem Viver quer discutir hoje com especialistas e praticantes.
Alta intensidade Lucas Boecht, ortopedista da clínica Sportif, começou a praticar crossfit por interesse profissional e, mesmo sofrendo lesão, não pensa em trocar de esporte - Foto: Edesio Ferreira/EM
Lucas Boechat, ortopedista da Clínica Sportif, do Hospital das Clínicas da UFMG e do Biocor Instituto, praticante de crossfit, enfatiza que para tudo na vida é preciso limites. O exagero nunca é bom. Ele lembra que quando se trata de nível competitivo, certamente as lesões se tornam mais frequentes em qualquer modalidade esportiva, uma vez que um atleta vai tentar ir além do seu limite para superar os adversários. “Por outro lado, creio ser meu papel como médico lembrar que estatisticamente o sedentarismo é causador de mais morte e incapacidade que a prática esportiva. Portanto, devemos ser cuidadosos ao colocar o esporte primariamente como 'perigoso' e causador de lesões. A outra opção é muito pior. Um estudo feito por Smith et al nos EUA, em 2015, mostrou que o crossfit melhora parâmetros como o VO2 máximo e a composição corporal, parâmetros esses relacionados ao bom condicionamento físico e à sobrevida.”
O ortopedista alerta ser preciso compreender o crossfit e seus praticantes antes de criticá-los. “Como médico, vejo com bons olhos sua prática, desde que orientada de perto por profissionais capacitados e feita com consciência e paciência pelo aluno. O incremento das cargas e a complexidade dos exercícios devem ser progressivos e graduais para que se possa ter os benefícios do esporte sem incorrer em grandes riscos à saúde. E como praticante, sinto-me muito satisfeito e motivado. Com a diversidade, complexidade e competitividade das aulas de crossfit, o indivíduo talvez tenha maior chance de aderir a um estilo de vida mais esportivo e, portanto, saudável”, afirma.
Se o consenso não é possível, a única certeza é que uma atividade física, seja ela qual for, precisa fazer parte da rotina de todos para que proporcione saúde, bem-estar, qualidade de vida, diversão e alegria com a garantia de altas doses de endorfina.
“Comecei a praticar crossfit quando abriu um box perto de minha casa, principalmente por interesse profissional. Minha subespecialização e principal área de atuação é a ortopedia esportiva, e eu vinha recebendo cada vez mais pacientes praticantes da modalidade no consultório, além de observar que o assunto frequentemente entrava nas conversas profissionais. Como havia opiniões diametralmente opostas sobre a modalidade, achava que era importante experimentar. Desde então, evolui um bocado no esporte, já sendo capaz de fazer a maior parte das técnicas exigidas e ficando cada vez mais em forma. Eu mesmo tive uma lesão, que me afastou por cerca de duas semanas (tendinite no ombro), e uma outra lesão no punho (preexistente, mas que se manifestou com o crossfit) que teve que ser operada, afastando-me por mais seis semanas. Mas não penso em trocar de esporte tão cedo.” Essa é a história de Lucas Boechat, ortopedista da Clínica Sportif, do Hospital das Clínicas da UFMG e do Biocor Instituto.
Com autoridade médica e know-how de praticante, Lucas Boechat assegura que qualquer pessoa sem doenças graves ou condições preexistentes de alto risco para prática de atividades físicas de alta intensidade pode praticar o crossfit. “São previstas adaptações de todos os exercícios praticados para indivíduos que tenham menos força, flexibilidade ou coordenação e técnica. Temos visto cada vez mais pessoas idosas e com sobrepeso nos boxes de crossfit e que se adaptam bem à atividade. O bom condicionamento físico prévio ajuda a entrar na modalidade com mais desenvoltura, mas não é essencial”, afirma.
Lucas explica que boa parte dos movimentos do crossfit não são extremamente complexos (apesar de demandarem uma boa técnica para melhorar o desempenho e evitar lesões), tanto que seus equipamentos são bem simples, como bolas, argolas, caixas e barras. “Arremessar uma bola para o alto ou tirar um peso do chão é bem mais simples que chutar uma bola em gol com um adversário pegando firme na marcação. No entanto, acha-se normal que qualquer sedentário vá jogar uma 'pelada' com seus amigos. Vejo com bons olhos a utilização de pesos livres em vez de aparelhos que 'quebram' o movimento, como tantos aparelhos de uma academia de musculação. O ato de arremessar uma bola, erguer um peso do chão, remar ou subir numa barra exige o bom funcionamento de toda uma cadeia de músculos e articulações. É assim que vivemos no mundo real fora da academia – carregando compras, pegando crianças no colo, subindo escadas, saltando obstáculos na rua etc. Treinar movimentos compostos é, portanto, dito como mais 'funcional' que separá-los em partes”.
Ortopedista e traumatologista pós-graduado em lesões esportivas, Lucas faz um alerta: “Aconselho a todos que pensam em praticar o crossfit a passar por uma avaliação médica pré-participativa com um especialista médico do esporte”. Ele recomenda ainda que é necessário procurar uma academia capacitada. “Todo box (academia na linguagem do crossfit) oferece aula experimental a potenciais novos alunos. É uma boa ideia experimentar primeiro e contratar um plano de curto prazo, tanto para descobrir se aquela atividade realmente lhe cai bem, quanto para avaliar a qualidade do box e dos instrutores (coaches). Um estudo realizado nos EUA mostrou que o envolvimento e a orientação de perto dos instrutores diminui a incidência de lesões”, ressalta. Para ter ainda mais segurança, Lucas Boechat recomenda conversar com amigos e praticantes para colher opiniões e lembra ainda que não se deve fazer nada que não se sinta capaz. Vale lembrar que existe uma certificação da marca e o box tem de pagar royalties à CrossFit Incorporation.
CRIANÇAS Lucas Boechat afirma que é errado apontar o crossfit como uma prática marcada pelo grau de lesões. “Primeiramente, temos que tomar cuidado com o pré-julgamento da modalidade. A maioria dos corredores de rua, jogadores de futebol e triatletas também procuram superar seus limites. Estudos científicos sobre o crossfit mostram que o índice de lesões é parelho com outros esportes, como a corrida, futebol, rugby, ginástica artística e levantamento de peso. Tanto na minha prática clínica quanto nos artigos já publicados na literatura, as lesões mais frequentes ocorrem no ombro e lombar. Em terceiro lugar vem as lesões de joelho.” Ele conta que a maioria dessas lesões é de dores musculares, tendinites e sobrecargas articulares, exigindo um tratamento menos agressivo: repouso, medidas locais, medicamentos e fisioterapia, por exemplo. “Por vezes, observamos também lesões essencialmente traumáticas (como fraturas e contusões por objetos pesados ou por quedas de altura), luxações articulares, rupturas musculares e tendíneas, sendo que algumas delas podem exigir tratamento cirúrgico. O ombro parece desenvolver mais lesões pelos movimentos ginásticos praticados no crossfit, enquanto que a lombar pelo levantamento de peso.”
Vale lembrar que tem crossfit até para crianças. No entanto, Lucas Boechat alerta, como ressaltado em artigo científico de estudo feito no Brasil – There was no significant difference regarding previous sports activities because individuals who did not practice prior physical activity showed very similar injury rates to those who practiced at any level – que existem programas voltados para crianças, onde elas desenvolvem muitas habilidades motoras, além de se divertir. “Contudo, somente educadores físicos capacitados para treiná-las devem se envolver com essa categoria.”
SAIBA MAIS
Rabdomiólise
Entre os críticos do crossfit, há quem alerte sobre a rabdomiólise e as lesões músculo-esqueléticas. O ortopedista Lucas Boechat afirma que “é fato que houve relatos de rabdomiólise durante a prática intensiva e duradoura de crossfit, o que pode ocorrer em competições, por exemplo, onde passa-se um ou vários dias competindo em alta intensidade. A rabdomiólise é a lesão massiva de fibras musculares, podendo ser causada por traumas, exercício físico de alta intensidade ou até mesmo pelo uso de alguns medicamentos e doenças autoimunes. Os sintomas mais comuns são dor no corpo, urina escura e fraqueza. O grande perigo é que as substâncias liberadas no sangue pelo músculo lesionado podem causar insuficiência renal aguda, podendo levar até a morte nos casos mais graves. Felizmente, casos como esse são raros, mesmo entre os praticantes de crossfit. Além disso, seria impensável que um indivíduo desenvolvesse rabdomiólise com repercussões graves para o seu corpo numa aula de uma hora que inclui aquecimento, períodos de repouso e treino de técnicas”.