“O Estado autoriza a profissão, mas não dá a estrutura para que os profissionais trabalhem. É como ser uma professora e não poder trabalhar na escola”, compara a pesquisadora Laura Murray, pesquisadora do Observatório da Prostituição da UFRJ. De acordo com esse ponto de vista, fazer com que as prostitutas trabalhem sozinhas, sem a estrutura de uma boate, é deixá-las vulneráveis a toda sorte de violência. Isso porque elas acabam tendo que trabalhar em ambientes hostis, entrar nos carros de clientes e se expor a situações perigosas.
Para Laura, é possível comparar a prostituição com qualquer outra profissão, principalmente diante do discurso de que as mulheres escolhem esse ofício por falta de opção. “O que mais escuto são histórias de mulheres que saíram de trabalhos em que se sentiam mais exploradas. É uma escolha feita dentro de um esquema de desigualdades, ponderando objetivos e prioridades. O mundo tem desigualdade de gênero e é complicado para uma série de profissões desvalorizadas. ”, explica.
Segundo Relatório Mundial sobre a Exploração Sexual, da Fundação Scelles, 42 milhões de pessoas se prostituem no mundo. A pesquisa que deu origem ao documento foi realizada em 24 países e, provavelmente, é a maior sobre o tema. Embora grandiosa, ele não contabiliza casos de agressão física, psicológica e sexual a essas pessoas. Nesse ponto, há uma grande cisão no debate público. De um lado, há quem esteja preocupado em manter a profissão livre das situações de vulnerabilidade e violência. Do outro, ativistas da ideia de que a prostituição em si é o problema, pois explora as mulheres ao tratar seus corpos como objeto do desejo masculino. Essa posição se vale do fato de que a maioria dos profissionais do sexo é do gênero feminino.
A Copa e as Olimpíadas deixaram a vida dessas profissionais ainda mais complicada. “Por conta dos megaeventos, elas ficaram obrigadas a trabalhar em lugares mais escondidos para que os turistas não as vejam, lugares com menos segurança, mais perigosos”, avalia Laura Murray. Por isso, o Comitê Popular Rio Copa e Olimpíadas e a Marcha das Vadias promoveram, no mês passado, o debate Turismo sexual e Olimpíadas: quebrando tabus. Os idealizadores do evento queriam falar justamente do impacto das políticas “higienistas”, com ênfase no direito de as prostitutas atenderem os turistas. O encontro, porém, recebeu forte reação de setores do feminismo, que, nas redes sociais, acusaram os organizadores de fazer apologia ao turismo sexual.
RadFem
O chamado feminismo radical, ou RadFem, é uma das correntes mais críticas do movimento contra o machismo. Ele se opõe ao feminismo liberal e prega que a divisão entre gêneros é um fenômeno pautado na misoginia. Em linhas gerais, o feminismo radical é contrário à pornografia e à prostituição.
Em todo o mundo
A Anistia Internacional se posiciona a favor de uma política de apoio aos direitos humanos das pessoas envolvidas com o trabalho sexual e apoia as demandas em prol da descriminalização dessas atividades. No ano passado, tal posicionamento, no entanto, motivou resposta de atrizes norte-americanas, como Lena Dunham (estrela da série Girls), Meryl Streep, Kate Winslet e Anne Hathaway. Em carta, elas afirmaram que apoiar a descriminalização seria apoiar um “sistema de apartheid de gênero”, em que “uma categoria de mulheres pode obter proteção contra a violência sexual e o assédio sexual”, mas aquelas que são forçadas contra sua vontade para trabalhar no comércio do sexo são “separadas para o consumo pelos homens”. Em maio deste ano, a Anistia Internacional publicou um relatório com o estudo de caso da Noruega, Argentina, Hong Kong e Papua-Nova Guiné. A conclusão é que punir a atividade “reforça a marginalização, o estigma e a discriminação, podendo negar às pessoas que se dedicam ao trabalho sexual o acesso à Justiça”. Na Noruega, o cliente é criminalizado, mas a prostituta não. No Japão, ocorre o mesmo que no Brasil: não pode rufianismo. Na Argentina, falta regulamentar o ofício. Já a Papua Nova Guiné proíbe qualquer forma de prostituição. Os quatro países apresentam altas taxas de violência contra profissionais do sexo. Na Noruega, muitas profissionais disseram que gostariam de trabalhar juntas para garantir mais segurança, mas isso poderia ser interpretado como prostituição organizada, passível de punição.
Agressão a prostitutas em números
41%
disseram ter sofrido algum tipo de agressão.
Dessa porcentagem,
30%
relataram violência física;
61%
violência psicológica e
9%
sexual.
Fonte: Revista Brasileira de Enfermagem, edição 65, 2012. Os dados foram colhidos na Associação da Porfissionais do Sexo do município de Picos (PI). Na ocasição, 450 mulheres foram entrevistadas em 850 pontos de prostituição.
Trabalho como qualquer outro
"É uma forma de nos tirar da clandestinidade, de nos igualar a qualquer outro trabalhador" - Carmem Lúcia Paz, 51, cientista social, prostituta há 32 anos - Foto: Arquivo Pessoal Há quem encare a reivindicação por mais direito aos profissionais do sexo mais como uma luta da classe trabalhadora do que como uma luta feminista. Carmem Lúcia Paz, 51, cientista social, prostituta há 32 anos, uma das lideranças da Rede Brasileira de Prostitutas e fundadora no Núcleo de Estudos da Prostituição (NEP) em Porto Alegre, vê a regulamentação do ofício de profissional do sexo como um direito de classe. “É uma forma de nos tirar da clandestinidade, de nos igualar a qualquer outro trabalhador”, afirma.
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Trabalho como qualquer outro
Criado em 1989, o NEP trabalha com a autoestima, a cidadania e a saúde das prostitutas, fornecendo informações sobre seus direitos e sobre a regulamentação da profissão. Para ela, é interessante entrelaçar as lutas feministas com as das prostitutas, mas nem toda feminista concorda com isso. “Em 2006, em encontro no Peru, iniciamos essa discussão junto do movimento de mulheres, que lá é muito forte. Lá, diferentemente daqui, prostitutas e feministas têm trabalhado em conjunto. Aqui, nós não conseguimos isso ainda”, lamenta.
Para Carmen, esse apoio mútuo faz sentido porque até as feministas mais radicais lutam pela liberdade sexual. O direito ao trabalho sexual seria um aspecto dessa luta. “Acreditamos que nós temos o direito de usar o nosso sexo para ganhar dinheiro. Tu podes usar o teu sexo para o que tu quiseres, e nós queremos usar o nosso para ganhar dinheiro. Então, ele tem que ser visto como um direito. A sexualidade é um direito, seja ela exercitada para ganhar dinheiro, de graça ou por amor. Eu tenho esse direito de escolha”, enfatiza.
Posição semelhante defende Carolina Costa Ferreira, doutora em Direito, Estado e Constituição pela UnB, líder do grupo de pesquisa Criminologia do Enfrentamento e professora de direito penal e processual penal do UniCeub. “A luta pela regulamentação da prostituição é, em primeiro lugar, uma luta de uma classe trabalhadora, que tem direito aos benefícios sociais como qualquer outra categoria, consideradas as suas especificidades — mais acesso a políticas de saúde pública, aposentadoria regulamentada, por exemplo. Em primeiro lugar, a ideia de que a luta é de uma classe trabalhadora passa pelo fato de que a prostituição não é exercida apenas por mulheres, mas também por homens”, explica. “Sob o ponto de vista dos feminismos, a regulamentação da prostituição é uma pauta que, em minha opinião, merece apoio, pois se trata de uma profissão que lida com a liberdade sexual”, completa.
Com o mercado de trabalho muito fechado para elas, algumas transsexuais veem na prostituição uma saída. Mas não só isso. Para a prostituta transgênero Amara Moira, 31 anos, doutoranda em literatura pela Unicamp, o trabalho sexual foi uma alternativa que lhe supria a necessidade, não só financeira, mas afetiva. “É na prostituição que as pessoas se permitem me desejar e revelar esse desejo. Era lá que me elogiavam. Teve algo muito forte de carência. Era o único lugar onde eu me sentia desejada”, conta.
Por experiência própria
Desde os 19 anos, Monique Prada atua como prostituta em Porto Alegre. A escolha não foi fácil, mas ela compara a outras, como catar lixo ou fazer trabalho doméstico, também difíceis. “Considero que há uma condição mais empoderadora no trabalho sexual. Parece melhor trabalhar com sexo, mas todo trabalho tem seu lado complexo”, avalia. Tornou-se ativista pelos direitos das prostitutas por volta de 2010. Em 2012, criou o site Mundo Invisível, em que escreve sobre questões relativas à prostituição e também publica textos de terceiros.
Desde os 19 anos, Monique Prada atua como prostituta em Porto Alegre - Foto: Arquivo Pessoal
Na opinião dela, a legislação brasileira isola as profissionais do sexo e a expõe a riscos. Realista, ela não acha que o PL Gabriela Leite tem condições de passar no Congresso. “Para a tranquilidade geral da nação e segurança da família brasileira, eu não acredito que esse PL seja aprovado. Tem muito mais chance de passar o PL nº 377, de 2011, proposto por João Campos (que criminaliza a contratação de serviços sexuais)”, lamenta.
Entre as coisas que avalia como erradas na forma atual de se encarar a prostituição no Brasil, ela cita a contradição entre a Constituição de 1988 e o Código Penal. “Ela garante que qualquer trabalhador se organize em cooperativas, mas o código diz que, se duas prostitutas se unirem para alugar um local de trabalho, configura que uma está explorando a outra”, critica. Para ela, a legislação brasileira deixa as profissionais isoladas e as expõe a riscos.
Monique diz que as feministas radicais querem apenas calar as prostitutas, como se elas não fossem capazes de opiniões próprias e posicionamentos políticos. Acredita que, no fundo, há um moralismo mal disfarçado. “A defesa delas para o fim da prostituição é a partir de uma posição privilegiada — com muito mais escolhas do que nós jamais tivemos. Nunca esteve ao meu alcance ser médica ou prostituta. Mas havia outras opções, e eu escolhi ser puta”, argumenta.
O que o Estado tem a ver com isso
Em março deste ano, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que uma prostituta poderia requerer judicialmente o pagamento dos serviços prestados. O Tribunal de Justiça do Tocantins havia decidido que o compromisso de pagar por sexo não seria passível de cobrança judicial, com a justificativa de que a prostituição não é uma atividade que deva ser estimulada pelo Estado.
“Não se pode negar proteção jurídica àqueles que oferecem serviços de cunho sexual em troca de remuneração, desde que, evidentemente, essa troca de interesses não envolva incapazes, menores de 18 anos e pessoas de algum modo vulneráveis e que o ato sexual seja decorrente de livre disposição da vontade dos participantes”, afirmou o ministro Rogerio Schietti Cruz em seu voto. Ele salientou que o Código Brasileiro de Ocupações de 2002, do Ministério do Trabalho, menciona a categoria dos profissionais do sexo, o que “evidencia o reconhecimento, pelo Estado brasileiro, de que a atividade relacionada ao comércio sexual do próprio corpo não é ilícita e, portanto, é passível de proteção jurídica”.
Atento às violações sofridas pelos profissionais do sexo, o deputado Jean Wyllys (PSol-RJ) apresentou, em 2012, à Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 4.211, conhecido como PL Gabriela Leite, que regulamenta a profissão de prostituta. A troca de legislatura havia levado a seu arquivamento, mas, em 2015, foi solicitado o desarquivamento. Na ocasião, o então presidente da Casa, Eduardo Cunha, determinou a formação de Comissão Especial para analisar o texto, porém, a maioria das bancadas não indicou membros. Na entrevista abaixo, Wyllys conta à Revista como foi o trâmite do PL. E explica a importância dele.
Filha, mãe, avó...
Autora do livro Filha, mãe, avó e puta — A história de uma mulher que decidiu ser prostituta, Gabriela Leite foi uma destacada lutadora pelos direitos das prostitutas brasileiras. Nasceu em 1951, em São Paulo, numa família de classe média, e morreu em 2013. Quando morava em Belo Horizonte, trocou a faculdade de sociologia pela prostituição. Mais tarde, mudou-se para o Rio de Janeiro. Nos anos 1990, Gabriela fundou a ONG Davida para defender os direitos das prostitutas e promover eventos culturais. Em 2005, criou a grife Daspu, cujas peças fizeram muito sucesso.
"Muita gente critica o projeto sem falar com as prostitutas, como se elas não tivessem o direito de ser ouvidas" - Foto: Como foi o processo de elaboração do PL Gabriela Leite? Com quem você conversou?
Na visão de Amara Moira, as transgêneros são as mais vulneráveis entre as profissionais do sexo - Foto: Alle Manzado / Divulgação
Trangêneros na lutaEntrevista
Jean Wyllys
Jean Wyllys
Durante a minha primeira campanha como candidato a deputado, recebi o pedido do movimento organizado das prostitutas, que era liderado por Gabriela Leite, para conversar com elas sobre essa reivindicação histórica da categoria. Elas me explicaram que a falta de uma regulamentação legal do trabalho sexual as deixava totalmente desprotegidas, principalmente no caso das prostitutas mais pobres. Eu prometi que, se fosse eleito, levaria essa pauta ao Congresso. Elas me disseram que tinham me escolhido porque sabiam que outros parlamentares ficariam com medo de “defender prostitutas”, porque seriam estigmatizados por isso. Quando fui eleito, me encontrei novamente com elas e começamos a trabalhar. A decisão final sobre o texto foi do movimento. Elas o debateram em encontros presenciais em diferentes estados e também por grupos de e-mails. Acatei as propostas por uma razão muito simples: não sou mulher e nunca fui garoto de programa, portanto, não tenho a experiência concreta de vida que elas têm. Muita gente critica o projeto sem falar com as prostitutas, como se elas não tivessem o direito de ser ouvidas. Tinha aspectos do problema que eu não conhecia. Não entendia, por exemplo, a importância de regulamentar o funcionamento das casas de prostituição.
Legalizar as casas de prostituição é legalizar a figura do cafetão ? Não significaria autorizar a exploração das prostitutas?
Não. O cafetão pode existir sem as casas, controlando, por exemplo, a prostituição numa determinada rua, num espaço público ou até num local fechado que não é considerado casa de prostituição, como uma boate. Tudo isso existe. E também pode ter casa de prostituição sem cafetão. Por exemplo, mediante a formação de uma cooperativa, algo previsto no projeto. O mais importante é entender que a proibição não impede que as casas de prostituição continuem funcionando, da mesma maneira que a criminalização da maconha não impede que ela continue sendo vendida. Em todas as cidades do Brasil, há casas de prostituição e elas têm até site na internet. Elas funcionam porque pagam propinas às autoridades ou estão disfarçadas de sauna, bar, pub, casa de shows etc. Com as casas funcionando na ilegalidade, as prostitutas e os garotos de programa que trabalham nelas não têm nenhum direito, ficam desprotegidos e submetidos a todo tipo de abuso. Legalizar e regulamentar permite controlar e fiscalizar. Isso cria melhores condições para combater a exploração e permite estabelecer regras para que os trabalhadores e as trabalhadoras sexuais tenham direitos, como qualquer outro.
Quais as principais barreiras para a aprovação?
Em primeiro lugar, os argumentos moralistas, daqueles que acreditam que a prostituição é pecado. Também há setores do feminismo e da esquerda que dizem que o trabalho sexual é uma forma de mercantilização do corpo, como se outros trabalhos socialmente aceitos não implicassem também a mercantilização de outras partes do corpo diferentes da genitália. Nesse último grupo, tem gente com uma visão paternalista da função do Estado, que acha que ninguém deve ter direito de escolher a prostituição como forma de trabalho porque é uma escolha ruim. Contra esses argumentos, defendidos por parte da esquerda, eu tenho uma posição liberal, no sentido de defender as liberdades individuais e o direito de escolha. Por isso mesmo, defendo que o Estado deva ter políticas públicas para impedir que um determinado grupo social seja obrigado a exercer a prostituição como único emprego possível, como acontece a grande parte das pessoas trans; porque aí também estamos negando o direito de escolha. Eu sou liberal para defender a legalização do aborto, das drogas ou do trabalho sexual pela mesma razão: “Meu corpo, minhas regras”.
Com o mercado de trabalho muito fechado para elas, algumas transsexuais veem na prostituição uma saída. Mas não só isso. Para a prostituta transgênero Amara Moira, 31 anos, doutoranda em literatura pela Unicamp, o trabalho sexual foi uma alternativa que lhe supria a necessidade, não só financeira, mas afetiva. “É na prostituição que as pessoas se permitem me desejar e revelar esse desejo. Era lá que me elogiavam. Teve algo muito forte de carência. Era o único lugar onde eu me sentia desejada”, conta.
Há dois anos, Amara trocou o guarda-roupa e começou a construir sua identidade feminina. Antes de se tornar prostituta, conta que já era reconhecida como tal. “Noventa por cento das travestis estão na prostituição — não a que paga R$ 300 por programa, mas a que paga migalha. Isso faz com que o trabalho seja precário. Nesses termos, é claro que muita gente se sente violentada na profissão, mas não são condições intrínsecas a ela. É possível melhorar. A precariedade não tem que ser pra sempre”, garante.
Amara argumenta que o único caminho para pessoas como ela é “comprar” a cidadania. Por isso, luta por melhores condições de trabalho em todos os tipos de prostituição, sempre fazendo a ressalva que travestis e transgêneros são os menos valorizados. “A transfobia é muito forte no país. Um homem não liga de estacionar o carro na frente de uma casa de prostituição, mas se for de travesti, não tem coragem. Tem medo de o carro ser fotografado. A prostituta, quando é travesti, tem que atender o cliente de forma mais discreta que a mulher cis (não-travesti): no escurinho da praça, no beco, no mato, no carro, num lugar deserto. São elementos que as deixam vulneráveis”, pondera.
São esses fatores que levam Amara a apoiar a prostituição dentro de boates especializadas. Ali, pelo menos, haverá um mínimo de segurança. “Hoje, se alguém ganha em cima da prostituição alheia, é criminoso. Mas os cafetões não são presos porque são fonte de renda extra pra polícia. Quem paga a conta das propinas são as prostitutas, vivendo em condições mais precárias”, denuncia.
"Hoje, se pretende da mesma forma naturalizar a prostituição, por um lado afirmando sua perenidade na história (a mais antiga profissão do mundo) e, por outro, classificando-a como um 'trabalho', uma profissão" - Foto: Arquivo Pessoal Professora aposentada do Departamento de História da UnB, Tania Navarro Swain criou, ao lado de Diva do Couto Gontijo e outras colegas, um doutorado e um mestrado, o primeiro do Brasil, em Estudos Feministas. Ela também é editora da revista digital Labrys, (www.labrys.net.br). Feminista radical, Tania acredita que “enquanto houver uma só mulher prostituída, o feminismo não terá atingido seus objetivos”. Ela explica que o feminismo radical procura as raízes da exploração, inferiorização e dominação das mulheres, sendo que a prostituição é um dos pilares do sistema patriarcal.
Entrevista
Tania Navarro Swain
Tania Navarro Swain
Por que a prostituição é recriminada pelas feministas mais radicais?
Hoje, se pretende da mesma forma naturalizar a prostituição, por um lado afirmando sua perenidade na história (a mais antiga profissão do mundo) e, por outro, classificando-a como um “trabalho”, uma profissão. Ora, a primeira asserção distorce a narrativa do primeiro manuscrito conhecido na história, a epopeia de Gilgamesh. Nela, uma sacerdotisa vem socorrer Gilgamesh ferido. À época, as sacerdotisas realizavam o casamento ritual com um desconhecido, e os historiadores classificaram-na como prostitutas segundo seus próprios valores e padrões. Esta é uma forma de ancorar essa atividade na tradição universal. Por outro lado, considerar a prostituição um “trabalho” não serve para dignificar a atividade, apenas para denegrir o que seria o trabalho em si. Não existem prostitutas, existem mulheres prostituídas por homens para o gozo e uso dos homens. Prostituir significa transformar um sujeito em mercadoria. Significa destituir esse sujeito de sua integridade humana, transformando-o em orifícios a serem usados, comprados e vendidos. Prostituir significa a exploração paroxística das mulheres, tornando-as corpos a serem manipulados, trocados, disponíveis para todas as fantasias e para todos os abusos de poder. Prostituir é transformar mulheres em coisas, e, sobretudo em sexo, no exercício de uma sexualidade cuja característica principal é a violência. Comprar uma pessoa e dela dispor não é senão outra face da escravidão. Considerar a prostituição um trabalho ou uma profissão é criar uma justificativa para essa violência, assegurando a “liberdade” de exercê-la. Assim os homens se tranquilizam e podem usar as mulheres prostituídas como bem lhes aprouver, sem condenação social.
Mas há também feministas que são a favor da regulamentação da profissão…
Infelizmente, essa perspectiva é corroborada por muitas feministas, elas mesmas aparentemente submetidas à ordem patriarcal, à ordem do falo, que se tornam assim cúmplices dessa iniquidade. A liberdade de se prostituir é uma falácia, pois talvez exista um punhado de mulheres prostituídas que escolheram sê-lo. Tudo pode existir. Ou seja, uma minoria da minoria e, a partir disso, estende-se a “liberdade” de escolha a milhões de mulheres que são prostituídas desde a tenra infância. O estupro na infância e na adolescência e o abuso sexual são companheiros incontornáveis da grande parte das mulheres prostituídas. Ninguém vai me dizer que meninas prostituídas nas estradas vão ser dignificadas pela legalização da prostituição. Vão apenas ser mais exploradas e vilipendiadas sem nenhum obstáculo para os homens, seus “clientes”. Acredito que mulheres permaneçam nessa atividade por serem obrigadas a continuar, ou por não verem saída para suas vidas, em um emprego com um salário digno. O que as feministas radicais postulam é justamente o auxílio prestado às mulheres que queiram sair dessa situação, e a ilegalidade da demanda por mulheres prostituídas.
A regulamentação não representaria o fim da condição degradante da atividade e do estigma em relação às profissionais?
O que interessa não é o fim do estigma, mas o fim da atividade. De toda forma, a legalização da prostituição não abolirá o estigma, que atinge apenas as mulheres e não os clientes. É um contrassenso querer a abolição do estigma, quando a atividade é a mais degradante possível. Pode-se legalizar a escravidão, o casamento forçado de meninas com velhos pedófilos, nem por isso deixam de ser degradantes. Nessa atividade, as mulheres são apenas vasos para depositar as dejeções dos homens. E que, fora desse quadro, são homens de bem, pais, maridos, irmãos, de todas as profissões “respeitáveis”. A legalização é uma tranquilidade para os homens e uma cumplicidade evidente com o patriarcado. Nos lugares em que a prostituição é legalizada, a situação ficou ainda mais crítica e discriminadora. As prostitutas ainda passam a pagar impostos para o estado patriarcal. Acredito que a prostituição seja a maior das violências contra a mulher, pois institucionaliza e justifica o estupro.
A luta pela regulamentação da profissão não é legítima?
A regulamentação da prostituição é uma luta para a manutenção do poder dos homens sobre as mulheres, de sua redução a um sexo e um corpo disponível, de sua negação enquanto sujeito de plena cidadania. O projeto de lei Grabriela Leite é uma aberração, uma justificação e incentivo à prostituição, como se fosse um profissão “limpa” e digna. Nada justifica regulamentar uma exploração iníqua, mesmo se as feministas cúmplices sejam suas defensoras. Feminismo é a promoção das mulheres em todas as instâncias da sociedade, e a regulamentação da prostituição relega parte dela aos esgotos sociais. Não se pode ser feminista e apoiar a legalização da prostituição. É incompatível.
Como as feministas mais radicais encaram as prostitutas ativistas?
Vejo este ativismo como uma maneira de justificar suas atividades aos olhos de outrem e aos seus próprios olhos. É buscar uma dignidade onde ela não existe, pois como já disse, a prostituição retira das mulheres sua condição de sujeito político, de sujeito tout court. As mulheres prostituídas procuram na legalização da atividade um aumento de autoestima, de promoção social, que nunca lhes será dado por meio de uma lei. No imaginário social, a mulher prostituída é culpada de sua situação e sua degradação é parte intrínseca de sua representação. O maior insulto é, com legalização ou não, “filho da puta”. Nesse sentido, as feministas radicais recusam a cumplicidade com o patriarcado e lutam para que as mulheres prostituídas encontrem um caminho de promoção social.