A história da bebê que ‘nasceu duas vezes’ nos Estados Unidos ganhou o mundo e colocou em pauta os avanços da medicina diagnóstica e as intervenções que já podem ser realizadas ainda na gestação. Um ultrassom de rotina na 16ª semana revelou um tumor na coluna de Lynlee Boemer. A mãe, Margaret Boemer, engravidou de gêmeos, mas perdeu um dos bebês no início da gravidez. Quando a notícia do tumor foi confirmada no bebê sobrevivente, médicos sugeriram que ela interrompesse a gestação já que o tumor, um teratoma sacrococcígeo, estava competindo com o feto por sangue e poderia levar a uma falência cardíaca da criança.
Havia, porém, uma opção arriscada e foi aí que Lynlee Boemer, a garotinha de Lewisville, no Texas, mostrou sua força. A bebê foi submetida a uma cirurgia quando pesava apenas 530 gramas, quase o mesmo tamanho do tumor. Lynlee foi retirada do útero da mãe por 20 minutos para passar pelo procedimento. Após a cirurgia, ela foi colocada de volta e Margaret passou 12 semanas em total repouso. Três meses depois, em 6 de junho de 2016, a menina vinha ao mundo pela segunda vez, mas a história só ganhou repercussão internacional em outubro deste ano.
“A escolha era entre deixar o tumor fazer o coração dela parar ou dar a ela uma chance de vida. Foi uma decisão fácil: escolhemos dar vida a ela”, declarou a mãe em entrevista à BBC. O teratoma sacrococcígeo é um tumor raro com incidência de um a cada 30 mil a 70 mil nascimentos. Sua causa é desconhecida e é quatro vezes mais comum em meninas que em meninos.
CAPACITADOS
No Brasil, essa cirurgia ainda não foi realizada, mas o país acompanha os avanços mundiais em diagnóstico precoce de síndromes, doenças e malformações na gravidez. Mais comum que o teratoma sacrococcígeo, o tratamento da mielomeningocele, é um exemplo de avanço brasileiro em relação aos Estados Unidos. Simplificadamente, a malformação acomete a coluna – que não fecha e deixa a medula exposta. As consequências para o bebê incluem comprometimento do movimento dos membros inferiores e hidrocefalia.
No país norte-americano, a cirurgia fetal de mielomeningocele é do tipo céu aberto e consiste na exteriorização do feto mantendo a cabeça do bebê dentro do útero. Ou seja, apenas bacia e parte da coluna são retiradas para que ocorra o seu fechamento. A técnica corrige não apenas o defeito na coluna do bebê, mas também evita o acúmulo de líquido no cérebro (hidrocefalia).
Por aqui, o grupo de trabalho da médica Denise Pedreira, doutora em obstetrícia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) com diploma internacional em medicina fetal, em Londres, e membro do Programa de Terapia Fetal do Hospital Albert Einstein aperfeiçoou o tratamento da mielomeningocele ainda na gestação. No Brasil, já temos estabelecido no estado de São Paulo, um procedimento cirúrgico menos invasivo. “Há três anos a técnica chamada de fetoscopia passou a ser rotina no hospital. Anteriormente, existia uma dúvida se operar o bebê ainda na gestação era melhor do que fazer a intervenção após o nascimento. Um estudo mostrou que a cirurgia ainda no útero era melhor para o bebê e para a mãe”, afirma a especialista.
Segundo Denise Pedreira, a técnica foi desenvolvida por um grupo de trabalho da USP e médicos norte-americanos vêm ao Brasil para receber treinamento. Ainda este ano, o procedimento será apresentado na Inglaterra. Na fetoscopia, a barriga da mãe não é aberta. Resumidamente, são feitos quatro furos e a cirurgia é feita por videolaparoscopia. “Os riscos da cirurgia a céu aberto incluem as chances de o bebê nascer prematuro e do rompimento do útero na gestação atual e em gestações futuras. Nesses casos, tanto o bebê pode morrer pela rotura uterina e também a mulher”, explica.
A médica diz que como já são três anos de história de aplicação da técnica no Hospital Albert Einstein, os resultados mostram maiores benefícios para as mães e para os bebês. “Já temos um número de bebês suficiente que evidencia que nossa técnica é melhor que a de céu aberto. A melhora motora para os bebês é o dobro em comparação à cirurgia aberta. Conseguimos melhorar o prognóstico da criança e a segurança para a mãe. Estamos na vanguarda da cirurgia de mielomeningocele”, afirma. No Einstein, entretanto, a fetoscopia é oferecida apenas na rede particular. Pelo Sistema Único de Saúde (SUS), a opção que as famílias têm é a cirurgia a céu aberto.
A incidência dos defeitos do tubo neural – que incluem anencefalia, anomalia que é incompatível com a vida, meningocele, mielomeningocele e encefaloce - é de uma pessoa para cada mil nascimentos. A malformação está associada a alterações genéticas e baixos níveis de ácido fólico no organismo da mãe no momento da concepção e durante as primeiras 12 semanas de gravidez.
Em Minas Gerais, nem a cirurgia a céu aberto e nem a fetoscopia são oferecidas para o tratamento de mielomeningocele. Denise Pedreira conta que mulheres daqui precisam ir a São Paulo para ter acesso ao procedimento e que ela já atendeu duas gestantes daqui. Bebês diagnosticados com mielomeningocele que não passarem pela cirurgia intrauterina serão submetidos à intervenção logo após o nascimento.
Como foi o caso de uma das filhas da empresária Sabrina Moura de Queiroz Vilela, de 32 anos, mãe de Valentina, de 5, e Giovanna, de 8 meses. Ela e o marido descobriram a mielomeningocele da mais velha no exame morfológico e a garotinha só foi operada depois que nasceu. Crianças que vêm ao mundo com essa condição podem ter prejudicados alguns movimentos do corpo, dependendo da localização do defeito do tubo neural, desenvolver hidrocefalia, ter incontinência urinária e fecal.
A cada 10 dias, Sabrina fazia um ultrassom para acompanhar a saúde e o desenvolvimento da filha. Ela conta que já tinha ouvido falar da cirurgia a céu aberto de mielomeningocele, mas que focou no que os médicos recomendavam e orientavam. Com 35 semanas e cinco dias, Valentina nasceu pesando 2 quilos e 400 gramas e foi levada para uma longa cirurgia que determinaria se haveria e quais seriam as consequências. Foram nove horas de espera e um resultado bem-sucedido. “Durante um ano inteiro fizemos um acompanhamento minucioso para saber se ela teria ou não hidrocefalia. Eu e meu marido só descansamos depois de três anos, quando ela estava andando, falando, fazendo xixi e cocô sozinha”, conta.
Hoje, Valentina leva uma vida feliz e sua única sequela é a bexiga neurogênica, que dificulta o controle da urina. No entanto, de acordo com Sabrina, a filha tem esse controle, mas, por precaução, é submetida a exames anuais.
Em Minas
Chefe do Centro de Medicina Fetal do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (HC-UFMG), Henrique Leite afirma que obstetras e neurocirurgiões mineiros estão sendo capacitados para realizar intervenções em bebês ainda no útero e os procedimentos começarão a ser feitos em 2017.
Segundo ele, a fetoscopia é outra modalidade cirúrgica que São Paulo, por exemplo, já vem realizando em bebês ainda na barriga e que são diagnosticados com Síndrome de transfusão feto-fetal (STFF). Nesses casos, gêmeos idênticos trocam sangue entre si e é necessário fazer essa interrupção por meio de cirurgia. Henrique Leite explica que a fetoscopia utiliza um laser para separar as conexões placentárias responsáveis pela troca de sangue de um neném para o outro. O diagnóstico, nesses casos, geralmente é feito na 16ª semana de gestação.
A hérnia diafragmática congênita é outro problema que também pode ser tratado intraútero. Nessa situação, o que ocorre é um defeito no diafragma, músculo que separa o abdômen do tórax. Assim, os órgãos que deveriam ficar na barriga podem ir para dentro do tórax e comprimir os pulmões. A fetoscopia é também o procedimento indicado. De maneira simples, a intervenção consiste em colocar um ‘balão’ na traqueia do feto que vai permitir o desenvolvimento normal do bebê.
Síndrome de Down
No Brasil, a interrupção da gravidez só é possível em casos de anencefalia, quando há risco de vida para a mãe causada pela gravidez ou em casos de gestação por estupro. No entanto, a possibilidade de diagnóstico de síndromes e malformações abre brechas para a realização de abortos clandestinos e, consequentemente, risco de vida para a mulher. Esse é um tema de saúde pública, mas que o Brasil não consegue avançar. O tema é tão delicado que algumas brasileiras relatam que, ao receberem notícia de uma síndrome, por exemplo, os próprios profissionais de saúde oferecerem a opção da interrupção da gravidez. Se para algumas delas isso pode ser a solução, para outras, é um trauma que acompanha a trajetória de mães de crianças atípicas.
A jornalista e empresária Ana Flavia Jacques, de 34 anos, é uma delas. “Você está nova, você vai sofrer muito, pode ter outro filho”, ela escutou de um dos profissionais de saúde com quem teve contato. Segundo ela, esse foi o pior momento depois do diagnóstico da síndrome de Down. “Como se a minha filha não tivesse direito à vida”, desabafa. Ana Flavia, que é uma das coordenadoras do Movimento Minas Down, diz que sugerir a interrupção da gravidez em casos de síndromes é um fato mais comum do que se imagina.
A gestação de Maria Fernanda, hoje com 4 anos, não foi planejada, mas, segundo a mãe, “muito comemorada porque desde que me entendo por gente, sempre quis ser mãe”. Quando ela e o marido, Daniel Carvalho, estavam se acostumando com a ideia, as alterações começaram a aparecer nos ultrassons. “Entre a 15ª e a 16ª semana o exame detectou uma possível alteração no sistema nervoso central depois de a transluscência nucal (medida tirada no ultrassom morfológico do primeiro trimestre) não mostrar nenhuma alteração. No ultrassom seguinte, uma cardiopatia congênita grave foi detectada”, recorda-se.
Esse conjunto de manifestações indicavam uma síndrome e Ana Flavia diz que os médicos chegaram até suspeitar de que fosse algo incompatível com a vida. Duas semanas depois, entretanto, veio o diagnóstico da trissomia do 21. “Não é fácil. Passei dois meses sem conseguir falar sobre nenhum assunto que envolvesse o tema bebê. Eu me lembro do dia em que aceitei que a Maria Fernanda tinha que vir ao mundo da forma que tivesse que vir para ser minha. Estava um dia nublado e, de repente, uma luz se abriu. Hoje, tenho certeza que não mudaria nada em minha filha”, diz.
REDE DE APOIO Ela diz que o diagnóstico precoce foi importante não só para a aceitação, mas para o momento do parto. “Fui assistida por profissionais que comumente não estão presentes em uma sala de parto. Tive tempo para pesquisar e para fazer contato com outras famílias e vi que não era ‘bicho de sete cabeças’ como se pintava. As redes sociais ajudaram demais nesse momento, muitas pessoas me ajudaram. Pela minha formação, sabia filtrar o que era informação de qualidade. Hoje, posso dizer que minha filha leva uma vida praticamente comum, como qualquer criança. Ela só tem uma agenda cheia. Faz fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional porque ela necessita de uma atenção especial”, relata.
O pré-natal também foi feito com muito cuidado, os ultrassons eram realizados com mais frequência e Ana Flavia consultou um geneticista. “Foi um acompanhamento minucioso. No final da gestação, suspeitou-se que Maria Fernanda estivesse em sofrimento fetal, mas ela nasceu a termo de 38 semanas. Quando minha filha chegou, já conhecia a situação genética dela e tudo que ocorreu no parto me surpreendeu positivamente. Eu estava preparada para que ela ficasse meses na UTI, mas ficou seis dias”, conta.
No caso de Síndrome de Down, o chefe do Centro de Medicina Fetal do HC-UFMG, Henrique Leite, diz que a importância do diagnóstico precoce é justamente preparar o casal para o nascimento de uma criança atípica, mas também preparar a equipe que vai acompanhar o parto para receber essa criança. “Bebês com Down apresentam frequência 40% a 50% maior de malformações cardíacas. Também são crianças que podem apresentar problemas renais. Por isso, precisam de um cuidado especial ao nascer”, pontua.
Para a jornalista e empresária, o que ela considera mais importante – além do diagnóstico precoce –, é a forma como os profissionais de saúde dão a notícia às famílias. “É preciso muita sensibilidade, eles estão lidando com o sonho de muitas mulheres e muitos homens. O que escuto e vejo, como coordenadora do Minas Down, é que a demora em superar a notícia da síndrome tem muita relação com o momento em que a notícia foi dada e a forma como foi dita. Algumas famílias ficam traumatizadas a ponto de demorarem – e outras não conseguirem – a criar o vínculo com aquela criança. O momento da notícia é o mais importante”, acredita.
Ana Flavia afirma que padece das mesmas angústias e alegrias como qualquer outra mãe. “A Maria Fernanda uniu minha família, uniu meu marido e eu como casal, trouxe harmonia”, diz. Para ela, o mais difícil dessa caminhada foi ouvir de um profissional de saúde que a vida de Maria Fernanda não valia a pena.
Diagnóstico errado
Apesar dos avanços da medicina, erros de diagnóstico acontecem e, por isso, é fundamental ouvir mais de uma opinião. A funcionária pública Beatriz Casassanta, de 36 anos, mãe de Larissa, de 2, e Gael, três meses, viveu uma gestação de angústia para descobrir, três meses depois que a mais velha nasceu, que o diagnóstico que recebera estava errado.
Um ultrassom morfológico suspeitou de síndrome de Down, mas ela não quis fazer o exame que confirmaria ou descartaria a trissomia do 21 por considerar invasivo. Assim, o médico sugeriu um exame de sangue que poderia ser feito nos Estados Unidos e que testa cinco doenças genéticas de uma só vez, incluindo a de Down. E assim foi feito. “Eu desejava que o momento do nascimento da minha filha fosse um momento feliz, tinha convicção de que a aceitaria do jeito que ela fosse, mas queria saber o que ela tinha antes que nascesse”, explica.
O resultado chegou com a informação de que Larissa teria 99% de chance de ter Síndrome de Turner (ST), que afeta apenas as mulheres e consiste na ausência parcial ou total do par do cromossomo X. Além da baixa estatura, meninas com essa condição não entram na puberdade e são inférteis. Além disso, têm malformações cardíacas e dificuldades de aprendizagem. O aborto espontâneo é uma intercorrência comum em casos de ST.
Aos três meses de vida foi descartada de vez o diagnóstico da síndrome em Valentina. “Passei a gestação inteira acreditando que teria uma filha com necessidade especial e acho importante alertar que o erro também existe”, observa.
Havia, porém, uma opção arriscada e foi aí que Lynlee Boemer, a garotinha de Lewisville, no Texas, mostrou sua força. A bebê foi submetida a uma cirurgia quando pesava apenas 530 gramas, quase o mesmo tamanho do tumor. Lynlee foi retirada do útero da mãe por 20 minutos para passar pelo procedimento. Após a cirurgia, ela foi colocada de volta e Margaret passou 12 semanas em total repouso. Três meses depois, em 6 de junho de 2016, a menina vinha ao mundo pela segunda vez, mas a história só ganhou repercussão internacional em outubro deste ano.
“A escolha era entre deixar o tumor fazer o coração dela parar ou dar a ela uma chance de vida. Foi uma decisão fácil: escolhemos dar vida a ela”, declarou a mãe em entrevista à BBC. O teratoma sacrococcígeo é um tumor raro com incidência de um a cada 30 mil a 70 mil nascimentos. Sua causa é desconhecida e é quatro vezes mais comum em meninas que em meninos.
CAPACITADOS
No Brasil, essa cirurgia ainda não foi realizada, mas o país acompanha os avanços mundiais em diagnóstico precoce de síndromes, doenças e malformações na gravidez. Mais comum que o teratoma sacrococcígeo, o tratamento da mielomeningocele, é um exemplo de avanço brasileiro em relação aos Estados Unidos. Simplificadamente, a malformação acomete a coluna – que não fecha e deixa a medula exposta. As consequências para o bebê incluem comprometimento do movimento dos membros inferiores e hidrocefalia.
No país norte-americano, a cirurgia fetal de mielomeningocele é do tipo céu aberto e consiste na exteriorização do feto mantendo a cabeça do bebê dentro do útero. Ou seja, apenas bacia e parte da coluna são retiradas para que ocorra o seu fechamento. A técnica corrige não apenas o defeito na coluna do bebê, mas também evita o acúmulo de líquido no cérebro (hidrocefalia).
Por aqui, o grupo de trabalho da médica Denise Pedreira, doutora em obstetrícia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) com diploma internacional em medicina fetal, em Londres, e membro do Programa de Terapia Fetal do Hospital Albert Einstein aperfeiçoou o tratamento da mielomeningocele ainda na gestação. No Brasil, já temos estabelecido no estado de São Paulo, um procedimento cirúrgico menos invasivo. “Há três anos a técnica chamada de fetoscopia passou a ser rotina no hospital. Anteriormente, existia uma dúvida se operar o bebê ainda na gestação era melhor do que fazer a intervenção após o nascimento. Um estudo mostrou que a cirurgia ainda no útero era melhor para o bebê e para a mãe”, afirma a especialista.
Segundo Denise Pedreira, a técnica foi desenvolvida por um grupo de trabalho da USP e médicos norte-americanos vêm ao Brasil para receber treinamento. Ainda este ano, o procedimento será apresentado na Inglaterra. Na fetoscopia, a barriga da mãe não é aberta. Resumidamente, são feitos quatro furos e a cirurgia é feita por videolaparoscopia. “Os riscos da cirurgia a céu aberto incluem as chances de o bebê nascer prematuro e do rompimento do útero na gestação atual e em gestações futuras. Nesses casos, tanto o bebê pode morrer pela rotura uterina e também a mulher”, explica.
A médica diz que como já são três anos de história de aplicação da técnica no Hospital Albert Einstein, os resultados mostram maiores benefícios para as mães e para os bebês. “Já temos um número de bebês suficiente que evidencia que nossa técnica é melhor que a de céu aberto. A melhora motora para os bebês é o dobro em comparação à cirurgia aberta. Conseguimos melhorar o prognóstico da criança e a segurança para a mãe. Estamos na vanguarda da cirurgia de mielomeningocele”, afirma. No Einstein, entretanto, a fetoscopia é oferecida apenas na rede particular. Pelo Sistema Único de Saúde (SUS), a opção que as famílias têm é a cirurgia a céu aberto.
A incidência dos defeitos do tubo neural – que incluem anencefalia, anomalia que é incompatível com a vida, meningocele, mielomeningocele e encefaloce - é de uma pessoa para cada mil nascimentos. A malformação está associada a alterações genéticas e baixos níveis de ácido fólico no organismo da mãe no momento da concepção e durante as primeiras 12 semanas de gravidez.
Em Minas Gerais, nem a cirurgia a céu aberto e nem a fetoscopia são oferecidas para o tratamento de mielomeningocele. Denise Pedreira conta que mulheres daqui precisam ir a São Paulo para ter acesso ao procedimento e que ela já atendeu duas gestantes daqui. Bebês diagnosticados com mielomeningocele que não passarem pela cirurgia intrauterina serão submetidos à intervenção logo após o nascimento.
Como foi o caso de uma das filhas da empresária Sabrina Moura de Queiroz Vilela, de 32 anos, mãe de Valentina, de 5, e Giovanna, de 8 meses. Ela e o marido descobriram a mielomeningocele da mais velha no exame morfológico e a garotinha só foi operada depois que nasceu. Crianças que vêm ao mundo com essa condição podem ter prejudicados alguns movimentos do corpo, dependendo da localização do defeito do tubo neural, desenvolver hidrocefalia, ter incontinência urinária e fecal.
A cada 10 dias, Sabrina fazia um ultrassom para acompanhar a saúde e o desenvolvimento da filha. Ela conta que já tinha ouvido falar da cirurgia a céu aberto de mielomeningocele, mas que focou no que os médicos recomendavam e orientavam. Com 35 semanas e cinco dias, Valentina nasceu pesando 2 quilos e 400 gramas e foi levada para uma longa cirurgia que determinaria se haveria e quais seriam as consequências. Foram nove horas de espera e um resultado bem-sucedido. “Durante um ano inteiro fizemos um acompanhamento minucioso para saber se ela teria ou não hidrocefalia. Eu e meu marido só descansamos depois de três anos, quando ela estava andando, falando, fazendo xixi e cocô sozinha”, conta.
Hoje, Valentina leva uma vida feliz e sua única sequela é a bexiga neurogênica, que dificulta o controle da urina. No entanto, de acordo com Sabrina, a filha tem esse controle, mas, por precaução, é submetida a exames anuais.
Em Minas
Chefe do Centro de Medicina Fetal do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (HC-UFMG), Henrique Leite afirma que obstetras e neurocirurgiões mineiros estão sendo capacitados para realizar intervenções em bebês ainda no útero e os procedimentos começarão a ser feitos em 2017.
Segundo ele, a fetoscopia é outra modalidade cirúrgica que São Paulo, por exemplo, já vem realizando em bebês ainda na barriga e que são diagnosticados com Síndrome de transfusão feto-fetal (STFF). Nesses casos, gêmeos idênticos trocam sangue entre si e é necessário fazer essa interrupção por meio de cirurgia. Henrique Leite explica que a fetoscopia utiliza um laser para separar as conexões placentárias responsáveis pela troca de sangue de um neném para o outro. O diagnóstico, nesses casos, geralmente é feito na 16ª semana de gestação.
A hérnia diafragmática congênita é outro problema que também pode ser tratado intraútero. Nessa situação, o que ocorre é um defeito no diafragma, músculo que separa o abdômen do tórax. Assim, os órgãos que deveriam ficar na barriga podem ir para dentro do tórax e comprimir os pulmões. A fetoscopia é também o procedimento indicado. De maneira simples, a intervenção consiste em colocar um ‘balão’ na traqueia do feto que vai permitir o desenvolvimento normal do bebê.
Síndrome de Down
No Brasil, a interrupção da gravidez só é possível em casos de anencefalia, quando há risco de vida para a mãe causada pela gravidez ou em casos de gestação por estupro. No entanto, a possibilidade de diagnóstico de síndromes e malformações abre brechas para a realização de abortos clandestinos e, consequentemente, risco de vida para a mulher. Esse é um tema de saúde pública, mas que o Brasil não consegue avançar. O tema é tão delicado que algumas brasileiras relatam que, ao receberem notícia de uma síndrome, por exemplo, os próprios profissionais de saúde oferecerem a opção da interrupção da gravidez. Se para algumas delas isso pode ser a solução, para outras, é um trauma que acompanha a trajetória de mães de crianças atípicas.
A jornalista e empresária Ana Flavia Jacques, de 34 anos, é uma delas. “Você está nova, você vai sofrer muito, pode ter outro filho”, ela escutou de um dos profissionais de saúde com quem teve contato. Segundo ela, esse foi o pior momento depois do diagnóstico da síndrome de Down. “Como se a minha filha não tivesse direito à vida”, desabafa. Ana Flavia, que é uma das coordenadoras do Movimento Minas Down, diz que sugerir a interrupção da gravidez em casos de síndromes é um fato mais comum do que se imagina.
A gestação de Maria Fernanda, hoje com 4 anos, não foi planejada, mas, segundo a mãe, “muito comemorada porque desde que me entendo por gente, sempre quis ser mãe”. Quando ela e o marido, Daniel Carvalho, estavam se acostumando com a ideia, as alterações começaram a aparecer nos ultrassons. “Entre a 15ª e a 16ª semana o exame detectou uma possível alteração no sistema nervoso central depois de a transluscência nucal (medida tirada no ultrassom morfológico do primeiro trimestre) não mostrar nenhuma alteração. No ultrassom seguinte, uma cardiopatia congênita grave foi detectada”, recorda-se.
Esse conjunto de manifestações indicavam uma síndrome e Ana Flavia diz que os médicos chegaram até suspeitar de que fosse algo incompatível com a vida. Duas semanas depois, entretanto, veio o diagnóstico da trissomia do 21. “Não é fácil. Passei dois meses sem conseguir falar sobre nenhum assunto que envolvesse o tema bebê. Eu me lembro do dia em que aceitei que a Maria Fernanda tinha que vir ao mundo da forma que tivesse que vir para ser minha. Estava um dia nublado e, de repente, uma luz se abriu. Hoje, tenho certeza que não mudaria nada em minha filha”, diz.
REDE DE APOIO Ela diz que o diagnóstico precoce foi importante não só para a aceitação, mas para o momento do parto. “Fui assistida por profissionais que comumente não estão presentes em uma sala de parto. Tive tempo para pesquisar e para fazer contato com outras famílias e vi que não era ‘bicho de sete cabeças’ como se pintava. As redes sociais ajudaram demais nesse momento, muitas pessoas me ajudaram. Pela minha formação, sabia filtrar o que era informação de qualidade. Hoje, posso dizer que minha filha leva uma vida praticamente comum, como qualquer criança. Ela só tem uma agenda cheia. Faz fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional porque ela necessita de uma atenção especial”, relata.
O pré-natal também foi feito com muito cuidado, os ultrassons eram realizados com mais frequência e Ana Flavia consultou um geneticista. “Foi um acompanhamento minucioso. No final da gestação, suspeitou-se que Maria Fernanda estivesse em sofrimento fetal, mas ela nasceu a termo de 38 semanas. Quando minha filha chegou, já conhecia a situação genética dela e tudo que ocorreu no parto me surpreendeu positivamente. Eu estava preparada para que ela ficasse meses na UTI, mas ficou seis dias”, conta.
No caso de Síndrome de Down, o chefe do Centro de Medicina Fetal do HC-UFMG, Henrique Leite, diz que a importância do diagnóstico precoce é justamente preparar o casal para o nascimento de uma criança atípica, mas também preparar a equipe que vai acompanhar o parto para receber essa criança. “Bebês com Down apresentam frequência 40% a 50% maior de malformações cardíacas. Também são crianças que podem apresentar problemas renais. Por isso, precisam de um cuidado especial ao nascer”, pontua.
Para a jornalista e empresária, o que ela considera mais importante – além do diagnóstico precoce –, é a forma como os profissionais de saúde dão a notícia às famílias. “É preciso muita sensibilidade, eles estão lidando com o sonho de muitas mulheres e muitos homens. O que escuto e vejo, como coordenadora do Minas Down, é que a demora em superar a notícia da síndrome tem muita relação com o momento em que a notícia foi dada e a forma como foi dita. Algumas famílias ficam traumatizadas a ponto de demorarem – e outras não conseguirem – a criar o vínculo com aquela criança. O momento da notícia é o mais importante”, acredita.
Ana Flavia afirma que padece das mesmas angústias e alegrias como qualquer outra mãe. “A Maria Fernanda uniu minha família, uniu meu marido e eu como casal, trouxe harmonia”, diz. Para ela, o mais difícil dessa caminhada foi ouvir de um profissional de saúde que a vida de Maria Fernanda não valia a pena.
Diagnóstico errado
Apesar dos avanços da medicina, erros de diagnóstico acontecem e, por isso, é fundamental ouvir mais de uma opinião. A funcionária pública Beatriz Casassanta, de 36 anos, mãe de Larissa, de 2, e Gael, três meses, viveu uma gestação de angústia para descobrir, três meses depois que a mais velha nasceu, que o diagnóstico que recebera estava errado.
Um ultrassom morfológico suspeitou de síndrome de Down, mas ela não quis fazer o exame que confirmaria ou descartaria a trissomia do 21 por considerar invasivo. Assim, o médico sugeriu um exame de sangue que poderia ser feito nos Estados Unidos e que testa cinco doenças genéticas de uma só vez, incluindo a de Down. E assim foi feito. “Eu desejava que o momento do nascimento da minha filha fosse um momento feliz, tinha convicção de que a aceitaria do jeito que ela fosse, mas queria saber o que ela tinha antes que nascesse”, explica.
O resultado chegou com a informação de que Larissa teria 99% de chance de ter Síndrome de Turner (ST), que afeta apenas as mulheres e consiste na ausência parcial ou total do par do cromossomo X. Além da baixa estatura, meninas com essa condição não entram na puberdade e são inférteis. Além disso, têm malformações cardíacas e dificuldades de aprendizagem. O aborto espontâneo é uma intercorrência comum em casos de ST.
Aos três meses de vida foi descartada de vez o diagnóstico da síndrome em Valentina. “Passei a gestação inteira acreditando que teria uma filha com necessidade especial e acho importante alertar que o erro também existe”, observa.