'Ninguém vai acreditar': campanha alerta mulheres para relacionamentos abusivos

A ação #tambéméviolência aborda tipos de violência que não deixam marcas visíveis. A Lei Maria da Penha considera agressão psicológica, moral e patrimonial como violência doméstica

por Valéria Mendes 17/10/2016 13:30
Divulgação Artemis
Três em cada cinco mulheres sofreram, sofrem ou vão sofrer violência em um relacionamento afetivo no Brasil (foto: Divulgação Artemis)
Falar sobre relacionamento abusivo é mexer em feridas profundas que incluem não apenas o sofrimento da vítima, mas um componente cultural e estruturante de sociedades machistas que colocam o homem como alguém viril e a mulher como sensível, aquela que está sempre exagerando: a louca. “Ninguém vai acreditar” é uma frase que provavelmente toda mulher vítima de violência psicológica já ouviu de seu agressor. Apesar de constarem como violência doméstica na Lei Maria da Penha, as agressões psicológica, patrimonial e moral cometidas contra mulheres mundo afora caem no descrédito da família, dos amigos e amigas, das autoridades, do judiciário. É um tipo de violência silenciosa, que ao contrário da física e sexual, nem sempre deixam marcas visíveis.

Nem todas as feridas aparecem e, por isso, mesmo precisamos romper a barreira do descrédito. Três em cada cinco mulheres sofreram, sofrem ou vão sofrer violência em um relacionamento afetivo no Brasil. Ocupamos o quinto lugar no ranking de feminicídio, segundo a ONU Mulheres. Além disso, 41% dos casos de violência doméstica acontecem em casa e 57% iniciam-se após o término de um relacionamento. Falar sobre o assunto é o primeiro passo e o mote da campanha #TambémÉViolência, idealizada pela Artemis com o apoio da LUSH. Nas redes sociais, a ação consiste em usar a hashtag e escrever uma ou mais palavras que representem a experiência pessoal e publicá-las junto com uma foto. Famosas como Astrid Fontenelle, Marina Person, Mel Lisboa e Paula Lima já aderiram.

Larissa Amaral/Divulgação
"A violência patrimonial, no qual o agressor toma posse dos bens da vítima por ciúmes ou por controle, muitas vezes é velada como demonstração de amor. Precisamos falar sobre isso para não romantizar um comportamento violento" - Raquel Marques, fundadora e presidente da ONG Artemis (foto: Larissa Amaral/Divulgação)
Presidente e fundadora da Artemis, Raquel Marques afirma que nenhuma violência física ou sexual em um relacionamento afetivo acontece sem ser precedida por violências psicológicas ou morais. Além disso, segundo ela, “a violência patrimonial, no qual o agressor toma posse dos bens da vítima por ciúmes ou por controle, muitas vezes é velada como uma demonstração de amor. Precisamos falar sobre isso para não romantizar um comportamento violento. Em muitos casos, esse comportamento é o início de abusos que tendem a se agravar”.

É o caso de Vanessa*, 32 anos, gerente de RH e que viveu casada por dois anos com Ricardo*, 40. Ela é uma exceção na estatística já que, em média, a mulher demora nove anos para conseguir sair de um relacionamento abusivo. Mesmo assim, ela considera uma “experiência longa e difícil de perceber”. “Perdi as contas de quantas vezes ouvi da minha mãe que homens são assim mesmo, que casamento é assim mesmo e que no final do dia ele estava era comigo, que é difícil encontrar um companheiro”, relata.

Característica comum de relacionamentos abusivos, Vanessa conta que, ao final de toda discussão, ela sempre saía como a errada, se convencia disso e se via como uma pessoa difícil de conviver que, realmente, deveria agradecer por ter um homem ao seu lado. “Em coisas que tinha certeza que eu estava com a razão, ele dizia, ‘você é muito exagerada’, ‘você vê o mundo cinza’, ‘você é louca’, ‘ninguém vai querer ficar do seu lado’. A culpa sempre era minha. De coisas simples, como cozinhar uma massa que não ficou no ponto que ele gostava e dizia ‘mas você não consegue nem fazer um macarrão’ a fatos como eu pagar a escola dos dois filhos que ele têm, emprestar dinheiro para ele quitar dívidas do cartão de crédito, arcar sozinha com o aluguel e, quando precisei do dinheiro, ele falar ‘você não valoriza nosso relacionamento’, ‘o dinheiro é nosso’, ‘você não está sendo companheira’ e ainda ‘nosso casamento não é tão sério para você’. Nunca mais vi essa quantia”, diz.

Mestre em psicologia e doutoranda em bioética pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Fiocruz, Letícia Gonçalvez reforça que a violência psicológica é mais difícil de constatação pela sua manifestação ser naturalizada e amenizada já que a referência central de violência relacional é a física. “O mais comum, social e estruturalmente, é que as mulheres não identifiquem falas e ações de humilhação, desmotivação, ofensas e críticas intensas como violência psicológica, mas encontrem justificativas individuais ou bem localizadas para tais agressões. Além disso, esse tipo de comportamento [a violência emocional e psicológica] é naturalizado como pouco importante, ainda que as consequências sejam intensamente graves para as mulheres”, sintetiza.

A gerente de RH diz que foi ficando tão fragilizada, se sentia egoísta e ‘reclamona’, e começou a ter crises de pânico que culminaram em uma depressão. “A partir de então, ele passou a usar do diagnóstico desse transtorno mental para rebater qualquer argumento meu. ‘Você tomou seus remédios hoje?’ e ‘você não está normal’ são coisas que ele sempre dizia quando a gente brigava”, relata Vanessa.

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Famosas também aderiram à campanha (foto: Divulgação Artemis)

Danos emocionais
Segundo definição da Organização Mundial de Saúde (OMS) violência psicológica é “qualquer conduta que lhe cause danos emocional e diminuição da autoestima ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica”.

A psicóloga Letícia Gonçalvez afirma que um sinal importante de que uma mulher está em um relacionamento abusivo é a configuração de uma hierarquia que tende a cristalizar a mulher no lugar de inferioridade. “De forma mais específica, vários indícios podem se apresentar, como críticas intensas e persistentes a comportamentos e pensamentos expressos pelas mulheres, como se tudo que partisse delas fosse menos importante ou equivocado”, cita.

Para a especialista, a violência psicológica tem como centralidade um princípio patriarcal de que racionalidade, e tudo que ela implica, fosse atributo somente dos homens. “Com base nessa lógica e nas formas de controle e exploração das mulheres, são produzidas e reproduzidas formas de mantê-las submissas e vinculadas, pela violência, ao companheiro”, pontua.

Por tudo isso, os efeitos de um relacionamento abusivo são graduais e silenciosos. “As repercussões na vida da mulher são diversas e não universalizáveis, mas reduzem a autoestima fazendo com que elas se sintam inferiores e incorporem todas as críticas, o que pode desencadear quadros de depressão”, explica Letícia Gonçalves. Segundo ela, “as violências psicológicas são importantes mecanismos de vinculação aos homens agressores, pois produzem a ideia de que as mulheres nunca conseguirão outro companheiro tão bom e interessante como aquele se apresenta, pela via da violência”.

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41% dos casos de violência doméstica acontecem em casa e 57% iniciam-se após o término de um relacionamento (foto: Divulgação Artemis)

Vanessa diz que seu relacionamento com Ricardo era 90% pautado por discussões e brigas, mas tinham “os 10% de amor e sintonia”. “E aí eu pensava ‘se eu fizer tudo certo, do jeito que ele quer, esses 10% podem virar 100%’. Foi quando minha depressão piorou porque eu tinha medo de ele me culpar por qualquer coisa, tinha medo de fazer qualquer coisa errada e vivia angustiada, não conseguia trabalhar. Conversava com as minhas amigas e elas achavam que, no fundo, eu gostava daquela situação. Afinal, por que eu não terminava? Conversava com minha mãe, e sempre ouvia a mesma coisa. Eu não era vítima de violência física, como eu ia procurar uma delegacia para denunciar?”, questiona.

Um episódio nesse ciclo ininterrupto de violência, no entanto, fez Vanessa se atentar para outros detalhes da relação. “Os remédios me davam muito sono e eu capotava. Uma manhã eu acordei e ele me falou que tinha transado comigo e que eu nem percebi. Tive uma sensação muito estranha. Eu pensava ‘como assim, ele me estuprou?’ e ao mesmo tempo respondia a mim mesma ‘ele é seu marido, não é estupro, ele tem direito sobre o meu corpo’”, conta. Depois disso, Vanessa se lembrou de um hábito de Ricardo que era de pegar a mão dela e ficar batendo na mesa – de restaurantes, bares e lugares que o casal frequentava. “Eu não gostava quando ele fazia isso, mas não conseguia perceber como violência física”, diz.

Foi então que amiga comentou com a jovem que Ricardo praticava gaslighting [violência emocional por meio de manipulação psicológica, que leva a mulher e todos ao seu redor acharem que ela enlouqueceu ou que é incapaz; leia mais no quadro abaixo] e a jovem começou a pesquisar sobre o termo, ler relatos de mulheres na internet e se conscientizar. “Nessa época, na segunda vez que eu me separei, o apoio da minha irmã foi fundamental porque ela não me deixou mais me encontrar com ele”, diz. Antes disso, a gerente de RH já tinha tentando se separar, mas acabou cedendo às promessas de Ricardo.  

“A separação foi em duas partes. Quando a violência física começou a ficar mais nítida para mim e mais frequente foi quando tentei me separar pela primeira vez. Em uma de nossas brigas ele me empurrou com muita força, bati o braço na maçaneta e ele ligou pra minha mãe dizendo que ‘eu estava fazendo de tudo para ele me bater’. E nesse dia minha mãe chamou a polícia e eu saí de casa. Ele me xingou de puta para baixo. Mas quando conversamos na tentativa de acertar as contas, ele se comprometeu a pagar alguns alugueis e a gente se reaproximou. Eu me convenci de que não era nada demais ele ter me empurrado, que eu tinha realmente provocado, e o aceitei de volta em casa”, conta.

Mas nesse retorno, o relacionamento piorou. “Ele começou a se envolver com outras mulheres e ligava para elas na minha frente. Acabou que eu saí de casa e fui morar com uma amiga. Quando tentei reaver minhas coisas e procurei uma delegacia para fazer boletim de ocorrência, me disseram que saí de casa porque quis, que eu tinha a chave e que podia entrar lá na hora que eu quisesse. Dois meses depois, resolvi ir lá. Toquei campanhia, ninguém atendeu. Quando entrei, um amigo dele me imobilizou e me colocou pra fora. Nesse dia, chamei a polícia que me garantiu o direito de entrar na casa e pegar minha coisas. Consegui registrar boletim de ocorrência como “vias de fato”, ou seja, como briga, e não como violência. Na delegacia, ele falava que eu tomava remédios psiquiátricos e por isso estava agindo daquele jeito. Eu estava com muitos roxos nos braços e fui para o Instituto Médico Legal, entrei com processo para reaver meu dinheiro, mas a justiça nunca conseguiu encontrá-lo. A resposta que eu tenho é ‘réu não encontrado’. Estou de emprego novo, de casa nova, o processo está correndo e não coloco mais energia nisso. Todo lugar que a gente procura nos desestimula a lutar contra esse tipo de violência. Para denunciar, tem que brigar muito”, desabafa.

Carolina Del Bue/Divulgação
Mulheres fazem ato público em frente ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, na Praça da Sé, para conscientizar a sociedade sobre tipos de violência silenciosas contra a mulher (foto: Carolina Del Bue/Divulgação)

Denúncias ainda são difíceis

Infelizmente, ainda não existem formas efetivas de denunciar agressores por violências silenciosas. Para Raquel Marques, a importância de falar (e informar) sobre as violências não visíveis é necessário para que se evoque e se aplique a Lei Maria da Penha. “Mulheres vivem histórias devastadoras em seus relacionamentos, em contextos diários de ameaças, humilhação, destruição de bens, sequestros de patrimônios e muitas vezes não conseguem sair dessa situação. Se tentam registrar um boletim de ocorrência, não são levadas a sério e o que dizem não é visto como problema apesar de estar claro na lei. No judiciário, os próprios advogados e advogadas não reconhecem esse tipo de violência que, mesmo com o fim do relacionamento, pode ter consequências na vida da mulher como na guarda dos filhos, no pagamento de pensões. A violência psicológica recrudesce com a separação e ela sequer é mencionada nos processos de separação e guarda”, afirma.  

Segundo ela, esperar uma mudança cultural “simplesmente pela boa vontade das pessoas” leva muito tempo. Por isso, é imprescindível que o judiciário reconheça, puna e que os agressores sejam obrigados a repensar suas práticas. “Em São Paulo, temos, por exemplo, homens agressores que são obrigados a participar de grupos de reflexão sobre masculinidade. Já é muito difícil para as próprias vítimas de violência psicológica se reconhecerem como tal e quando elas procuram as redes de apoio – delegacias e judiciário – acontece uma revitimização dessa mulher que é considerada exagerada, descontrolada, louca. Quando a mulher dá um passo as autoridades dizem que ela está errada. É preciso romper esse ciclo”, defende.

A presidente da Artemis diz que é importante lembrar que a violência doméstica tem um ciclo. “Não é o tempo todo briga, tem o amor, tem o bem-querer. É uma tensão que vai crescendo e explode sob uma justificativa de que a mulher provocou. Esse ciclo roda muitas vezes e quem está em volta é preciso ter informação e paciência para não cair no erro de acreditar que a vítima gosta dessa dinâmica”, pondera.

Para a psicóloga Letícia Gonçalves, o caminho para superar o descrédito desse tipo de violência é realmente falar abertamente sobre as agressões psicológica, moral e patrimonial para que as mulheres saibam identificar os abusos nas relações. “Precisamos desconstruir os sistemas que tornam naturais e obrigatórios a heterossexualidade, a maternidade, o casamento, o amor por serem vistos como o destino e aspectos centrais na vida das mulheres e por terem servido (e ainda servir) para justificar todas as violências a que elas se submetem. Afinal, as mulheres precisam estar acompanhadas de um homem. Construir projetos de vida que ultrapassem esses princípios hegemônicos é um aspecto importante”, acredita.

Para a psicóloga, uma vez inseridas em uma relação violenta, dada a gravidade e danos psicológicos, é importante a mulher procurar apoio, pessoas próximas e, se possível, profissionais específicos. “Ainda que o acesso não seja igual para todas, existem serviços públicos que acolhem essas vítimas. Conversar com o parceiro e apostar em mudanças é válido inicialmente, mas é necessário identificar que a mudança muitas vezes não virá porque o sistema patriarcal privilegia hierarquicamente os homens”, conclui.





Onde procurar ajuda
A rede de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher inclui os Centros de Referência de Asssitência Social (CRAS), os Centros de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), os Centros de Referência de Atendimento à Mulher (CRAMs), Casas de Abrigo – em BH temos a Tina Martins e Benvinda -, Delegacias Especializadas de Defesa dos Direitos das Mulher e a Central de Atendimento à Mulher (ligue 180).

A LEI Publicada em 12 de julho de 2006, a Lei Maria da Penha considera como violência doméstica “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual, psicológico e dano moral ou patrimonial”. A convivência não precisa ser cotidiana, nem atual ou duradoura, basta que exista uma relação afetiva entre a vítima e o agressor, mesmo que não morem juntos na mesma casa. É importante lembrar que pode ser considerada violência doméstica aquela praticada por pessoas da mesma família (e agregados) e que a lei não exclui de sua proteção a prática de violência em relações homoafetivas entre mulheres.

Quem é vítima de violência doméstica tem direito a medidas protetivas quando está em situação de risco. O pedido dever ser feito na delegacia, no Ministério Público e na Defensoria Pública. Para fazer esse pedido não precisa de boletim de ocorrência.

Dentro da campanha #TambémÉViolência, a Artemis - ONG que visa a promoção da autonomia feminina e erradicação da violência contra a mulher e idealizou a ação -, também formalizou uma denúncia ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo pela violação de direitos humanos pelo judiciário brasileiro que ainda não reconhece efetivamente as violências domésticas dos tipos psicológico, patrimonial e moral. No documento, a instituição cita algumas decisões da justiça que exemplificam o não cumprimento da Lei Maria da Penha.

* Os nomes foram trocados a pedido da entrevistada.