Os gliomas de alto grau (GAGs) são um tipo agressivo de tumor no cérebro, com baixa expectativa de vida e tratamento sofrido. Os pacientes sofrem de convulsões, edema na cabeça, tromboembolismo, fadiga, disfunção cognitiva e depressão até sucumbirem poucos meses após o diagnóstico. Apesar dos avanços terapêuticos, esse câncer se mantém um passo à frente dos médicos. Mas não por muito tempo, sugerem pesquisadores da Universidade da Califórnia (EUA). Na última edição da revista Science, eles detalham como utilizaram um vírus de laboratório para atacar o tumor, aumentando a sobrevivência e reduzindo os efeitos colaterais da quimioterapia em 45 pacientes.
A tecnologia desenvolvida pela farmacêutica Tocagen consiste em utilizar o vírus injetável Toca 511 (vocimagene amiretrorepvec) para infectar, seletivamente, tecidos cerebrais com câncer, mas sem provocar danos às estruturas saudáveis. Uma vez no interior das células tumorais, o Toca 511 comporta-se como uma espécie de cavalo de Troia, matando o inimigo de dentro para fora, sem expor o organismo aos níveis elevados de toxicidade da quimioterapia. Ao invadir o tumor, o vírus decodifica uma enzima derivada da levedura, chamada citosina deaminase (CD).
Desse momento em diante, a CD será expressa pelas células cancerosas. Nelas, permitirá a ativação de um pró-fármaco — classe de drogas que só agem após metabolizadas — chamado Toca FC, que é uma versão oral da 5-fluorocitosina (5-FC). Em sua forma original, a 5-FC é ineficaz contra o câncer, sua ação combinada ao de outros medicamentos é voltada para o tratamento de micoses. No entanto, administrada oralmente em humanos, a Toca FC é absorvida e consegue transpor a barreira sangue/cérebro para alcançar as células tumorais que expressam CD.
A interação com a enzima converte a Toca FC em um novo composto, o 5-FU, esse com efeitos anticâncer e um duplo mecanismo de ação: além de matar diretamente as células cancerosas infectadas e as suas vizinhas, aniquila células imunossupressoras que dificultam que o sistema imunológico ataque o tumor. A imunidade do paciente é ativada, posteriormente, por antígenos e proteínas virais liberadas pelas células tumorais quase mortas. Ou seja, os sinais virais indicam aos anticorpos exatamente quais células devem ser combatidas.
Segurança
Nos testes clínicos de fase I, Michael Vogelbaum mostrou que o tratamento foi seguro em 45 pacientes que haviam se submetidos a cirurgias contra o tumor. “Pessoas que usaram Toca 511 e Toca FC tiveram quase o dobro de melhorias em comparação às tratadas com um quimioterápico muito usado. Elas tiveram sobrevida de 13,6 meses, que é quase o dobro da sobrevivência média”, conta Vogelbaum. Além disso, a análise genômica de amostras do tumor desvendaram assinaturas de micro-RNAS — que ajudam a regular a expressão dos genes — associadas à sobrevivência dos pacientes, o que pode, potencialmente, prever a resposta de cada indivíduo ao tratamento.
“Nossas análises moleculares reforçam a heterogeneidade dos tumores GAG e da metilação deles, que é um fator que pode sensibilizar as células doentes à ação do 5-FU. Os resultados indicam a importância de se obter análises de diversas amostras de tumores, especialmente quando prognósticos podem, potencialmente, afetar as decisões de tratamento. O prognóstico e as características moleculares que contribuem para a sobrevivência podem identificar indivíduos com maior probabilidade de se beneficiar de Toca 511 e Toca FC, sugerindo caminhos para melhorar ainda mais a estratégia”, completa Vogelbaum, acrescentando que os resultados reforçam a viabilidade de testes de fase II e III.
Cautela
Oncologista clínico e diretor médico do Centro de Câncer de Brasília (Cettro), Fernando Vidigal considera inteligente a estratégia de utilizar retrovírus para induzir enzimas que ativam quimioterápicos, além de estimular a reação local e sistêmica da imunidade contra o tumor. Outros tratamentos na mesma linha, voltados para combater tumores sólidos, apresentaram resultados igualmente animadores. No entanto, o médico pondera que estudos com um número maior de pacientes devem ser conduzidos, especialmente para comparar os benefícios da técnica viral com outras terapias aprovadas para o tratamento de tumores cerebrais.
“O estudo é animador, porém não deve ser entendido como prática de tratamento a ser incorporado de maneira imediata. A comprovação definitiva de eficácia virá de estudos maiores, que já estão em andamento. Existem boas perspectivas baseadas nos resultados obtidos nos estudos iniciais. Infelizmente, existe um longo caminho a ser percorrido até a liberação de tratamentos oncológicos por estudos científicos e órgãos regulatórios internacionais. Talvez, a grande necessidade de estratégias mais eficazes no tratamento dos tumores cerebrais recorrentes acelere o processo”, acautela Vidigal.
Ambiente decisivo
Pesquisadores do Memorial Sloan Kettering Cancer Center, nos Estados Unidos, descobriram que não são características do glioma em si que influenciam na resposta limitada dele ao tratamento, mas o microambiente em que está inserido. Cerca de 30% da massa tumoral é composta por macrófagos, células envolvidas na imunidade e responsáveis por “devorar” elementos estranhos e potencialmente nocivos ao organismo. No entanto, em muitos cânceres como o glioma, a concentração dessas células é associada ao mau prognóstico do paciente. Por isso, a presença delas representa uma abordagem terapêutica atraente. Os achados foram publicados, no mês passado, também na revista Science.
60 anos de tentativas
“Há mais de um século, já se observava que alguns tumores entravam em remissão após infecções virais. Os relatos inspiraram médicos da década de 1950 a 1960 a iniciarem pesquisas mais aprimoradas, mas os primeiros resultados foram desanimadores porque o efeito era devastador para o tumor e o paciente. Somente em outubro de 2015, a Food and Drug Adminstration (FDA), dos EUA, aprovou o primeiro tratamento com vírus modificado por engenharia genética, o talimogene laherparepvec (T-VEC), para o melanoma. Os pesquisadores reduziram a atividade patogênica e aumentaram a afinidade para células doentes. Muitos vírus infectam células tumorais, mas elas conseguem suprimir a resposta viral normal e, algumas vezes, as mutações que causam o câncer também aumentam a suscetibilidade para infecções. Existem algumas dezenas de estudos similares com vírus ‘oncolíticos’ e a comunidade científica mundial entende que, nos próximos anos, teremos mais novidades na área. Há espaço para aprimoramentos, sem dúvida, quando conseguirmos controlar o sistema imune do paciente para que não gere uma resposta imunológica contra o vírus modificado e, dessa forma, não reduza a ação terapêutica dele.”
Stephen Doral Stefani, oncologista e pesquisador do Hospital do Câncer Mãe e Deus, em Porto Alegre
A tecnologia desenvolvida pela farmacêutica Tocagen consiste em utilizar o vírus injetável Toca 511 (vocimagene amiretrorepvec) para infectar, seletivamente, tecidos cerebrais com câncer, mas sem provocar danos às estruturas saudáveis. Uma vez no interior das células tumorais, o Toca 511 comporta-se como uma espécie de cavalo de Troia, matando o inimigo de dentro para fora, sem expor o organismo aos níveis elevados de toxicidade da quimioterapia. Ao invadir o tumor, o vírus decodifica uma enzima derivada da levedura, chamada citosina deaminase (CD).
Desse momento em diante, a CD será expressa pelas células cancerosas. Nelas, permitirá a ativação de um pró-fármaco — classe de drogas que só agem após metabolizadas — chamado Toca FC, que é uma versão oral da 5-fluorocitosina (5-FC). Em sua forma original, a 5-FC é ineficaz contra o câncer, sua ação combinada ao de outros medicamentos é voltada para o tratamento de micoses. No entanto, administrada oralmente em humanos, a Toca FC é absorvida e consegue transpor a barreira sangue/cérebro para alcançar as células tumorais que expressam CD.
A interação com a enzima converte a Toca FC em um novo composto, o 5-FU, esse com efeitos anticâncer e um duplo mecanismo de ação: além de matar diretamente as células cancerosas infectadas e as suas vizinhas, aniquila células imunossupressoras que dificultam que o sistema imunológico ataque o tumor. A imunidade do paciente é ativada, posteriormente, por antígenos e proteínas virais liberadas pelas células tumorais quase mortas. Ou seja, os sinais virais indicam aos anticorpos exatamente quais células devem ser combatidas.
Segurança
Nos testes clínicos de fase I, Michael Vogelbaum mostrou que o tratamento foi seguro em 45 pacientes que haviam se submetidos a cirurgias contra o tumor. “Pessoas que usaram Toca 511 e Toca FC tiveram quase o dobro de melhorias em comparação às tratadas com um quimioterápico muito usado. Elas tiveram sobrevida de 13,6 meses, que é quase o dobro da sobrevivência média”, conta Vogelbaum. Além disso, a análise genômica de amostras do tumor desvendaram assinaturas de micro-RNAS — que ajudam a regular a expressão dos genes — associadas à sobrevivência dos pacientes, o que pode, potencialmente, prever a resposta de cada indivíduo ao tratamento.
“Nossas análises moleculares reforçam a heterogeneidade dos tumores GAG e da metilação deles, que é um fator que pode sensibilizar as células doentes à ação do 5-FU. Os resultados indicam a importância de se obter análises de diversas amostras de tumores, especialmente quando prognósticos podem, potencialmente, afetar as decisões de tratamento. O prognóstico e as características moleculares que contribuem para a sobrevivência podem identificar indivíduos com maior probabilidade de se beneficiar de Toca 511 e Toca FC, sugerindo caminhos para melhorar ainda mais a estratégia”, completa Vogelbaum, acrescentando que os resultados reforçam a viabilidade de testes de fase II e III.
Cautela
Oncologista clínico e diretor médico do Centro de Câncer de Brasília (Cettro), Fernando Vidigal considera inteligente a estratégia de utilizar retrovírus para induzir enzimas que ativam quimioterápicos, além de estimular a reação local e sistêmica da imunidade contra o tumor. Outros tratamentos na mesma linha, voltados para combater tumores sólidos, apresentaram resultados igualmente animadores. No entanto, o médico pondera que estudos com um número maior de pacientes devem ser conduzidos, especialmente para comparar os benefícios da técnica viral com outras terapias aprovadas para o tratamento de tumores cerebrais.
“O estudo é animador, porém não deve ser entendido como prática de tratamento a ser incorporado de maneira imediata. A comprovação definitiva de eficácia virá de estudos maiores, que já estão em andamento. Existem boas perspectivas baseadas nos resultados obtidos nos estudos iniciais. Infelizmente, existe um longo caminho a ser percorrido até a liberação de tratamentos oncológicos por estudos científicos e órgãos regulatórios internacionais. Talvez, a grande necessidade de estratégias mais eficazes no tratamento dos tumores cerebrais recorrentes acelere o processo”, acautela Vidigal.
Ambiente decisivo
Pesquisadores do Memorial Sloan Kettering Cancer Center, nos Estados Unidos, descobriram que não são características do glioma em si que influenciam na resposta limitada dele ao tratamento, mas o microambiente em que está inserido. Cerca de 30% da massa tumoral é composta por macrófagos, células envolvidas na imunidade e responsáveis por “devorar” elementos estranhos e potencialmente nocivos ao organismo. No entanto, em muitos cânceres como o glioma, a concentração dessas células é associada ao mau prognóstico do paciente. Por isso, a presença delas representa uma abordagem terapêutica atraente. Os achados foram publicados, no mês passado, também na revista Science.
60 anos de tentativas
“Há mais de um século, já se observava que alguns tumores entravam em remissão após infecções virais. Os relatos inspiraram médicos da década de 1950 a 1960 a iniciarem pesquisas mais aprimoradas, mas os primeiros resultados foram desanimadores porque o efeito era devastador para o tumor e o paciente. Somente em outubro de 2015, a Food and Drug Adminstration (FDA), dos EUA, aprovou o primeiro tratamento com vírus modificado por engenharia genética, o talimogene laherparepvec (T-VEC), para o melanoma. Os pesquisadores reduziram a atividade patogênica e aumentaram a afinidade para células doentes. Muitos vírus infectam células tumorais, mas elas conseguem suprimir a resposta viral normal e, algumas vezes, as mutações que causam o câncer também aumentam a suscetibilidade para infecções. Existem algumas dezenas de estudos similares com vírus ‘oncolíticos’ e a comunidade científica mundial entende que, nos próximos anos, teremos mais novidades na área. Há espaço para aprimoramentos, sem dúvida, quando conseguirmos controlar o sistema imune do paciente para que não gere uma resposta imunológica contra o vírus modificado e, dessa forma, não reduza a ação terapêutica dele.”
Stephen Doral Stefani, oncologista e pesquisador do Hospital do Câncer Mãe e Deus, em Porto Alegre