Transmissão sexual do zika é ainda mais perigosa, afirmam cientistas dos EUA

Em experimentos com ratos, pesquisa detectou que o vírus fica se replicando na vagina das fêmeas durante vários dias. Segundo eles, o mecanismo potencializa a infecção e pode ocorrer também em humanos

por Paloma Oliveto 30/08/2016 07:08
Um ano após os primeiros relatos de nascimento de crianças com síndrome neurológica associada ao zika, descobertas científicas demonstram que o vírus é muito mais potente do que se poderia imaginar. O micro-organismo — que, em fetos, provoca microcefalia e outros graves danos ao sistema nervoso central — é transmitido pela picada do mosquito infectado e pelo ato sexual. Agora, pesquisadores da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, demonstraram que, em ratos, uma vez instalado na vagina de fêmeas grávidas, ele sobrevive por muito tempo após a infecção, o que faz do zika um patógeno com alto potencial de replicação. O trabalho foi publicado na revista Cell.

O primeiro modelo de infecção vaginal de zika foi desenvolvido pela equipe da imunobióloga Akiko Iwasaki. “Até cinco dias depois de o vírus ter se alojado na mucosa do órgão reprodutor das fêmeas, ele continuava se replicando de forma significativa. De lá, migrou para o cérebro fetal em desenvolvimento”, afirma a pesquisadora. De acordo com Iwasaki, aparentemente, o micro-organismo encontra um nicho ideal de multiplicação na vagina, o que traz importantes implicações para a reprodução.

No Laboratório de Imunologia Celular de Yale, a equipe de Iwasaki vem, há muito tempo, estudando as infecções virais na mucosa genital. Outros micro-organismos, como o citomegalovírus e os causadores de sífilis e herpes, também se alojam no órgão reprodutivo feminino quando transmitidos por um parceiro infectado e, assim como o zika, têm o potencial de provocar defeitos no desenvolvimento do feto. “Quando apareceram as primeiras evidências de que o zika era transmitido sexualmente, começamos a trabalhar em um modelo animal para entender como ele se comporta nesses casos”, diz a bióloga.

Como os ratos parecem imunes ao zika, foi preciso usar animais geneticamente modificados. Nesse caso, os cientistas retiraram os genes que regulam proteínas do sistema imunológico conhecidas como interferons tipo I — essas substâncias são fundamentais para controlar a multiplicação viral em roedores. Para fins de controle, os cientistas infectaram tanto as fêmeas cujo DNA foi manipulado quanto as selvagens, que não sofreram alterações genéticas. Surpreendentemente, o vírus se instalou e se replicou em ambos os grupos — e isso por muitos dias após a infecção. “Em outras rotas de infecção, o zika não replica, a não ser que você bloqueie os interferons tipo I. O que mais nos surpreendeu foi que o vírus conseguiu se multiplicar na vagina de fêmeas selvagens com resposta imunológica intacta”, observa a bióloga.

Além do potencial de reprodução viral, os pesquisadores tinham interesse em rastrear o zika desde o órgão reprodutor feminino até o feto. Eles notaram que, da vagina, o patógeno se espalhou pelo organismo, alcançando o útero. No caso das fêmeas selvagens, não manipuladas geneticamente, houve interferência no desenvolvimento do feto, que ficou mais lento. Já nos ratos mais suscetíveis, cuja resposta imunológica foi bloqueada pelos cientistas, o efeito foi mais devastador. “Ao ultrapassar a placenta e chegar ao feto, os vírus continuaram a se replicar incontrolavelmente. O resultado foram abortos espontâneos”, conta cientista.

Agora, a equipe de Iwasaki está investigando, no modelo desenvolvido em Yale, como bloquear a entrada do vírus pelo trato vaginal. “É possível que um caminho para isso seja o interferon”, diz. Contudo, a cientista lembra que nem sempre o que acontece nos modelos animais é verdadeiro para humanos. “Temos de ser cautelosos quanto a tirar conclusões. Mas, aparentemente, a vagina é um nicho em que o vírus pode se replicar por muito tempo. Esse estudo acrescenta uma peça na compreensão sobre a transmissão sexual do zika. A secreção vaginal pode ser um reservatório para o vírus em humanos, mas vamos precisar avançar com a pesquisa.”

Valdo Virgo / CB / D.A Press
Clique na imagem para ampliá-la e saiba mais (foto: Valdo Virgo / CB / D.A Press)

Microcefalia
Também na Universidade de Yale, um grupo de pesquisadores constatou que a microcefalia associada ao vírus zika, uma das mais dramáticas características físicas da doença, é causada pelo desvio de função de uma proteína-chave para a divisão celular no desenvolvimento fetal. A descoberta, publicada na revista Cell Reports, sugere que o micro-organismo pode ser suscetível a drogas antirretrovirais existentes que previnem a interrupção da formação do sistema nervoso central.

Segundo os pesquisadores, o zika mata células-tronco no cérebro e interrompe o processo de fabricação de novas estruturas. Uma análise mostrou que ele desvia uma forma da proteína TBK1 de sua função primária, que é organizar a divisão celular na mitocôndria, centro de energia, onde ela ajuda a iniciar a resposta imune. Com a falta da proteína, as células morrem, em vez de formarem novos neurônios, o que resulta na microcefalia. Os dados sugerem que esse mecanismo pode contribuir também com a redução do volume cerebral associado a outras infecções virais congênitas, como sífilis.

A equipe observa que a substância sofosbuvir, originalmente desenvolvida para tratamento de hepatite C e já aprovada por órgãos regulatórios, evitou os danos às células-tronco neurais em uma cultura de laboratório. Ela também ajudou a manter a proteína ativa durante a divisão celular. Mais estudos são necessários para provar a eficácia da droga como terapia para o zika. “É urgente identificar abordagens terapêuticas para enfrentar a infecção por zika, especialmente em gestantes”, diz Marco Onorati, primeiro autor do artigo. “Nesse ínterim, esperamos que nossa descoberta leve a tratamentos que minimizam os danos causados pelo vírus.”

Permanência longa em bebê
Estudiosos brasileiros anunciaram, nesta semana, o primeiro caso reportado de infecção prolongada por zika em um bebê. A criança nasceu em janeiro deste ano e permaneceu infectada pelo vírus por dois meses e uma semana de vida. No parto, tinha 48cm de comprimento e perímetro da cabeça de 32,5cm, pouco menor que os 33cm recomendados. Inicialmente, os médicos não detectaram sinais de anormalidade neurológica, mas imagens obtidas por ressonância magnética mostraram focos de calcificação e dilatação anormal no cérebro do bebê, que foi, então, diagnosticado com microcefalia leve. Segundo os médicos da Santa Casa de Misericórdia e os pesquisadores do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo, em seis meses, o pequeno paciente apresentou desenvolvimento psicomotor retardado, que piorou ao longo do tempo, provavelmente como resultado da permanência prolongada da infecção.