Incorporar o tema nos colégios não é fácil.
A mobilização foi organizada por 16 entidades ligadas a causas feministas e de defesa da criança e do adolescente. O estopim foi o caso da menina estuprada por mais de 30 homens no Rio de Janeiro. Uma semana depois do crime praticado na capital carioca, Brasília se tornou cenário para a mesma barbárie. Três meninas, de 11, 13 e 15 anos, em locais diferentes do DF, foram estupradas por mais de dois homens.
Quando o assunto entra na pauta em alguma escola, logo é questionado. Um professor do Centro Educacional 6 de Ceilândia passou um trabalho no qual os alunos deveriam debater temas como homofobia, integração de gênero, pansexualidade, relações poliamorosas e transexualidade. Um pai reclamou e deputados distritais pediram esclarecimentos à direção e “providências legais cabíveis”. Uma das parlamentares disse que a atitude era para “defender os valores da família”.
Apesar disso, o governo e a Justiça reconhecem a necessidade de falar sobre o tema. O Tribunal de Justiça do DF e dos Territórios (TJDFT) criou o projeto Maria da Penha vai à escola com o objetivo de tratar do tema. Recentemente, o governo iniciou o Por Dentro da Lei Maria da Penha. Justamente para levar para dentro das salas de aula informações sobre violência contra a mulher, direitos e deveres e igualdade de gênero. “Enquanto houver uma pessoa que desconheça essa lei, a efetividade e a importância dela, não cessaremos esse projeto”, avaliou a subsecretária de Política para as Mulheres e palestrante do projeto, Lucia Bessa.
Em casa
Na casa da arquiteta Eliana Santoni, 46 anos, o papo é sério. São duas meninas, gêmeas, Julia e Luiza, 7, e um menino, Miguel, 13. Entre eles, o maior princípio é o da igualdade. Dessa maneira, não faça com os outros o que você não gostaria que fizessem com você. Com essa premissa, Eliana ensina que ninguém pode xingar, bater ou ofender ninguém.
O assunto doméstico mais recente foi o da atriz Luiza Brunet, que denunciou, na última semana, agressões do marido. Eliana mostrou a foto para Miguel. “Ele virou para mim e perguntou se alguém teria coragem de fazer aquilo. Eu disse que tinha e que faziam ainda pior. Mostro, falo que é errado e que não é só entre namorados. É no geral”, afirma Eliana. “Se eu não tratar disso com eles, aparecerá de uma forma muito pior. A violência é cultural, questão de educação. Não tem outra forma de combater, senão educando melhor”, defende a arquiteta.
Exemplo
A atitude de uma mãe de Porto Alegre repercutiu nas redes sociais na última semana. Foram mais de 50 mil reações ao post que ela fez com uma foto do filho, Diogo, 4, com um vaso de flores nas mãos. Tavane Corrêa Carvalho, 27, buscou a criança na escola e, lá, a professora avisou que ele tinha empurrado uma coleguinha na escada. Ambos seguiam em fila, e ele a empurrou para passar. Ninguém se machucou, mas a atitude não passou batida. Tavane conversou com Diogo, colocou-o de castigo e, no dia seguinte, comprou o presente para ele entregar, como pedido de desculpas, à coleguinha.
“Foi a primeira vez que isso aconteceu. Pensei e conversei com ele, sério. Pedi para que me olhasse nos olhos e expliquei que não podia bater, empurrar os colegas. E ressaltei a questão das meninas. Ele pediu desculpas, rezou, mas não amoleci, mantive o castigo. No outro dia, ele escolheu a cor das flores, abraçou a garota e se desculpou”, conta. Tavane vem de uma família majoritariamente de mulheres. São 13 filhas e a mãe. Só Diogo de menino. “Aqui, não aceitamos nada, nenhuma dessas atitudes violentas de homem para mulher. Tenho isso em casa e passo para ele. Ninguém nasce batendo em mulher. Desde criança é que moldamos os adultos”, justificou.
Para a socióloga Lourdes Bandeira, não existe um caminho para a transformação cultural, mas há métodos que devem ser criados de acordo com cada grupo, respeitando as diferenças. “O que precisa como elemento constitutivo é considerar a diversidade. As crianças têm todos esses aspectos, racial e socioeconômico, por exemplo. Uma questão que estão discutindo equivocadamente é a da ideologia de gênero. Não existe isso. O que existe é uma sociedade que é composta pela pluralidade”, indica Lourdes.
Juiz Ben-Hur Viza, um dos coordenadores do Centro Judiciário da Mulher do TJDFT e do projeto Maria da Penha vai à escola
Quando o projeto foi criado?
Em julho de 2014, a partir de várias experiências e atividades com alunos das escolas públicas de diversas idades. Dessas experiências, percebeu-se a necessidade de se estruturar um projeto que pudesse formar e instrumentalizar os profissionais da educação sobre a Lei Maria da Penha a fim de que as intervenções e discussões com os alunos fossem mais efetivas.
Qual é a importância de falar sobre violência doméstica com crianças e adolescentes?
No que diz respeito à prevenção, a prioridade é desconstruir a cultura machista e do patriarcado. Quanto ao enfrentamento, são realizadas oficinas e reuniões de trabalho que possibilitam a construção de um diagnóstico quanto à aplicação da norma e à proposição de soluções.
Quais mudanças poderemos ter na sociedade com esse tipo de projeto?
Espera-se que a nova geração não repita os estereótipos da cultura machista, refletindo em uma redução significativa de todas as formas de violência e em uma sociedade de paz em casa. Além disso, o projeto estimula a articulação da rede de proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar, possibilitando que um maior número de atores participem no sistema de enfrentamento e prevenção.
ARTIGO
Por uma vida sem violência e desigualdade
Por Soraia Mendes
A Lei nº 11.340/2006, a Lei Maria da Penha, que, no próximo mês, completa 10 anos de existência, representou (e representa) um avanço no sentido de coibir e, quiçá, erradicar a violência doméstica e familiar contra as mulheres. Por outro lado, nenhuma lei, por si só, tem o condão de mudar uma cultura de violência que se perpetua ao longo da história, menos ainda se esta for usada somente sob a perspectiva criminal. Felizmente, a Lei Maria da Penha é mais do que isso.
A norma diz que a política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações a envolver todos os entes da Federação, bem como por ações não-governamentais, que tenham por diretrizes, entre outras, a promoção e a realização de campanhas educativas de prevenção voltadas ao público escolar e à sociedade em geral.
Isso, sim, muda a realidade! Fomenta uma cultura de paz e igualdade que toma as diferenças entre homens e mulheres como algo benéfico, e não como o elemento capaz de estabelecer desigualdades por meio de relações de poder baseadas no gênero, ou seja, no modo de agir esperado tanto de mulheres quanto de homens, na família ou na sociedade.
Não é admissível que, em pleno século 21, ainda sejamos espectadores e espectadoras da submissão do feminino ao masculino como se um ato de violência pudesse ser considerado, como recentemente definiu o agressor acusado no caso envolvendo a modelo Luiza Brunet, “um episódio ocorrido na intimidade”. Mudar esse estado de coisas é preciso! E a mudança começa quando, por exemplo, a “Maria da Penha vai à escola”, e, em uma conversa sincera com crianças e adolescentes, mostra a eles e a elas que somos diferentes, mas que nossas diferenças não justificam que os meninos sejam criados para fazer valer sua “masculinidade”, mesmo que (ou quase sempre) por meio da violência, e que as meninas devam aprender a calar ao serem agredidas, em nome do que quer que seja.
Uma vida sem violência e desigualdade é possível, e isso só depende do que fazemos hoje em prol daqueles e daquelas que vieram, e virão, depois de nós.
Soraia Mendes é doutora em direito pela Universidade de Brasília (UnB), mestre em ciência política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS), pesquisadora do tema violência doméstica e familiar contra as mulheres, professora e advogada.
A norma diz que a política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações a envolver todos os entes da Federação, bem como por ações não-governamentais, que tenham por diretrizes, entre outras, a promoção e a realização de campanhas educativas de prevenção voltadas ao público escolar e à sociedade em geral.
Isso, sim, muda a realidade! Fomenta uma cultura de paz e igualdade que toma as diferenças entre homens e mulheres como algo benéfico, e não como o elemento capaz de estabelecer desigualdades por meio de relações de poder baseadas no gênero, ou seja, no modo de agir esperado tanto de mulheres quanto de homens, na família ou na sociedade.
Não é admissível que, em pleno século 21, ainda sejamos espectadores e espectadoras da submissão do feminino ao masculino como se um ato de violência pudesse ser considerado, como recentemente definiu o agressor acusado no caso envolvendo a modelo Luiza Brunet, “um episódio ocorrido na intimidade”. Mudar esse estado de coisas é preciso! E a mudança começa quando, por exemplo, a “Maria da Penha vai à escola”, e, em uma conversa sincera com crianças e adolescentes, mostra a eles e a elas que somos diferentes, mas que nossas diferenças não justificam que os meninos sejam criados para fazer valer sua “masculinidade”, mesmo que (ou quase sempre) por meio da violência, e que as meninas devam aprender a calar ao serem agredidas, em nome do que quer que seja.
Uma vida sem violência e desigualdade é possível, e isso só depende do que fazemos hoje em prol daqueles e daquelas que vieram, e virão, depois de nós.
Soraia Mendes é doutora em direito pela Universidade de Brasília (UnB), mestre em ciência política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS), pesquisadora do tema violência doméstica e familiar contra as mulheres, professora e advogada.