Filhos de gays têm índices de bem-estar parecidos aos de casais héteros

Maior problema dessas famílias continua sendo o preconceito, que vem até mesmo de parentes e amigos

por Isabela de Oliveira 12/05/2016 10:51
Ana Rayssa / Esp. CB / D.A Press
Osmir e Carlos Eduardo com os filhos: o casal viajou até Caruaru (PE) para conhecer as crianças, adotadas em 2012 (foto: Ana Rayssa / Esp. CB / D.A Press)
As risadas que chegam até o corredor do elevador oferecem indícios consistentes de que crianças vivem naquele apartamento do segundo andar, casa de Carlos Eduardo dos Santos e Osmir Messora. Trata-se de mais um momento alegre em família. Juntos há 31 anos, o enfermeiro e o servidor aposentado compartilham a paternidade de Felipe, Fagner, Victor e Vinícius, uma escadinha de 10, 8, 6 e 4 anos, respectivamente. Quem os conhece não hesita em afirmar: se os filhos estão felizes, é por causa do amor dos dois pais.

A adoção era um sonho antigo de Osmir, 54 anos, e Carlos Eduardo, 55. “Somos de São Paulo e entramos com o processo lá, mas não deu certo. Prestei um concurso para a Universidade de Brasília (UnB) em 2008, fui aprovado e me mudei para cá. O Osmir veio dois anos depois. Retomamos o sonho aqui”, conta Carlos, hoje chefe do Setor de Gestão do Ensino do Hospital Universitário de Brasília (HUB).

Em 2010, quando procuraram o Fórum em Brasília, encontraram menos resistência do que na capital paulista. O processo andou e, em 2012, receberam uma ligação de Caruaru (PE). A voz ao telefone dizia que três irmãos eram candidatos à adoção, e o casal poderia conhecê-los se quisessem. E, de tanto quererem, passaram 15 dias na cidade em companhia das crianças, que em nenhum momento se opuseram à sexualidade do casal. Elas foram adotadas e, logo depois, veio Vinícius. Na visita a Caruaru, o caçula ainda não era elegível, porque os pais biológicos ainda tinham direitos.

Os argumentos contra a adoção por casais homoafetivos sugerem que as crianças teriam risco aumentado para problemas mentais e do desenvolvimento. Victor, contudo, garante e demonstra que está feliz. E Felipe assegura que, na escola, há outras crianças adotadas por casais do mesmo sexo e, por isso, a situação é tratada com normalidade. Agora, a percepção dos meninos foi constatada em um estudo coordenado por Ellen C. Perrin, diretora de Pesquisa do Floating Hospital for Children, associado ao Centro Médico Tufts, em Boston, nos Estados Unidos.

Sem depressão
Segundo a pesquisa, apresentada ontem na reunião da Academia Americana de Pediatria, filhos de gays têm índices de bem-estar semelhantes aos das crianças criadas por heterossexuais. Pais de vários estados americanos — incluindo 732 homossexuais — responderam a questionários sobre sua relação com os filhos. Entre os gays, por exemplo, 88% disseram não ser verdade que o filho seja infeliz ou deprimido. Entre os demais pais, esse índice foi de 87%. Outro exemplo: 72% dos homossexuais e 75% dos héteros disseram que o filho não “se preocupa muito”, no sentido de ser estressado com as condições de vida. Na amostra, 36% dos filhos de homossexuais tinham nascido no contexto de uma relação heterossexual, 38% foram adotados ou acolhidos e 14% eram fruto de barriga de aluguel.

Os maiores problemas constatados ainda vêm da discriminação. Muitos dos pais gays descreveram ter encontrado barreiras para conseguir a custódia das crianças (33%) e para adotar (41%). Um terço disse que os filhos tinham sofrido provocação, intimidação ou outras experiências estigmatizantes por amigos. Perrin constatou que o preconceito não tinha como alvo apenas as crianças: de 20% e 30% relataram experiências estigmatizantes simplesmente por serem pais. Outro dado constatado pelo levantamento é que a rejeição vem de pessoas próximas. Os julgamentos negativos são feitos principalmente por familiares, amigos e comunidades religiosas.

Carlos Eduardo conta que não se incomoda nem sequer percebe esse tipo de julgamento. Inclusive, a família vai à missa todos os domingos, e as crianças fazem catequese, além de atividades como inglês, natação e ginástica acrobática. “Na realidade, eu percebo muito mais a questão racial do que preconceito com nossa sexualidade. Nós reparamos muito mais o preconceito que há com a cor de pele dos nossos filhos. Vamos a shoppings ou exposições e reparamos olhares mais atentos dos seguranças, por exemplo.”

Tranquilidade
Outro argumento comum de quem se opõe à adoção por casais homoafetivos é a de que os pequenos não compreendem uma configuração familiar diferente da tradicional. Algo que a história de Theodora, 14 anos, contesta. Adotada aos 4 anos pelos cabeleireiros Vasco da Gama, 45, e Júnior de Carvalho, 53, ela não demonstrou nenhum estranhamento desde a primeira ida à casa dos dois. “Nos primeiros minutos, ela comentou que teria dois pais. Eu perguntei quem eram, e ela respondeu: ‘Você e aquele homem que está na cozinha’”, lembra Vasco.

Irmã sanguínea de Theodora, Helena D’Alva, 5 anos, acabou sendo adotada mais tarde pelo mesmo casal. “Ela perguntou: ‘Como assim, vocês são dois homens e namoram? Como pode isso?’. Eu respondi que éramos gays e que nos amávamos”, conta o cabeleireiro. As duas meninas estudam em escola católica, de freiras “No início, a instituição era um pouco menos flexível. Hoje, a situação é tranquila para todo mundo”, assegura.

Ele argumenta que a orientação sexual dos pais não influencia na dos filhos. “Sou filho de pais heterossexuais, assim como meu marido, e somos gays. A sexualidade deles não influenciou a minha, assim como não influenciaremos as escolhas das nossas filhas, que foram abandonadas por um casal hétero”, lembra Vasco, que escreveu, em parceria com a família, o livro Dois pais, sim (Editora Expressão).

Um dos mais de 60 mil casais homossexuais em união estável hoje no Brasil, Vasco e Júnior também dizem não ter dificuldade nenhuma em criar duas meninas. Habituados a trabalhar com mulheres em salões de beleza e concursos de miss, eles garantem que estão prontos para esclarecer qualquer dúvida das filhas, inclusive sobre aspectos como sexualidade e menstruação. “É importante ter referência de ambos os sexos, mas ela não precisa vir só do pai ou da mãe. Isso acontece com pais solteiros, por exemplo, em que tios, avós e amigos preenchem as referências. Nossas filhas têm outras referências também.”

Para Carlos Eduardo, o melhor argumento contra as críticas é o amor. “Com ele não se discute. O que importa é que nossos filhos sejam cidadãos de bem e trabalhadores. Como educador, percebo que muitos alunos não respeitam mais os professores e as instituições, e isso se agrava à medida que o tempo passa. Os pais são ocupados demais para transmitir esses valores e esperam que a escola o faça. Temos consciência da importância dessa base familiar que não depende da sexualidade dos pais para ser repassada. O mais difícil da paternidade é dosar, saber dizer sim e não na hora certa. Isso vale para todo mundo”.


Valdenízia Bento Peixoto, pesquisadora do Grupo de Estudos de Gênero, Política Social e Serviço Social da UnB.

Podemos extrapolar os resultados deste estudo para a realidade brasileira?

O que move a família são laços de afeto, independentemente de sangue, por isso acho que os dados do estudo podem ser aplicados no Brasil. Por outro lado, o Brasil tem uma forte dosagem de valores ultraconservadores herdada da formação sócio-histórica do país. Ela é fundada em um tripé de interesses e valores morais da Igreja, do Estado e das ciências médicas. Tudo que foge disso vira pecado, crime ou doença. Eu discordo da aparente colocação que crianças filhas de homossexuais sofrem mais bullying, terminação que eu não gosto de usar. A homofobia tem herança e berço histórico, já o bullying é um problema psicossocial da criança que agride e que é agredida. Essas agressões ocorrem por motivos diversos, não somente por razão da sexualidade.

Como combater o preconceito?
A informação é muito importante neste sentido, porque preconceito se quebra com orientação, razão e compreensão. O segundo passo é mais enfático e depende dos movimentos LGBT para realizar enfrentamentos junto ao governo, de forma que a ampliação e manutenção de políticas sejam garantidas. A cultura e educação também são importantes, porque a homossexualidade não é um assunto individual e exclusivamente privado. É público e precisa ser discutido na educação. A sexualidade é uma forma de estabelecimento de poder, disse Michel Foucault. Raça, sexualidade e gênero são variáveis de hierarquia de poder e quem não está nessas casinhas está sempre vulnerável e submisso.