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"Buscamos, acima de tudo, a qualidade de vida. Trabalhamos a vida, enquanto ela existe, em uma abordagem multidisciplinar. Há o alívio da dor e dos sintomas, a avaliação dos procedimentos invasivos, mas também se enxerga o paciente como um ser vivo, que tem espiritualidade, que tem uma família que também precisa de apoio", explica Anelise Pulschen, diretora do Hospital de Apoio de Brasília. No hospital, há uma ala dedicada a esse tipo de cuidado, e a maioria dos pacientes são oncológicos. A novidade é uma pequena área inaugurada para cuidado de pacientes geriátricos. O tratamento paliativo não acontece apenas nos últimos dias. É, na verdade, um trabalho que deveria começar com o diagnóstico.
O paciente em cuidados paliativos não necessariamente fica no hospital — alguns recebem atendimento domiciliar, outros comparecem ao hospital apenas para procedimentos. Quando a doença avançou tanto que o que resta é esperar, alguns pacientes preferem ou precisam do hospital para aplacar as dores. Nesse tipo de cuidado, não há UTI, entubação ou ressuscitação. "Não antecipamos nem adiantamos a morte, deixamos acontecer", resume Anelise.
A visão da medicina
Segundo José Hiran Gallo, doutor em bioética e diretor do Conselho Federal de Medicina, a determinação médica hoje é garantir a autonomia do paciente. "Ele tem o direito de decidir se quer o tratamento ou não, e o médico tem que aceitar essa decisão. No caso do paciente incapacitado, se ele designou alguma pessoa para representar suas decisões, as informações serão levadas em consideração. Hoje, estamos preocupados em garantir uma morte digna", afirma. Se o paciente não tem chance de recuperação, ele raramente vai para a UTI. O procedimento padrão é mandar o paciente para a casa, para o aconchego dos familiares, para passar os momentos finais perto de quem ama, com tratamento paliativo.
"O médico não pode dar um tratamento desumano ao paciente que está na fase final. Não se adia a morte por meio de métodos reanimatórios de alguém que está sofrendo sem esperança", explica Hiran. A ortotanásia, que também é conhecida como eutanásia passiva, e que significa, ao pé da letra, morte correta, continua sendo a forma mais indicada para lidar com o paciente que está morrendo.
Perspectiva religiosa
As opções para abreviar a vida também são malvistas pela maioria das religiões. O consenso é o mesmo do suicídio, e só quem pode tirar a vida é quem a deu: o deus de cada religião. Dom Flávio Irala, presidente do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil, explica que as igrejas ainda não têm uma discussão acumulada sobre o assunto, e não há uma posição definida. "Nós valorizamos a vida com qualidade, com plenitude. E somos contrários tudo o que atenta conta isso. É um tema que ainda precisa de muita discussão", afirma.
Para o espiritismo, por exemplo, a provação de viver com a doença e o sofrimento é um tipo de castigo. "O espiritismo considera que as doenças são efeitos relacionados aos ajustes de atentados cometidos contra a lei de Deus. Devemos aproveitar as enfermidades, mesmo as mais graves, como lições, ainda que dolorosas, as quais, sem dúvidas, nos fornecem melhores condições no plano espiritual e nas próximas reencarnações", explica, em nota, a Federação Espírita Brasileira.
Pai Nino Dosumare, da Federação de Umbanda e Candomblé de Brasília e do Entorno, conta que as religiões entendem o assunto de forma parecida com o espiritismo. "Não aceitamos suicídio. Não tem perdão porque um ser superior nos deu a vida. E só ele pode tirar."
Eutanásia e suicídio assistido
Proibidas no Brasil, as duas opções são formas de acelerar a morte, seja por decisão médica, seja por decisão do paciente. A eutanásia é mais polêmica porque, neste caso, o paciente não opina: ou está inconsciente, ou sem lucidez. O médico decide abreviar a vida para acabar com o sofrimento. A linha mais aceita no mundo é o suicídio assistido. O paciente, ainda lúcido, com um mínimo de capacidade motora, toma a decisão e deve ser o responsável pelo ato final — seja tomar um remédio, seja abrir espaço para a via intravenosa.
Em nosso país, eutanásia e suicídio assistido são crimes. "É enquadrado como homicídio, já que há clara intenção de matar. No caso da eutanásia, o homicídio pode ser doloso ou culposo, a depender da conduta do médico. Se injetar uma substância letal, por exemplo, o homicídio é doloso. No caso do suicídio assistido, qualquer pessoa que auxilie ou instigue o suicídio no Brasil está cometendo um crime", explica a advogada Lívia Magalhães, presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-DF. A constitucionalidade da ortotanásia ainda é questionada no âmbito judicial.
Diferentemente do caso dos Estados Unidos, por exemplo, onde o paciente pode firmar um documento declarando que não quer medidas extraordinárias ou que quer que desliguem os aparelhos em caso de coma, o brasileiro não tem essas opções. O paciente pode registrar em cartório, no chamado testamento vital, se quer ou não seguir tratamento no caso de perder as faculdades mentais na decorrência da doença. O procedimento não é previsto em lei, mas é aceito pela classe médica.
O testamento comum não dispõe sobre essas questões, uma vez que só passa a ter validade a partir da morte. "O máximo que se pode fazer é decidir o que fazer com o corpo — se a pessoa quer ser cremada, por exemplo", afirma a advogada.
Dignitas
Uma das clínicas mais controversas do mundo é a suíça Dignitas (cujo lema é "viver com dignidade; morrer com dignidade"), fundada em maio de 1998. Sem afrontar as leis do país, ela oferece aos pacientes com doenças terminais a oportunidade de morrer em seus próprios termos, incluindo aconselhamento pessoal, garantia de que seus últimos desejos sejam cumpridos e suporte legal.
Não é simples ser aceito. É preciso ser um membro da associação, pagar uma taxa, ter um mínimo de mobilidade, ter uma doença terminal, uma deficiência incapacitante ou viver sob dor incontrolável e insuportável. É preciso ainda escrever uma carta pedindo ajuda da clínica, com uma breve biografia e relatórios médicos recentes que falem sobre o diagnóstico, o prognóstico e os tratamentos sugeridos. Quem mora fora da Suíça precisa, ainda, ter disponibilidade para viajar até a clínica. Uma junta médica suíça analisa caso a caso. Não é só ter dinheiro — é preciso se encaixar nas regras. O ato final, de engolir a pílula ou abrir a válvula de acesso intravenoso, deve ser feito pelo paciente. Por isso, o mínimo de mobilidade é necessário.
Como é em outros países
Holanda
O suicídio assistido e a eutanásia são previstos em lei no país, desde que o paciente sofra de uma doença incurável e esteja sentindo dor insuportável que não tenha chance de melhora. O paciente também precisa fazer o pedido de ajuda para morrer estando consciente.
Suíça
O suicídio assistido é permitido desde que os responsáveis pelo acompanhamento não o façam por motivos egoístas. É preciso provar que o paciente sabia do que aconteceria e queria ajuda para morrer. A eutanásia ainda é considerada crime. Não é preciso ser cidadão suíço para passar pelo procedimento.
Bélgica
A eutanásia é permitida desde 2002. Os médicos podem ajudar o paciente a morrer desde que ele tenha uma condição irreversível, em sofrimento mental e físico constante. A relação entre o médico e o paciente precisa ser longa, e é preciso que o paciente manifeste desejo de morrer. Em 2010, a Bélgica se tornou pioneira em eutanásia infantil.
Estados Unidos
A eutanásia ainda é ilegal, mas o suicídio assistido é permitido em alguns estados. O paciente precisa ser maior de idade, ter prognóstico de menos de seis meses de vida, fazer pedido verbal e por escrito diante de uma testemunha e ter o laudo de dois médicos. É prescrito um coquetel de drogas e o paciente deve ingeri-los por conta própria.
Luxemburgo
Desde 2009, permite eutanásia e suicídio assistido nos mesmos moldes da Bélgica.
Alemanha
O suicídio assistido é permitido, mas o país discute alguns projetos de lei para delimitar as regras. É proibido oferecer o serviço, então, empresas não podem auxiliar no processo.
Canadá
O suicídio assistido é permitido. Contempla apenas adultos em sofrimento físico e mental prolongados, portadores de doenças incuráveis. A lei só é válida para canadenses natos e estrangeiros residentes no país.
Colômbia
É o único país da América Latina que permite o suicídio assistido. É preciso que o paciente seja portador de uma doença terminal, esteja em sofrimento e faça o pedido consciente.
Entrevista // Betty Milan
No livro A mãe eterna - morrer é um direito, da escritora e psicanalista Betty Milan, a autora conta uma história ficcional baseada na própria vida. Betty lida com a mãe de 98 anos, que já não enxerga bem, quase não escuta e come muito pouco, além de ter muita dificuldade de locomoção. Nas páginas do livro, a protagonista conta como é se tornar mãe da própria mãe e fala sobre suicídio assistido e o direito à própria morte. Em entrevista à Revista, Betty afirma: "Ainda não sabemos lidar com a morte".
Como é lidar com a sua mãe nessa situação e ver uma mulher forte se tornar frágil?
Meu livro foi inspirado pela dificuldade de passar da condição de filha para a de mãe da mãe. Nessa passagem, perdemos o protetor, a pessoa que nos escuda contra a morte. Em outras palavras, passamos para o front, ficamos expostos, na linha de frente. Nesse momento, é preciso ter coragem para ajudar a pessoa e para se ajudar. O livro foi o meu ato de coragem. Acho que o sucesso dele se explica pelo fato de a narradora dizer o que normalmente ninguém diz e pelo fato de as pessoas se reconhecerem no que ela diz.
Como é a convivência de vocês hoje em dia?
Quando escrevi o livro, minha mãe estava relativamente bem, mas não a ponto de poder fazer o que bem entendesse como fez a vida inteira.Tinha limitações físicas que a impediam de sair sozinha na cidade. Andava com dificuldade, escutava pouco e enxergava mal. De repente, ela saía, correndo o risco de ser atropelada. Tive que aprender a por limites com delicadeza. Percebi que é inútil se opor frontalmente ao idoso, que tende a dizer não para afirmar a sua independência.
O que a sua mãe pensa sobre esse fim da vida? Ela gostaria de ter a opção de morrer quando quisesse e nos seus termos?
A minha mãe é uma mulher quase centenária e, para a geração dela, a morte tem que acontecer quando já não é mais possível viver. Isso, na prática, pode significar uma vida com sofrimento físico e sem autonomia. Minha mãe quer a morte natural e esta vontade será respeitada. Cada um tem o direito de escolher o seu fim. Só que, enquanto as pessoas não forem educadas para escolher o desapego, antes de que a vida se torne indigna, elas não conseguirão fazer essa escolha — ficarão nas mãos de Deus e do médico, cuja tendência é a de prolongar indefinidamente a vida. No livro, eu trato dessa tendência, que é decorrente do narcisismo do médico que deseja vencer a morte.
Você é a favor do suicídio assistido e da eutanásia? Por quê?
A eutanásia e o suicídio assistido são diferentes. No primeiro caso, não é o próprio paciente que escolhe — é uma outra pessoa — e eu não preconizo a eutanásia. Sou favorável ao suicídio assistido, pois o que importa, do meu ponto de vista, não é a vida biológica, que pode ser prolongada indefinidamente e, sim, a vida vivida na sua plenitude. É por ela que devemos lutar.
Sendo a favor do suicídio assistido, como se sentiria se a sua mãe quisesse essa opção?
Minha mãe viveu 98 anos com saúde. Se a opção dela fosse ir embora com a ajuda de um médico, eu não me oporia.
Acha que o debate sobre a eutanásia ainda é pouco levado a sério? Por quê?
Que eu saiba, o único país onde a questão da eutanásia foi seriamente debatida é o Canadá. O debate é censurado pela Igreja e pelos médicos. Mas vai surgir no planeta inteiro quando não for mais possível prolongar indefinidamente a vida por razões econômicas. Hoje em dia, uma grande parte da verba destinada à saúde se destina aos três últimos meses de vida, o que é uma aberração quando há tantas crianças morrendo de fome no mundo inteiro.
Acha que, como sociedade, não somos preparados para lidar com a morte?
Cada época lidou com a morte de uma determinada maneira. A nossa tende a afastar a pessoa que vai morrer e deixá-la morrer sozinha no hospital, ou seja, tende a separar a morte da vida, negar a morte. Isso é um grande malefício.