Suicídio. Uma palavra incômoda. Todavia, dados recentes da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostram que está mais do que na hora de conversar sobre o assunto. Segundo o órgão, uma pessoa tira a própria vida a cada 40 segundos no mundo. A cartilha Suicídio: informando para prevenir, feita pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), aponta que, todos os anos, são registrados cerca de dez mil suicídios no Brasil e mais de um milhão em todo o mundo. O tópico é tão crucial que foi um dos principais temas do 34º Congresso Brasileiro de Psiquiatria. De acordo com Hermano Tavares, psiquiatra do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP), o suicídio é responsável por 50% das mortes violentas no planeta. “É um problema negligenciado pela comunidade médica porque não fomos treinados para lidar com a morte, mas para manter a vida”, disse o psiquiatra aos participantes do congresso. “É nosso dever como médicos falar sobre isso.”
A psiquiatra Valéria Barreto Novais, da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e sócia-fundadora da ONG Associação em Defesa da Saúde Mental (ADSM), explica que a incidência de certos transtornos de personalidade (TP) é um fator de risco para o comportamento suicida: uma em cada dez pessoas com TP pode atentar contra a própria vida. Quando esses indivíduos apresentam comorbidades — ou seja, sofrem de mais de um tipo de TP — o risco é ainda maior. No caso específico do Transtorno Borderline de Personalidade, por exemplo, 80% dos pacientes se automutilam, 75% tentam cometer suicídio e 10% realmente se matam.
Nem sempre quem desistiu de viver foi vítima de um trauma, mito muito comum nas tentativas de explicar o fenômeno. “Essas pessoas teriam, de fato, um transtorno na regulação da emoção”, explica Valéria Novais. Entre as principais características de uma pessoa com transtorno de personalidade, a médica lista sensibilidade aguçada, reação extremada a estímulos emocionais, afeto instável e autoimagem pobre.
A impulsividade é considerada um fator de risco, mas nem todas as pessoas impulsivas atentarão contra a própria vida — assim como nem todos os suicidas são impulsivos. Segundo Valéria Novais, há indícios de que a impulsividade em pacientes com TP influa, por exemplo, no número de tentativas. Em compensação, pessoas pouco impulsivas são mais meticulosas no planejamento do ato e, como consequência, têm mais chances de “sucesso”.
Quem se sente suicida pode buscar ajuda de diversas formas. Muitas vezes, contudo, o pedido de socorro passa despercebido ou é encarado de forma pejorativa. “Fulano só quer chamar a atenção”; “Quem quer se matar se mata, não avisa” e outras frases pouco empáticas são relatos comuns entre os pacientes. O preconceito existe até entre os médicos. “Muitas vezes, as pessoas com TP não encontram guarida por parte dos profissionais de saúde porque demandam muito, são difíceis de tratar”, analisa a psiquiatra. “Mas, com cuidados, elas podem melhorar e ter qualidade de vida”, garante.
A sombra das redes sociais
A revolução digital mudou a forma como as pessoas se relacionam, trabalham, descansam. Não há dúvida das vantagens que a internet proporciona, como economia de tempo, praticidade, proximidade e possibilidade de conexão com pessoas de interesses semelhantes. Porém, como tudo na vida, a rede também tem um lado ruim. Embora ainda não existam dados específicos sobre a influência das redes sociais no índice de suicídio, o assunto começa a chamar a atenção. André Brasil Ribeiro, presidente da Associação Psiquiátrica da Bahia e membro da Associação Brasileira de Psiquiatria, estuda a relação entre tecnologia da informação e medicina há mais de duas décadas. Atualmente, seu enfoque é em mídias sociais.
Em setembro passado, em função da campanha de prevenção ao suicídio Setembro Amarelo, o médico participou de alguns estudos em parceria com desenvolvedores do Facebook para descobrir quantas menções relacionadas a suicídio eram feitas pelos brasileiros diariamente. O resultado foi chocante: por dia, o tema é mencionado cerca de 16 milhões de vezes, só no Brasil. “Isso é sinal de que o tema é cotidiano na vida de muita gente”, alerta o especialista.
A preocupação maior é com a saúde mental de jovens e adolescentes. “Quando você vê algo nas redes sociais, pode reagir àquela postagem com ‘curti’, ‘amei’, ou ‘uau’. Mas qual a alternativa para as postagens sobre suicídio?”, questiona André Ribeiro. O fato é que Twitter, Tumblr, Instagram, Facebook e Google já estão aptos a identificar postagens com teor suicida e indicar alternativas. No Facebook, por exemplo, há a opção de denunciar esse tipo de conteúdo. Se isso ocorrer, o autor será reencaminhado para uma página de ajuda (com mais de 150 mil visitas por dia). No caso do Google, o site identifica intenções suicidas a partir dos termos buscados e direciona para o Centro de Valorização da Vida (CVV).
Em suas pesquisas, André Ribeiro descobriu diversos “grupos da morte”: comunidades em que usuários postam orientações e pedem dicas de como tirar a própria vida. “Muitos perguntam qual é o método mais eficaz e indolor. Os adolescentes estão glamorizando a morte nas redes sociais”, afirma. Na Índia, país com maior taxa de grupos da morte no mundo, segundo o médico, há redes sociais exclusivas para suicidas. Lá, os participantes compartilham fotos e vídeos de mutilações e até marcam encontros para cometer suicídio. “Perfis que incentivam essa atitude estão tomando proporções assustadoras”, alerta.
Justamente por isso, o psiquiatra frisa: é importante falar sobre o assunto e ajudar quem parece estar inclinado a cometer suicídio. “A internet pode ser fatal ou vital. Temos que partir de onde o ato começa a ser planejado: as redes sociais”, reforça. Segundo ele, do ponto de vista estatístico, até 2020, o Brasil pode se tornar o terceiro país do mundo em número de suicídios. Atualmente, a posição é ocupada pela Rússia, com 22 suicídios a cada 100 mil habitantes — bem mais que a taxa mundial de 7 suicidas a cada 100 mil pessoas. “Não podemos deixar essas postagens passarem em branco. Ao vermos algo do tipo, temos que denunciar imediatamente.”
ENTREVISTA
José Manoel Bertolote é professor titular visitante do Australian Institute for Suicide Research and Prevention (Aisrap) da Griffith University (Austrália); professor voluntário do Departamento de Neurologia, Psicologia e Psiquiatria da Faculdade de Medicina de Botucatu (Unesp); coordenador do Centro Regional de Referência em Políticas sobre Drogas (Unesp/Senad).
Como investigar e identificar o comportamento suicida?
Não é exatamente o comportamento que precisa ser investigado, mas o risco de suicídio. A função do profissional de saúde, seja médico, enfermeiro ou agente de saúde comunitário, é identificar se existe o risco e, se ele existe, qual é a sua gravidade. O suicídio é o resultado de um processo, de um marco que começa, em geral, com pensamentos cada vez mais sombrios, de morte. É aí que (o suicida) vai investigar planos, métodos de como executar o ato. E, num dado momento, ocorre a tentativa de suicídio. Dependendo do método empregado, resulta em morte ou não. Antes de chegar a esse extremo, essa pessoa, em algum momento, passou por um centro de saúde. Ela não diz que é um suicida em potencial, mas vai lá porque está com diversos problemas de saúde, muitos dos quais são manifestações da depressão.
Todo suicida tem algum transtorno mental?
Não. No mundo ocidental, de 5% a 10% das pessoas que se matam não têm nenhum diagnóstico psiquiátrico. No Oriente, na Ásia, esse número é de 40%. A questão da impulsividade é muito maior. Existe o que se chama de fator predisponente e o fator precipitante. Por exemplo: o indivíduo se suicida após perder o emprego e sofrer um rompimento amoroso (fatores precipitantes). Ele não se matou porque foi abandonado — isso começou há muito tempo atrás. Por que a mulher o largou? Por que ele perdeu o emprego? Pode ser que ele fosse alcoolista, que estivesse deprimido e, por isso, tenha perdido a produtividade. Ele foi demitido e não aguentou mais uma perda. Quando analisamos todo esse percurso, vemos que, no Ocidente, 90% das pessoas que se suicidam têm um diagnóstico psiquiátrico — na maioria das vezes, nunca tratado.
A rede de saúde básica está capacitada a identificar e oferecer ajuda a potenciais suicidas?
Não, exceto em alguns municípios, que fazem isso especificamente. Nenhum estado tem políticas implementadas de identificação e prevenção de suicídio.
Qual é a taxa de suicídios no Brasil? Como o senhor a avalia?
A do Brasil é de 7 por 100 mil pessoas. É baixa em termos mundiais, que é de 13 por 100 mil pessoas. Esse tipo de taxa revela algumas coisas, mas oculta outras. Se você olhar, a taxa de suicídios de homens no Brasil é de 14 por 100 mil. A de mulheres é de 2 por 100 mil. A de jovens de 30 anos é de 4 por 100 mil. E a de idosos com mais de 70 anos é de 25 por 100 mil, ou seja, a distribuição varia por sexo e idade, entre outros fatores.
O senhor diz que 80% das pessoas que sobrevivem a uma tentativa de suicídio não vão tentar novamente. Por quê?
Porque é um impulso do momento. Por exemplo: um jovem casal rompe e a moça acha que perdeu o grande amor da vida dela. Ela toma remédios, mas é hospitalizada e volta a si. Com o tempo, a tendência é de repensar, de reconstruir a vida. Se ela não tiver um transtorno mental que vai fazer aquilo voltar sempre, o episódio ruim passou e acabou.
A imprensa evita notícias de suicídio por receio de incentivar novos casos. Qual é sua opinião a respeito?
Há duas situações diferentes. Uma coisa é falar sobre suicídio, fazer uma matéria sobre o que é, sobre quantas pessoas são afetadas etc. Isso é informação. O primeiro erro que vejo comumente na imprensa é noticiar o suicídio de uma pessoa comum. É diferente se a Madonna se suicidar — ela é uma personalidade. Anos atrás, os jornais tinham obituários com diagnósticos. Os conselhos de medicina conseguiram bloquear isso — não mais se coloca do que a pessoa morreu. A OMS e a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) têm uma cartilha que ensina os jornalistas a falar sobre suicídio, sem glorificar. Suicídio não é uma saída honrosa — está sempre associado a uma infelicidade, uma doença. Mesmo quando é uma celebridade, é preciso contextualizar, colocar o que essa pessoa estava passando, se estava deprimida. Quando Marilyn Monroe se suicidou, houve um pico de suicídios nos Estados Unidos. A identificação era muito grande, todas as mulheres queriam ser como ela. Mas quando o Kurt Cobain se matou, não houve imitações, porque as notícias eram de que era um usuário de drogas deprimido. Ninguém quer ser assim. O jornalista tem que ir além. E no fim da matéria tem que colocar o número do CVV (141).
Mitos sobre suicídio
“O suicídio é uma decisão individual, já que cada um tem pleno direito a exercitar seu livre arbítrio.”
FALSO: Os suicidas estão passando quase invariavelmente por uma doença mental, que altera a percepção da realidade e interfere em seu livre arbítrio. O tratamento eficaz da doença mental é o pilar mais importante da prevenção ao suicídio.
“As pessoas que ameaçam se matar não farão isso. Elas apenas querem chamar a atenção.”
FALSO: A maioria dos suicidas fala ou dá sinais sobre suas ideias de morte. Boa parte dos suicidas expressou a algum profissional de saúde a intenção de se matar.
“Se uma pessoa que se sentia deprimida e pensava em suicídio demonstra uma melhora, o pior já passou.”
FALSO: Uma pessoa em depressão pode manifestar alívio simplesmente por ter tomado a decisão de se matar.
“Quando um indivíduo sobrevive a uma tentativa de suicídio, está fora de perigo.”
FALSO: A semana seguinte à alta do hospital é um período considerado crítico, pois a pessoa está particularmente fragilizada.
“Não devemos falar sobre suicídio, pois isso incentiva novos casos.”
FALSO: Pelo contrário: falar com alguém sobre o assunto pode aliviar a angústia e a tensão da pessoa.
“A mídia não deveria abordar o tema suicídio.”
FALSO: A mídia tem obrigação social de tratar desse importante assunto de saúde pública. Isso não aumenta o risco de uma pessoa se matar — é fundamental informar sobre o problema e mostrar como conseguir ajuda.
Fonte: Adaptado da cartilha Suicídio: informando para prevenir, feita pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).
Serviço
O CVV — Centro de Valorização da Vida realiza apoio emocional e prevenção do suicídio, atendendo voluntária e gratuitamente todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo, por telefone, e-mail, chat e skype, 24 horas, todos os dias.
Ligue 141.