A amizade é uma forma especial de amar: veja histórias

Uma amizade verdadeira pode sobreviver a brigas, ciúme, distância e ao tempo. Há muitas pessoas que preferem manter um amigo de verdade a mil seguidores nas redes sociais

por Sandra Kiefer 20/09/2016 13:00
Arquivo Pessoal/Clarissa Vaz
Parte da turma de amigos do maternal do Colégio Dom Silvério, na primeira comunhão... (foto: Arquivo Pessoal/Clarissa Vaz)
Com o surgimento das redes sociais, tornou-se mais fácil fazer mil amigos no Facebook do que encher os dedos das mãos com amigos reais, com os quais se pode contar na hora do aperto, do tipo que merecem interromper a correria da vida e dar uma pausa para trocar um abraço, nem que seja para uma eventual despedida. Dar adeus até o próximo desabafo ou, quem sabe, combinar o almoço no sábado ou um longo telefonema para jogar conversa fora. Com os amigos de verdade é permitido pedir impressões sobre aquele problema do cotidiano, bobo, mas que aborrece. E o melhor: tendo a certeza de que seu olhar nunca vai se desviar, disfarçadamente, para a tela do smartphone.

Arquivo Pessoal/Clarissa Vaz
... e reunida, 40 anos depois, num restaurante em Belo Horizonte, há 10 dias: reencontro marcado por lembraças e pela emoção (foto: Arquivo Pessoal/Clarissa Vaz)
Mas também, justiça seja feita ao Facebook. Se não fossem os contatos da rede social, muitas amizades ficariam restritas às boas lembranças do passado. Quase 40 anos depois, em uma cervejaria da cidade, ocorreu no último dia 8 o primeiro encontro de mais da metade dos 42 alunos do maternal do Colégio Marista Dom Silvério, sendo que muitos foram parceiros da primeira comunhão. “Foi emocionante. Não teve quem não saísse feliz de lá, lembrando-se dos nomes das professoras, das músicas que cantávamos, da carinha de cada um”, conta a administradora de empresas Clarissa Vaz, de 49 anos, uma das organizadoras do evento. Presente ao encontro, um dos ex-colegas se lembrou de ter oferecido a ela, na época, uma pulseira cor-de-rosa de acrílico: “Você era nosso amor platônico”, disse.

Também presente à reunião, o bancário Eduardo Reis Moura, de 49, que atualmente fabrica cerveja artesanal, confessa ter gostado de aderir à ideia. “Eu indico. Foi sensacional me reunir com a turma da infância. Lembrava-me de algumas pessoas, mas de outras só depois de me explicarem consegui saber quem eram”, conta o rapaz, que, na ocasião, ostentava cabelo de cuia, com franjinha.

Não é à toa que a amizade, muitas vezes, sobrevive à passagem do tempo e às mudanças no jeitão de cada um. “Forma especial de amor, a amizade tem sua vertente erótica sublimada, persistindo o afeto”, lembra a psicanalista Gilda Paoliello. Os antigos já dividiam o amor em eros e ágape para os cristãos e eros e philia para os gregos. Já o filósofo Spinosa nos responde que “a amizade é uma forma muito especial de amor e não podemos viver sem amor, já que amor é vida!”.

Marcos Vieira/EM/D.A Press
Elas se conheceram no Santa Doroteia e deram o nome de Polvilho ao grupo: Ana Carolina Gomes, Stefani Pinho, Clara Garzon, Livia Baracho, Mariana Teixeira; assentadas estão Deka Aguiar, Adrianna Reis, Maria Augusta Starling, Mariana Lelo, Luisa Grochowski, Eduarda Leao, Renata Myrrha e Silvia Bias Fortes (foto: Marcos Vieira/EM/D.A Press)


Na saúde e na doença...  Sempre companheiras
Grupo de colegas de escola se mantém unido quase 10 anos depois, umas dando apoio às outras em situações corriqueiras. A cada reencontro, a alegria e a amizade são reafirmadas


Um agradecimento aos meus pais, irmãos, a Deus e... ao Polvilho. No convite oficial de formatura de uma das turmas do Colégio Santa Doroteia, de 2008, pelo menos duas formandas fizeram questão de mencionar o exótico nome do grupo de amigas. Todas as outras, sem exceção, se lembraram de agradecer à amizade existente entre elas, que, na verdade, não acabou com o fim do ensino médio. Quase 10 anos depois, continuam unidas as Meninas do Polvilho, “que fazem mais barulho do que aprontam confusão”, assim como a fama do biscoito que batizou a confraria.

Haja barulho no encontro marcado para a tardinha da última terça-feira, no Projeto Sabor, no Bairro São Bento, Região Centro-Sul de Belo Horizonte. “Fiu, fiu!”, assobiaram os adolescentes, que improvisavam para tomar conta dos carros nas imediações. A chegada das Meninas do Polvilho causou furor. Sem nem olhar para o lado, eram engenheiras, advogadas e administradoras dirigindo o próprio carro ou vindo de carona. Independentes, as jovens mulheres pisavam firme, rindo e conversando umas com as outras. “Que fique claro: nosso grupo não é de balada, nem só pra sair. É formado por amigas mesmo, daquelas com quem você pode contar e sabe que são para sempre”, diz a advogada Stéfani, de 25 anos.

Cada reunião do grupo depende de uma desculpa e se não tiver basta um motivo inventado. Desta última vez, celebrou-se a visita ao Brasil, na véspera, da engenheira civil Eduarda, de 25, que depois de uma pós-graduação decidiu morar nos Estados Unidos. A convite das amigas, ela foi agregada à turma com outras duas da Escola Santo Tomás de Aquino, a advogada Ilka e a engenheira civil Luísa, fornecedora especial de confeitos de balas de maçã e outras delícias, herança de família.

“Vim só para não perder nossa reunião mensal e também para o casamento de um primo”, brinca ela, que garante já ter recebido até 1 mil mensagens do grupo Polvilho, criado no aplicativo WhatsApp, em um único dia. “Devia ter feito um print, como prova de que vocês não me deixam sentir só”, diz ela, sonolenta, ainda sob os efeitos do jet leg. “Ficamos 10 meses sem nos ver e quando reencontro com elas, é a mesma coisa”, conta Eduarda, que já se preparava para o Butekombi, marcado para o sábado. A reunião mensal começou em uma Kombi, cresceu para caber em uma van e devido ao aumento do número de componentes, necessitaria alugar um micro-ônibus. A farra prevista para a data, com direito a camisa personalizada e chope, só não prometia perder para a despedida de solteira de uma delas, que se casou e mudou para São Paulo.

Participar do Polvilho é ter a certeza de ter companhia desde sempre, na saúde e na doença. No início do ano, com a internação de uma delas, o grupo revezou-se para ficar em vigília ao lado da cama do hospital. “Minha mãe ama as meninas do Polvilho”, revelou a engenheira, já recuperada. Outra integrante que precisou de apoio, em menor medida, foi aquela que terminou recentemente um namoro. Longe de se sentir isolada, a mais jovem solteira confessa que está bem melhor. “Com o Polvilho, a sensação é de que nunca vamos estar sozinhas. A gente ampara uma à outra”, resume Renata, sonhadora, dando o tom do encontro de polvilhetes.

ENTREVISTA
Gilda Paoliello - psiquiatra e psicanalista, professora da pós-graduação em psiquiatria do Ipemed

Amizade é atemporal
“O que vale é o amor e a amizade. A poesia está para a prosa assim como a amizade está para o amor. E quem há de negar que esta lhe é superior!”, canta o poeta Caetano Veloso. Qual sentimento é superior não precisa ser questão para nós. O filósofo Spinosa nos responde que “a amizade é uma forma muito especial de amor e não podemos viver sem amor, já que amor é vida!”. É uma forma especial de amor porque tem sua vertente erótica sublimada, persistindo o afeto. Os antigos já dividiam o amor: em eros e ágape para os cristãos, e eros e philia para os gregos. Aristóteles identificava na amizade, philia, três características: o prazer, o interesse e o bem moral e situava como paradigma da amizade o laço conjugal. Falava que mesmo quando a pulsão erótica, sexual findava, o laço conjugal podia ser preservado, o par mantido por meio da amizade.

Por que é preciso ter amigos no meio de tanta correria e individualismo?

Em nosso mundo atual, marcado pelo individualismo, o consumismo, a competitividade e a violência, vemos a amizade passando por várias provas, mas, ao mesmo tempo, ela é a possibilidade de construirmos alguma coisa contra essas tendências. É a pulsão terna, que inclui a solidariedade e o laço social que se movimentam em oposição a essas características. É a amizade que permite que se faça alguma coisa em conjunto, em oposição ao individualismo e ao isolamento.

O que define uma amizade real?
Enquanto o amor é cego, a amizade tem os olhos bem abertos e enxerga bem as diferenças e imperfeições do amigo, convive com elas e o ajuda a se tornar melhor. É a amizade que nos permite perdoar, compreender, suportar as diferenças, respeitar a alteridade, permitindo que a competição não implique destruição do outro.

Por que é possível passar anos sem ver um amigo e ter a sensação de que a amizade permanece inteira?
A amizade é atemporal, sobrevivendo independentemente da convivência, a afinidade se mantendo sempre atual. Por ser tão especial, ela é rara.

É diferente da amizade virtual?
“Tenho dezenas de amigos no Facebook” é uma fala clichê em nossos dias. É possível encontrar tantos amigos? Talvez a certeza de ser aceito, longe do mundo real de exclusões, se crie esta ilusão. Você mostraria sua face real a esses amigos? Conhece a deles? Ou é uma relação tão maquiada quanto a foto do perfil? Verifique nas convivências passadas o que delas restou. Haverá muitas lembranças, talvez saudades, mas a amizade, por ser tão preciosa, é mais rara.

Cristina Horta/EM/D.A Press
O grupo 'As Poderosas' é formado por mulheres cujos maridos foram colegas na Usiminas. Elas se mantêm unidas desde a década de 1970 (foto: Cristina Horta/EM/D.A Press)


'Amigos para siempre'
Redes sociais facilitam a reconexão de quem se conheceu na escola, faculdade, aquele companheiro da infância com quem se perdeu o contato. Há turmas que se encontram regularmente há décadas

A web aceita tudo. Os grupos de amigos vão se organizando aleatoriamente pela internet, o que facilita a marcação de encontros, tomar a decisão sobre o lugar onde ir e compartilhar informações importantes sobre a vida de cada um, seja em público ou no modo privado. Se você procurar, poderá se identificar com o clube fechado das Poderosas, formado por mulheres de funcionários e aposentados da empresa Usiminas, encaixar-se entre os campeões de gincana da antiga Rádio Cultura, o Cartão Vermelho, ou buscar as últimas novidades sobre o encontro anual da turma do Centro de Preparação de Oficiais de Reserva (CPOR), previsto para ocorrer em 26 de novembro.

“Popopoderosas!”, brindam as mulheres, com direito a espumante e animação, cada mês na casa de uma das moças que levam a alcunha do grupo, estabelecido desde a década de 1970. Elas juram que não se tratou de vingança ao clube de futebol formado às quintas-feiras pelos maridos, na época colegas da Usiminas. Atualmente, a maioria deles já se aposentou, mas a amizade permanece firme. “Na hora da nossa reunião, maridos e filhos têm de sair de casa ou ficar dentro do quarto. No máximo, podem fazer um pit stop na área de alimentação”, conta Solange Barcelos Drummond Rabelo, de 58 anos. “Estou prestes a pagar língua, por que vou ser avó”, diz Vanessa Maria Carvalho Santana, de 52, que aguarda a chegada do primeiro neto, Davi. Promete babar ovo no bebê e parar de criticar as outras.

“Aqui a gente tem liberdade para falar sobre tudo. Abraça, ri e chora, mas não sai sem brinde final, com alegria”, acrescenta a funcionária pública, que atualmente está enfrentando um problema de saúde, perto da cura. “Não temos espaço para as fracas. É só poder”, completa Sandra Maria Carvalho Santana, de 52, responsável pela Feijoada de Maio, evento anual, com direito a arco, anel e colar fluorescentes.

TEMPOS DA CASERNA “Faltam 73 dias, 19 horas, 23 minutos e alguns segundos”, marcava o cronômetro do site criado por Orlando Felipe Martins da Costa, de 60 anos. Depois de 11 meses de preparação para se tornarem oficiais do CPOR, formou-se na realidade uma convivência que já dura 40 anos. “Somos tenentes e o Beluco é nosso comandante. Marcamos nossas reuniões, toda semana, para relembrar os assuntos dos tempos da caserna. Mais do que companheirismo, cada um se esforça para ajudar o outro”, afirma Orlando. Ele alerta que as reuniões ocorrem às quintas-feiras no Ponto de Encontro, no Bairro de Lourdes.

Já o grupo de WhatsApp do Cartão Vermelho tem uma história diferente. Depois de sair vitorioso nas famosas gincanas das décadas de 1980 em Belo Horizonte, que reuniam turmas dos bairros Caiçara e Santo André, o grupo reencontrou-se virtualmente, passados 15 anos. Com uma saudade boa de participar das provas, em que era preciso arranjar o maior número de pares de irmãos gêmeos ou de notas antigas, dependendo da exigência do locutor Zezito, a animação da turma rendeu casos memoráveis e até um casamento. “Dá uma saudade da cidade daquela época, em que havia maior integração entre os bairros. As tarefas eram distribuídas no restaurante do quarteirão de frente à Sorveteria São Domingos, agora não me lembro mais do nome”, afirma a contadora Denise Alves, de 54 anos, que há um mês recriou o grupo.

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Fernando Luiz de Pinho e o músico Leonardo Araújo são amigos desde o início da juventude e, além de confidentes, sempre falam sobre livros e música, paixões de cada um deles (foto: Cristina Horta/EM/D.A Press)

Unidos pelo rock e pela literatura
Dono de uma das maiores coleções de livros de ficção científica do país, com cerca de 15 mil títulos catalogados, o ex-livreiro Fernando Luiz de Pinho, de 51 anos, é capaz de filosofar horas sobre A penúltima verdade, de Philip K. Dick (para quem não ligou o nome, o autor é o mesmo do livro que deu origem ao aclamado Blade Runner). A obra discorre sobre uma nova civilização, que vive nos subterrâneos acreditando que a superfície da Terra permanece destruída pela guerra. “Querida, as pessoas gastam tempo tentando encontrar extraterrestres, quando na verdade os alienígenas somos nós mesmos. Você pode conviver com uma pessoa a vida inteira e ela ainda surpreendê-lo. Então, a gente deve fazer o melhor possível para tentar conviver uns com os outros. Às vezes, a gente se surpreende até com a gente mesmo, não é?”, diz Fernando.

Culto e inteligente, esse homem que tem aversão a tirar fotos e jura que nunca fez uma selfie conta o motivo que o levou a participar da reportagem do Estado de Minas: “Foi pedido de um amigo. Confio 100% nele. Para ser meu amigo tem de apertar a mão e olhar no olho. Nunca tirei uma selfie e, para falar a verdade, nem tenho celular. Aprecio a tecnologia, mas não admito ser escravizado por ela”, afirma o comerciário.

O depositário desta amizade genuína, equivalente a um 'cheque em branco', é o músico Leonardo Araújo, de 56. Há exatos 30 anos, o então jovem de 21 anos ficou conhecendo Leo, com seus 25, tocando na banda de rock progressivo Paraíso em Chamas, hoje extinta. “O tempo passou como um susto", sorri o maior colecionador latino-americano de discos da banda Genesis, que há 16 anos se apresenta no Rota 66, dupla cover que recria sucessos internacionais dos anos 1970 e 80.

Também halterofilista nas horas vagas, Fernando de Pinho tornou-se fã do talento de Leonardo no dedilhar da guitarra e do teclado. “Éramos jovens de 20 anos e fiquei admirado de aquele magrelo tocar tão bem, de maneira atrevida, como os melhores músicos”, elogia Fernando que, no entanto, é mais devotado ao Yes. “A banda conseguiu levar o rock progressivo a outro patamar, tanto em matéria de letra quanto de instrumental. Ainda assim se mantendo popular nos anos 1970”, diz ele, comentando, por exemplo, que a canção The gates of delirium é baseada no denso romance Guerra e paz, de Tolstói.

RARIDADES Como recompensa pelo companheirismo, além de conhecer a família do músico, o amigo passou a ter acesso a algumas raridades. Graças a maior desenvoltura na internet, Leo é capaz de conseguir joias como No lombo do canguru, livro que serviu de base para Mike Rutherford, baixista do Genesis, gravar um disco solo. “Ele me arruma livros raros até hoje”, conta Pinho, que empresta os dele a Leo, prova maior de confiança. “Na verdade, nossa amizade se retroalimenta. Para nós e outros fanáticos do rock progressivo, não é preciso usar drogas para atingir um estado de transcendência. Quando você escuta em casa, tranquilo, uma boa música, tudo parece fazer sentido”, compara Pinho.

Naturalmente, depois de décadas de amizade, os compromissos impuseram-se na vida dos amigos, que chegaram a formar uma confraria em torno do gosto musical, mas a maioria foi se distanciando. Passada a juventude, não dava mais para viver em transe, ouvindo música. Era preciso pagar as contas. “Com o avanço da tecnologia, penso que, no futuro, gente como nós, que gosta de vinil e de literatura, terá de ser clonada. Vamos ser tão raros como as araras-azuis”, conclui a dupla, entre gostosas risadas.