O conhecimento sobre a importância do brincar para o desenvolvimento humano é de quase um século e a cultura lúdica sempre acompanhou a humanidade. Infelizmente, há uma alienação dessa informação. As famílias, muito preocupadas em educar para o futuro e o sucesso profissional, enchem o dia das crianças com atividades extra-curriculares.
Brincar prescinde tempo. “É curioso observar pais, mães, escolas e creches estipulando a ‘hora do brincar’ e determinando o início e o fim. ‘Acaba’ a brincadeira e os adultos querem arrumar “aquela bagunça”. Não é bagunça. Não se cria sem tirar as coisas do lugar. Muitas vezes a criança não brinca com determinado brinquedo porque ele está lá, guardado no armário ‘bem arrumadinho’ e que impossibilita a brincadeira. O espaço da brincadeira tem que funcionar para estimular o brincar. Se ele é restritivo, ele impede a criação”, afirma a doutora em psicologia do desenvolvimento humano e professora da Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUCMinas), Paula de Souza Birchal.
A brincadeira é a linguagem da criança. E o brincar é a linguagem do espontâneo. O que de melhor podemos fazer para meninos e meninas é propiciar a eles tempo, espaço e liberdade para se entregarem ao prazer genuíno da brincadeira. E confiar. As crianças são as maiores especialistas do brincar.
Brincar ensina tudo
Especialistas em infância falam sobre a importância de valorizar o lúdico na infância e explicam como o desenvolvimento humano perpassa pela brincadeira
Flávio Chagas, 44 anos, é analista de sistemas, e da turma de Alex: adora brincar e associa brincadeira a liberdade. Caio tem 3 anos e é fã de carrinho. O pai também. “Sempre foi a minha brincadeira preferida”, revela. Apesar do pouco tempo que passam juntos durante a semana, os dois sempre arrumam um jeito de brincar de faz-de-conta.
Muito se engana quem pensa que a parceria não está dando certo, olha só o que o garotinho narrou para Flávio: “Em uma atividade da escola, Caio foi ensinar aos coleguinhas uma brincadeira que fizemos em casa, a dança das cadeiras, e falou ‘quem perder, não precisa ficar triste, a gente não ganha sempre’. O mais legal é que crianças aceitaram muito bem”, conta o analista de sistemas. É ou não motivo para se orgulhar?
O pai de Caio é tão bom de brincadeira que meio que virou o “monitor” das crianças em todo o canto que ele vai. “O meu marido brinca não só com o nosso filho, mas também com os dos outros. Algumas amigas falam que ele é o animador das festas”, relata a esposa Cláudia Marques. Para ele, uma tarefa fácil demais. “Acho que a nossa alegria vai contagiando as crianças que estão em volta e quando a gente vê, não somos dois, somos muitos”, diz.
Para tentar driblar essa barreira, a pedagoga decidiu criar um projeto, o ‘Recreaprendo’, com o objetivo claro de introduzir o tema no ambiente familiar. Assim, toda sexta-feira, as crianças levam para casa uma tarefa que consiste em uma brincadeira para ser feita junto com o pai e a mãe. “As famílias devem registrar o momento com fotos, desenho e os cuidadores são convidados a escrever sobre as reações, sentimentos e emoções que perceberam na criança”, explica. O caminho é tortuoso, mas Renata diz que a escola já tem algumas boas histórias para se apegar.
A professora da PUC-Minas, Paula de Souza Birchal ressalta que a forma de a criança se organizar enquanto sujeito é brincando. “Os adultos não reconhecem isso porque estão sempre em busca de um efeito, de um resultado. Só que o efeito é em longo prazo, é o desenvolvimento do sujeito. O brincar ensina tudo”, reforça.
Segundo a especialista, a realidade da educação infantil é que uma criança tem que ler com 6 anos e que, em geral, na escola, há um excesso de conteúdo que não propicia tempo livre para o brincar. “São tantas as atividades pedagógicas como se o lúdico não fosse fundante do sujeito. Já dizia Paulo Freire, primeiro a gente lê o mundo para depois ler as letras. E como a criança vai ler o mundo? Brincando. Menino e menina que não brinca terá dificuldade para decodificar o mundo”, salienta.
Livre brincar
Essa ansiedade por resultado não favorece o livre brincar e pode, inclusive, esconder um lado perverso da relação do adulto com a infância. Brincar é em si uma atividade desinteressada (no sentido de não ter um objetivo específico) que a ajuda a preparar para a vida. Os brinquedos pedagógicos, por exemplo, deveriam ficar restritos ao ambiente escolar. Psicóloga, especialista em psicanálise, mestre em psicologia e coordenadora do curso de psicologia do Centro Universitário UNA, Camila Fardin explica que brinquedo pedagógico é todo aquele que é feito de madeira ou plástico e tem o objetivo de ensinar alguma coisa às crianças. “O lugar do brinquedo pedagógico é na escola. As famílias devem permitir que as crianças brinquem livremente sem nenhuma função além do prazer”, defende.
Paula de Souza Birchal afirma que é importante compreender que a função do brinquedo é a função que a criança dá a ele. “Se um professor ou a família quer usar um jogo para ensinar matemática para a criança, por exemplo, esse objeto passa a ser um instrumento metodológico e deixa de ser brinquedo porque a criança não vai mais brincar do jeito dela. Se tem direcionamento, se tem intenção, não é brincadeira, é processo de aprendizagem. É uma forma mais lúdica de ensinar? Sim. Mas não é o ato de brincar”, salienta.
A professora da PUC Minas explica que a intencionalidade de um brinquedo restringe a construção fantástica da criança. Isso pode explicar, por exemplo, aquele carrinho de controle remoto caro guardado na gaveta, que tem uma função específica e que não dá possibilidades de criação para a criança. Por outro lado o potencial de uma caixa de papelão é imenso: pode ser carro, pode ser trem, pode ser nave, pode ser foguete, pode ser capacete, pode ser uma cesta de basquete...
Paula de Souza Birchal reforça que, conceitualmente, brinquedo é qualquer objeto que é dado a ele uma função lúdica. “O fim é o brincar. Se formos analisar historicamente, na Antiguidade, não existia o brinquedo como objeto da criança. Meninos e meninas utilizavam aquilo que sobrava da casa e que se transformava em brinquedos nas mãos das crianças. Com a valorização da infância a partir do século 18 que o brinquedo vai surgir como objeto da criança. No século 20, com a industrialização, essa relação fica mais evidente, um sinal da infância ocupando um lugar social”, resume.
Só que indústria, publicidade e mídia levaram essa relação às últimas consequências e hoje já se discute o consumismo infantil como um problema real na vida de muitos meninos e meninas. Mais brinquedos não significa mais brincadeiras e pode, em alguns casos, levar ao caminho contrário. “Uma criança não precisa de muitos brinquedos, o que ela precisa mesmo é de tempo para brincar”, garante Camila Fardin. Segundo ela, a criatividade é fundamental para o desenvolvimento da inteligência e as famílias precisam é oferecer ferramentas que possibilitem às crianças criarem.
Consumismo
Para a jornalista e integrante da Rede Brasileira Infância e Consumo (REBRINC), Desirée Ruas, vivemos o desafio de fazer com que as crianças reaprendam a brincar. “Elas foram acostumadas à pressão dos comerciais e de lançamentos que incentivam o colecionar, o acumular peças. Vemos armários cheios de brinquedos e crianças que não sabem brincar porque faltam espaço, companhia e estímulo. Dessa forma, sobra pouco para a criança imaginar e criar e a brincadeira depende dessa liberdade. Então, quanto menos estruturados forem os brinquedos mais a criança terá que exercitar sua imaginação e mais o brincar será enriquecedor”, acredita.
Psicóloga hospitalar, Christiane Gibram, 39 anos, parou de trabalhar quando sua primeira filha nasceu, Manuela, hoje com seis anos. Ela também é mãe de Bruno, de 4, e nunca perdeu o prazer e o interesse pelo brincar. Quando as crianças vieram, ela aproveitou para se esbaldar no mundo de fantasia da duplinha. Na casa dela, os armários estão repletos de brinquedos, mas o sofá é montanha e ela já perdeu quantas vezes o filho e a filha já escalaram o móvel em contextos de brincadeiras dos mais diversos. “A regra aqui em casa é ‘deixa brincar’”, afirma.
Desafio
Apesar de morarem em um prédio, pode pular corda dentro do apartamento, brincar de amarelinha e também de queimada. Quando Christiane volta no tempo para recordar da sua infância vê uma menina livre, leve e solta que morava de frente para uma pracinha em Campo Belo e brincava com os vizinhos da rua em lote vago, em construção, nas árvores. “O meu maior prazer da infância era subir na jabuticabeira e comer fruta no pé. Para mim, criança tem que brincar e evito ao máximo televisão e jogos eletrônicos. Aqui em casa nós gostamos é de parque, praça e museu”, diz.
Por outro lado, quando ela compara o que viveu com a realidade de Manuela e Bruno, nascidos e criados em cidade grande, ela tem um misto de sensações: “Às vezes eu penso em como a minha mãe me deixava tão solta. Fui criada assim e não consigo deixar meus filhos brincarem longe de mim. Em praça e parque, fico preocupada em estar junto o tempo todo. Eles brincam muito ao ar livre, mas estou sempre com um olhar atento e isso me incomoda um pouco”, confessa.
Ao comparar a infância do filho com a dele, Alex William José Gomes Ferreira também sente falta das brincadeiras de rua que, infelizmente, não pode proporcionar ao Abner. Insegurança, medo e trânsito são uma realidade para a família que mora em Contagem. Mas nada que uma praça ou um parque não resolvam. “Eu acho muito importante brincar com meu filho. Saio de casa às 6h30 e retorno às 19h. Algumas vezes na semana ainda tenho aula de pós-graduação, mas nos dias que não tenho, faço questão de buscá-lo ao final das aulas, para ele ver que o pai tem vínculo com a escola dele. Nesses dias, a gente chega juntos em casa e vivo momentos de imenso prazer brincando com ele. É o tempo que a gente tem para se relacionar, é o tempo de dar amor, dar carinho. Somos parceiros”, resume.
E é assim que tem quer ser. Brincar é construir parceria. Para a psicóloga Paula de Souza Birchal pais e mães que brincam com seus filhos e filhas estão dizendo ‘somos parceiros em tudo’. “O valor da vida para a criança é o valor que a família dá. É importante que o adulto também tenha seus momentos lúdicos. Faz parte da vida, construímos isso na infância, mas as o prazer da brincadeira perdura pela vida”, diz. Lembre-se: somos homo ludens e brincar precede a cultura porque até os animais brincam.
Fase das brincadeiras
Até 2 anos:
Crianças que ainda não têm a linguagem desenvolvida, tendem a escolher brincadeiras que reproduzem a cena familiar. É por imitação que elas vão compreender o funcionamento daquele ambiente, entender as regras e experimentar papéis diferentes. São brincadeiras exploratórias do mundo.
Dos 2 anos aos 10:
O faz-de-conta é mais nítido até os 7 ou 8 anos de idade, mas, na verdade, essa brincadeira pode perdurar até os 10 anos. Quando começam a desenvolver a linguagem, de acordo com Paula de Souza Birchal, meninos e meninas entram no mundo da simbolização, do faz-de-conta e começam a criar cenas imaginárias e explorar todas as possibilidades da brincadeira. “O papel do adulto não é ensinar como brincar, mas favorecer a brincadeira. Essa fase das cenas imaginárias é mais marcante até os 10 anos, mas, na verdade, perdura por toda a vida porque o ser humano é lúdico por natureza. Nessa fase, a brincaddeira não tem regras, não tem princípio, meio ou fim. Ora tem parceria, ora não. E a criança se exaure nela”, salienta.
Para Camila Fardin, a brincadeira de faz-de-conta é importante para desenvolver a socialização. “Socializar implica em negociar com outra pessoa, implica em frustração, implica em saúde mental. A vida real não é controlável e a criança só vai aprender a lidar bem com a frustração e exercitar a resiliênica quando brinca de faz-de-conta. Os adolescentes de hoje se colocam em mais situações de risco real do que adolescentes de outras épocas justamente por não saberem lidar com a frustração. Isso é aprendido na infância. A brincadeira é o trabalho principal da vida da criança”, salienta.
A partir dos 10 anos:
Depois dessa fase elaborativa do fantástico, as crianças vão dar preferência aos jogos mais estruturados, elas se aprofundam nas relações e regras. “A partir daí, no futebol, por exemplo, ganha quem fizer mais gols e as crianças vão conduzir todas aquelas construções imaginárias para a realidade da vida, da inserção no cotidiano. Elas não perdem nunca a criatividade, mas todo esse jogo simbólico é uma construção de textos futuros. A criança que brinca muito terá textos melhores. A criança que brinca mais é mais criativa, ativa, autônoma, pensa mais”, explica Birchal.
Jogos eletrônicos
Eles não são os vilões, mas há que se colocar limites. A coordenadora do curso de psicologia do Centro Universitário UNA, Camila Fardin pondera que os jogos eletrônicos incentivam o desenvolvimento cognitivo, a atenção, a memória e a concentração. O problema seria o excesso. “A criança não pode ser aprisionada por esses artefatos”, afirma. Para ela, as famílias precisam compreender que a brincadeira ao livre e a brincadeira sem brinquedos são mais importantes de serem incentivadas por estimularem situações imaginárias, imitação e entendimento do funcionamento do mundo. “A criança transfere para as brincadeiras as regras sociais e comportamentos do mundo adulto. Mas ela também se afasta da imitação e constrói novas combinações e novas regras. Tudo isso é muito importante para o desenvolvimento humano”, explica.
Brincar até cansar: esse é o limite
Estamos em privação social de relacionamento, seja por falta de tempo pelo excesso de responsabilidades, seja pela insegurança. As crianças de hoje, especialmente as que vivem em áreas urbanas, têm pouco espaço para brincar: vivem em apartamentos e a rua como espaço para queimada, futebol e amarelinha não é mais considerado um ambiente seguro. A falta de tempo também é uma realidade em alguns contextos familiares com meninos e meninas com uma agenda cheia de atividades.
Luiz Fernando Vieira Trópia é sociólogo, folclorista e produtor cultural.
É comum famílias relatarem armários repletos de brinquedos e as crianças optando por brincar com objetos da casa que mudam de função de acordo com a brincadeira. Na sua opinião, o brinquedo em si pode limitar a experiência do livre brincar de uma criança?
Se a criança é capaz de transformar qualquer objeto em brinquedo qual seria a função do brinquedo? O objeto em si teria, na verdade, um caráter mais afetivo do que propriamente ser o propulsor de uma brincadeira?
Existe uma pequena e importante diferença entre brinquedo e brincadeira. O primeiro pode ser visto como um objeto, simplesmente, mas que pode se transformar numa brincadeira, com a introdução do movimento, da dinâmica e interatividade, que propiciam a busca, a curiosidade, a descoberta, o aprendizado, o respeito ao outro. A brincadeira é o primeiro contato do ser humano com a cultura de seu grupo e da sociedade como um todo. É então um ato de prazer, de experimentação, de aprendizado, de sociabilidade e socialização.
Brincar com o filho, brincar com a filha: essa interação de adultos e crianças nas brincadeiras é importante para o desenvolvimento de meninos e meninas? Uma boa forma de promover esse encontro de gerações é resgatar as brincadeiras tradicionais?
A minha pesquisa intitulada ‘Folclore Lúdico - brinquedos e brincadeiras tradicionais no bairro de Santa Tereza, Belo Horizonte’ pressupõe entrevistas com pessoas de três etapas da história do bairro. Na primeira etapa, conversei com pessoas que viveram a infância na época da formação do bairro, nas décadas de 20 e 30, sendo que consegui localizar e entrevistar umas 10 pessoas. Na etapa intermediária, que é a que eu vivi, com gente que morou no bairro nas décadas de 50 e 60, quando a televisão foi inaugurada no Brasil, mas que ainda não influenciava tanto os hábitos e costumes da população e, portanto, das crianças. E por fim a época atual, na observação e contatos que tenho com as crianças que vejo brincando nas ruas e praças, atualmente.
O mais curioso é que quando entrevisto amigos e companheiros da infância e adolescência, a maioria que teve filhos, hoje até adultos, eles ficam perplexos de perceber como era rico o lúdico em nossa infância e de como foram tão omissos em não terem repassado essa riqueza aos seus filhos. Penso que perdemos mesmo essa interação frutífera com os filhos, por causa da televisão e do recrudescimento da informática em nosso meio. Claro que brincar com os filhos é uma forma de interação, de prazer, de aprendizado recíproco, de educação, de desenvolvimento e principalmente de carinho com eles. É, sim, um encontro de gerações e a melhor forma de transmissão de conhecimentos de uma geração para a outra. Isso é o sentido mais profundo da palavra tradição, que muitas vezes é confundida com o atraso, com o velho, o superado, pois diante de tanta interferência do imperialismo cultural e econômico, do modismo sobre os nossos costumes dos grupos e das comunidades, a tradição passou a ser um sentido essencialmente inverso ao primeiro, como um ato revolucionário, de resistência e até mesmo de vanguarda.
Território do Brincar (2015)
Tarja Branca (2014)
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