Babás, empregadas domésticas, cuidadores de idosos, secretárias, auxiliares, enfim, um grupo de mulheres (e homens, por que não?) que, muitas vezes, sacrificam a própria família para o bem-estar dos moradores da casa onde trabalham. E isso é bem comum. Como também é natural que tais personagens acompanhem gerações e se tornem protetores durante toda a convivência.
O Saúde Plena hoje compartilha histórias de pessoas altruístas, que se dedicam aos outros de maneira aberta e serena. Vocês podem se identificar com elas, ter uma ao lado ou, quem sabe, ter a sorte de um ser assim chegar em sua vida. Como ocorreu com a advogada Sheila Rodrigues Torres, de Mato Grosso, que veio para Belo Horizonte aos 19 anos estudar direito na UFMG e, num momento caótico de estudo e trabalho, encontrou Maria Bárbara da Silva, cozinheira e camareira, mas que fazia bico de faxina. A relação se solidificou, Sheila se casou com o engenheiro civil Henrique Torres, e Bárbara passou a atender o casal e a ajudar com a sogra doente. De uma vez por semana passou a ir mais, de acordo com a necessidade. “Em 2010, resolvemos ter o primeiro filho porque, brincávamos, tínhamos uma pessoa maravilhosa e de confiança para nos ajudar. No entanto, antes de o Pedro Henrique nascer, Bárbara teve um problema de saúde e pediu para sair. Estava com sete meses de gravidez e me desesperei. Ela ficou um ano e meio longe, lutei com pessoas que não deram certo, mas ela melhorou e voltou.”
Sheila lembra que, mesmo longe, o vínculo com Bárbara nunca se perdeu. “Tinha de viajar a trabalho e o Pedro ficava na casa da Bárbara, ela nunca deixou de nos apoiar. Ela tem uma linda história de vida, criou três filhos e dois sobrinhos sozinha, trabalhando dia e noite e se doando aos outros. Ela é madrinha de consagração do Pedro e, em 2013, nasceu a Fernanda, que também a chama de madrinha. Em julho, serão 16 anos de companhia. No ano passado, ela veio morar conosco e nos fins de semana vai para a sua casa. Nossa relação é cada vez mais forte. A Bárbara é o anjo da guarda da minha família. Cuida de mim e da minha casa desde a faculdade. Ela segue minha vida desde então, me viu formar, casar, ter filhos e agora cuida deles com o maior amor do mundo! Tenho orgulho demais dela.”
lembranças Para Sheila, “o mais lindo na Bárbara é que, mesmo com pouco estudo, ela é de uma educação e inteligência que não se vê. Como é bom ter alguém assim do seu lado. Ela educa meus filhos, é grande amiga da minha mãe, as crianças querem dormir e passear com ela, meus filhos a amam. O mundo pode estar desabando que ela larga tudo para brincar com eles. É de total confiança e se preocupa com tudo, tem cuidado com a alimentação – tanto que o Pedro diz ‘aahh madrinha, você é sempre fruta, legume e verdura’. Ela dá carinho e sabe falar firme. É um símbolo de amor”.
Bárbara, mãe de Fernando, Fabiane e Jéssica, além de David e Bruno (a irmã morreu e ela criou os garotos), diz que é difícil traduzir em palavras a relação com Sheila e a família. “Companheirismo e amizade. Não a vejo como patroa, e sim como se fosse uma filha. Em casa, meus filhos falam ‘ahh, minha irmã mais velha’. Criamos um laço de amor. Ela é dedicada, comportada, responsável e caminhamos juntas. Adoro as crianças, é uma grande responsabilidade e, ao mesmo tempo, é gratificante ver o crescimento delas no dia a dia. É como se fosse uma família. Fiquei emocionada com o convite para ser madrinha do Pedro, porque era o primeiro filho, o reizinho chegando e, como sou simples e humilde, não poderia dar presentes. Mas, no meu sentimento, é como se eu fosse uma segunda mãe, estou de guarda.”
De fala tranquila, paciente, Bárbara é acolhedora. “Sou assim e acredito que é herança da minha mãe. Perdi-a com 8 anos, mas me lembro dos seus atos, da amizade, do jeito de cuidar de mim e das outras pessoas. Coloco em prática essas lembranças. E acho que estar com a Sheila tantos anos é mérito de todos eles, porque também me acolheram.
Dedicação incansável
A atenção dada a pessoas de idade avançada, doentes ou senis é tarefa nobre, praticada por familiares ou por profissionais. Mas é preciso preparo prático e psicológico para atuar
“Sua mãe tem Alzheimer.” Nem bem o médico havia terminado de falar, Cleide Faria da Silva, de 76 anos, já estava em pânico. “Nunca tinha ouvido falar nisso. Fiquei lá, com a boca aberta e os olhos arregalados”, relembra a aposentada. Sem entender direito o que ia ocorrer, ela se debruçou em livros, apostilas e pesquisas sobre a doença que, pouco a pouco, sugaria a personalidade e a independência da mãe. “Quando vem o diagnóstico, você começa a relembrar coisas e a perceber que aquilo já estava ocorrendo, mas todo mundo achava que era por conta do próprio envelhecimento.”
Você pode até não se dar conta, mas, neste exato momento, pouco a pouco, estamos envelhecendo. De acordo com o último censo feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2010, tudo indica que, até 2030, a população idosa no Brasil representará 13% dos habitantes do país (cerca de 30 milhões de pessoas). O fenômeno se repete pelo mundo. Até 2050, a expectativa da Organização Mundial de Saúde (OMS) é que a população com mais de 60 anos salte de 841 milhões para 2 bilhões. Se, por um lado, estamos vivendo por mais tempo, por outro temos que nos programar para o surgimento das “pragas da longevidade”: doenças crônicas, degenerativas e demais limitações de um corpo que já não é mais o mesmo. Nesse cenário, cada vez mais a figura do cuidador de idosos toma corpo. Profissionais ou não, quem deseja (ou precisa) encarar a atividade deve ser paciente, compreensivo e caprichar na empatia.
Cleide cuidou da mãe por oito anos. Como filha, ela acredita que assistir à mudança drástica de comportamento da mãe foi a parte mais difícil de todo o processo. “É assustador ver aquela pessoa que você conhecia se perder”, resume. “Algumas pessoas falam que os idosos com Alzheimer ficam violentos, querem tentar fugir. Não é nada disso. Eles estão lutando ferozmente para manter o que ainda têm de personalidade.” O começo da doença pede uma “supervisão discreta”, segundo ela. O idoso ainda consegue realizar algumas tarefas e sente-se incomodado com a intrusão alheia. Conforme o tempo passa, é preciso cuidar mais de perto. “É um processo longo e estranho, em que a personalidade é pulverizada.”
GRUPO
Quando a idosa faleceu, em fevereiro de 2002, tudo perdeu a graça. Sem chão e ainda abalada pela experiência, Cleide resolveu fazer um pouco por quem não tem a sorte de ter com quem contar. Três meses após enterrar a mãe, ela iniciou um grupo de autoajuda e apoio para cuidadores e familiares de idosos doentes. Persistência era sua única arma na época. Batendo de porta em porta, Cleide buscou salões ou espaços para organizar encontros, palestras e cursos, até o grupo se estabelecer, no Hospital Universitário de Brasília (HUB). Lá, Cleide e seus associados permaneceram por muitos anos, mas o projeto começou a minguar. “Esse tipo de trabalho precisa de voluntários, muitos, no plural”, explica. “Eu tinha parceiros, mas o trabalho braçal era todo meu.”
O grupo oficial se encerrou, mas outro, um pouco mais informal, continua a se encontrar de vez em quando. A experiência com a própria mãe mudou a forma como Cleide encara o mundo. Além da percepção da fragilidade do corpo e da mente humana, ela passou a entender que é preciso estar bem para ajudar os outros. “É preciso focar também nos cuidados com os cuidadores. Ele tem que ter períodos de repouso, lazer, leitura”, enumera. “Até porque, ele precisa se atualizar, aprender novas dinâmicas e atividades para fazer com os pacientes. Essa preocupação é muito importante.” Em alguns momentos, ela admite que manter a calma parece impossível. Daí a importância de buscar ajuda: ter alguém com quem revezar é essencial. “O importante em qualquer relação interpessoal é o respeito, se ver no outro e pensar: o que eu gostaria que fosse feito de mim se eu estivesse nessa condição?”
Se você é um cuidador:
Estimule a independência e a autonomia de quem é cuidado. Isso facilita a qualidade da relação entre você e seu paciente/familiar
O “não” pode indicar diversas coisas, não somente rispidez. A dificuldade em se expressar devido à doença não permite muitas vezes uma explicação precisa. Aguarde um novo momento e compreenda a pessoa
Procure parceiros para dividir a sobrecarga do cuidado (familiares, cuidadores, amigos)
Os sentimentos de quem cuida:
Desenvolvimento de novas qualidades competências
Aproximação da pessoa cuidada
Sensação de autoeficiência
Satisfação com a vida
Isolamento social
Estresse e ansiedade
O corpo de quem cuida – queixas mais comuns:
Dor na coluna ou em outras articulações
Hipertensão arterial
Dificuldade em dormir
Fadiga/exaustão física
Cuidando do cuidador. Guardar energia e se organizar é essencial.Veja algumas dicas para ganhar tempo e poupar saúde:
Intercale as atividades diárias entre leves pesadas
Dê períodos de descanso de 15 minutos entre as atividades
Movimente e massageie as mãos e os pés para mantê-los flexíveis
Intercale exercícios de respiração profunda e relaxamento no seu dia a dia
Sempre que possível, faça um esquema de rodízio nos cuidados com os outros membros da família ou profissionais para que você possa ter um tempo somente seu
Descarregue o peso das pernas de maneira alternada quando a tarefa for realizada em pé
Faça alongamento segundo orientação de um profissional
Fonte: Manual para cuidadores de pacientes com demência — Programa Terceira Idade do Ipq.
Laços de amor
Anos de convivência fazem das relações profissionais verdadeiras histórias de amor, cuidado e respeito, criando vínculos para a vida toda, como o caso de Eliane e a família Martins
São 36 anos de convivência, quase quatro décadas de uma vida compartilhada. A relação entre Patrícia Martins, relações-públicas, e Eliane Damásio Ferreira João, de 54 anos, começou quando Patrícia tinha 2. Eliane foi sua babá e hoje é babá de seus filhos, Guilherme, de 4, e Theo, de 2, além de cuidar do marido, o administrador Luiz Guilherme, e da casa. A família, que morava em Belo Horizonte e se mudou para Ponte Nova, vive em meio à natureza, aos bichos, com horta, liberdade e toda a tranquilidade garantida pelo clima de interior e de fazenda.
“Minha mãe contratou Eliane para ser babá da Letícia, irmã dois anos mais nova que eu, e ela ficou por 11 anos até se casar. Cuidou de mim e também do meu irmão, Vitor, quando passou a trabalhar com duas tias-avós, Lourdes e Elza. Mas todo fim de semana eu ia para a casa dela para fritar biscoito de polvilho e ajudá-la com a Poliana, sua filha. Minhas tias morreram, a Eliane se separou e voltou para minha casa”, lembra Patrícia.
Hoje, Eliane mora na fazenda da família em Ponte Nova e tem uma casa nas terras. Desde então, nunca mais saiu. “Fui estudar em Belo Horizonte, depois meus pais também vieram e Eliane ficou tomando conta da casa na fazenda. Em 2008, me casei. Três anos depois, o Guilherme nasceu e ela passou a vir todo fim de semana, de sexta a segunda, para me ajudar. Folgava de terça a quinta-feira. Depois veio o Theo e, quando ele fez 6 meses, decidimos voltar para Ponte Nova, para ter mais qualidade de vida, para as crianças crescerem soltas e livres. E o melhor, ter a Eliane sempre por perto.”
GENTE BOA
Patrícia revela que Eliane é muito tímida, não sai muito de casa e conquistou a família “pelo carinho que tem por todos. Ela nos protege, é quem manda na casa, faz do jeito dela e é avó dos meninos. É uma pessoa amorosa, ajuda no que pode e temos uma relação de mãe e filha”. O que ainda é mais gratificante nessa relação é que é de “cuidado mútuo”, destaca Patrícia, já que as duas sempre conversam, dão e ouvem conselhos. “Ela é o meu sossego, meu amparo. E a irmã de Eliane, a Lúcia, também veio ficar comigo há um ano e meio, para ajudar com as crianças, que continuam demandando a Eliane o tempo todo, são grudados na “Li’, como a chamam”.
Eliane, um pouco desconfiada e de poucas palavras, conta que “gosto deles demais, são dedicados e adoro os meninos. A família me ajudou muito na época da minha separação, me deu apoio”. Emocionada, ela revela que “minha casa, praticamente me deram, e todos me tratam com carinho e respeito. Sou ouvida, o que falo eles atendem. E me sinto avó do Guilherme e do Theo. Sei que é uma relação rara e dou muito valor”.
Seres preciosos e de afeto
Em qualquer relação tudo é muito lindo, amoroso, respeitoso, desde que cada pessoa respeite o espaço do outro. Aí, tudo dá certo. A psicóloga e psicoterapeuta Renata Feldman explica que, especialmente essa relação entre patrões e prestadores de serviço do lar “é muito delicada porque é uma relação de troca profissional de serviço, será paga, mas é diferenciada das outras porque ocorre dentro de casa, no ambiente íntimo e familiar. E, ao trazê-la para perto, muitas vezes é confundida pelo afeto que a permeia, pelo vínculo e proximidade”.
Renata Feldman enfatiza que “é um serviço que tem por base a confiança, revertida de valor pessoal de afeto muito mais forte, porque a questão humana dentro de casa é intensa. Você vai entregar as pessoas mais preciosas da sua vida para um terceiro. É quem vai dar banho e remédios para seu pai ou cuidar do seu filho. A responsabilidade é grande demais e essa relação não é comum, é cercada de cuidados, carinho e bons tratos”.
A psicóloga lembra que essa é uma escolha mútua. “De o anjo de um bater com o anjo do outro. Na entrevista de emprego, vai envolver energia e intuição. É uma questão abstrata e subjetiva, ainda que, claro, as pessoas possam se enganar pela urgência e ansiedade de resolver uma situação e acabar por inviabilizar o processo. Numa era em que é tão importante respeitar e valorizar o diferente, numa relação em que as diferenças sociais, culturais e de formação gritam, são até abissais, é bonito demais presenciar, viver e saber de relações que duram anos. É uma preciosidade! E só confirma que as diferenças existem e podem ser respeitadas, vividas e que um pode entrar e participar do mundo do outro. Uma troca rica, bonita e não só de prestação de serviço. Assim, a diferença social que rege essas relações é marcada também por uma aproximação afetiva, permeada de carinho, cuidado, confiança e respeito. Isso diminui a distância e fortalece o vínculo.”
FILME
Renata se lembra do filme protagonizado pela atriz Regina Casé – Que horas ela volta?, que, antes de tudo, mostra algo óbvio e visível, mas que ninguém joga luz, fica no faz de conta, no tudo certo, você no seu quartinho e o de hóspede livre. “Entendo que em toda casa há regras e o funcionário terá de se submeter a elas, ser eficiente e saber seu lugar. Agora, o patrão que desrespeita, humilha e diferencia a comida é inaceitável. Mas, graças a Deus, muitos já tomaram consciência do lado humano, delicado, de dependência mútua e que essa pessoa é preciosa. É uma relação de fronteira tênue, mas que, com sabedoria, só colherá afeto.”
E como declarou Regina Casé, “é um filme muito atual, de ficção, mas também é um documentário, um relato de um Brasil que, se não é o de hoje, é o de pouquinhos dias atrás”. Mesmo pensamento da diretora Anna Muylaert. “Ele leva a várias discussões, né? Políticas, sociais, de história do Brasil, de arquitetura, de afeto e de educação.”
“Que horas ela volta?”
A pernambucana Val (Regina Casé) se mudou para São Paulo a fim de dar melhores condições de vida para sua filha, Jéssica. Com muito receio, ela deixou a menina no interior de Pernambuco para ser babá de Fabinho (Michel Joelsas), morando integralmente na casa de seus patrões. Treze anos depois, quando o menino vai prestar vestibular, Jéssica (Camila Márdila) lhe telefona, pedindo ajuda para ir a São Paulo, no intuito de prestar a mesma prova. Os chefes de Val recebem a menina de braços abertos, só que, quando ela deixa de seguir certo protocolo, circulando livremente pela casa e no seio da família, ‘como não deveria’, a situação se complica. O filme tem direção de Anna Muylaert e traz no elenco, além de Regina Casé, Camila Márdila, Michel Joelsas e outros.