A história de um encontro, um cocô na bolsa e as reflexões sobre a incidência da constipação intestinal em mulheres

Há quatro mulheres para cada homem com constipação intestinal. Constrangimento narrado por canadense no Twitter e que viralizou na web mostra que falar e fazer cocô são tabus sociais

por Carolina Cotta Valéria Mendes 04/04/2016 09:30
EM / D.A Press
Há quatro mulheres para cada homem com constipação intestinal ou prisão de ventre (foto: EM / D.A Press)
Bastou uma canadense contar um episódio constrangedor em uma rede social para levantar a discussão na internet: afinal, por que alguns homens se incomodam em saber ou ver que suas parceiras estão fazendo cocô? E por que algumas mulheres mudam suas necessidades fisiológicas em função disso? A história de Blotty, como se identifica, foi compartilhada, curtida e comentada por milhares de pessoas em todo o mundo, relevando que o tabu atravessa fronteiras. Há quatro mulheres para cada homem com constipação intestinal ou prisão de ventre. Significa que o organismo feminino é mais sensível, mas isso não deveria ser um problema.

“Eu tenho uma história para contar. É sobre meu cocô”, anunciou Blotty. Durante um encontro, ela aceitou o convite do pretendente para ir à sua casa. Por se considerar “confiante, calma e com boa autoestima”, teve vontade e se sentiu confortável para fazer cocô no banheiro dele. Mas a descarga não funcionou. Blotty enfiou a mão no vaso, enrolou o cocô no papel higiênico e o guardou na bolsa. Tudo para que o cara com quem estava saindo não soubesse. Aí o clima acabou. “Ele está apaixonado por mim, mas eu nunca mais vou conseguir olhar na cara dele”, postou. No final, Blotty conseguiu se livrar do cocô, mas as mulheres ainda não se libertaram dessa opressão. (Leia a história completa no final da matéria).

Estudo realizado pela Federação Brasileira de Gastroenterologia revela que duas em cada três mulheres sofrem com algum problema intestinal. A pesquisa 'Saúde Intestinal da Mulher' (SIM) ouviu 3029 mulheres em dez cidades brasileiras de várias regiões do país e as principais queixas mencionadas foram gases (57%), inchaço (56%), sensação de peso (46%) e prisão de ventre (26%). Das que relataram alterações no funcionamento do intestino, 89% afirmaram que o problema afeta o humor e 79%, a vida sexual e, conseqüentemente, a autoestima.

Professora da Faculdade IPEMED Ciências Médicas, a gastroenterologista e doutora em medicina Virgínia Figueiredo explica que questões biológicas fazem com que as mulheres sofram mais com os problemas de intestino. “A prevalência da constipação intestinal na população ocidental varia entre 20 a 30%. No entanto, as fases hormonais relacionadas ao ciclo menstrual vão predispor as mulheres a uma maior incidência de prisão de ventre. A maior parte das pessoas que sofre de intestino preso tem problemas de alimentação e não existe nenhuma doença ou alteração metabólica que justifique a constipação. É o que chamamos de constipação funcional”, explica.

Do ponto de vista cultural, segundo a especialista, a diferenciação na forma como se educa meninos e meninas pode ajudar a entender a incidência maior da constipação intestinal na população feminina. “Meninos podem fazer xixi na rua, mas a menina, não”, exemplifica. Além do contexto machista que permeia a questão, Virgínia Figueiredo lembra ainda que falar sobre cocô é um tabu. “A ideia de que é algo sujo ou que não devemos falar sobre isso persiste mesmo as alterações intestinais sendo um problema comum. Há um aspecto cultural nessa negação de um ato fisiológico”, aponta.

Segundo a psicanálise, a primeira renúncia pulsional da criança para se submeter à cultura é o controle do esfíncter. Apesar dessa exigência ser compartilhada por meninos e meninas, é desde a infância que a cultura machista vai subjugar a mulher a padrões muito mais rígidos de comportamento. A psicanalista e professora da pós-graduação em psiquiatria da Faculdade IPEMED Ciências Médicas, Gilda Paoliello, reforça ainda que é uma questão do feminino o ideal da mulher ser bela, sedutora, perfeita. Nesse contexto, defecar é desonroso. “A forma subjetiva de como cada mulher lida com sua posição feminina vai também dirigir a forma como ela lida com suas exigências fisiológicas, seu corpo, seus desejos. Assim, algo como o ato de defecar, completamente natural, pode ser visto pela mulher como uma obra degradante que ela esconde, retém”, afirma a especialista.

Freud chamava a mulher de continente negro, aquela indecifrável, a que se torna um enigma e encontra subterfúgios até para controlar as necessidades fisiológicas. Toda essa submissão é exacerbada e naturalizada pela forma como as meninas são criadas e pela forma que a cultura perpetua padrões de comportamento. “A mulher faz das tripas coração, reprimindo até o que é fisiológico, para continuar sendo desejada pelo homem. O curioso é que as mulheres que transgridem essa cultura machista, mesmo assustando os homens, costumam ser mais desejadas. E mais livres.”, afirma Paoliello.

Não fazer cocô fora de casa, por exemplo, desregula o hábito fisiológico. “Não negue o reflexo evacuatório, tenha um horário para evacuar, sinta o prazer da evacuação. A negação desse reflexo pode se tornar um círculo vicioso e levar à contipação intestinal. Essa prisão de ventre gera uma série de queixas como indisposição, mal-humor, barriga cheia. A origem da palavra enfezado vem da sensação de ficar aborrecido por não evacuar”, afirma a gastroenterologista Virgínia Figueiredo.

Namoro
Thiago Rodrigues Souza, de 29 anos, observa, há algum tempo, essa situação de discriminação na sociedade. “É como se a mulher não tivesse o direito de ser humana, em uma série de aspectos. O fisiológico é só um deles. É uma questão de razão: homens e mulheres são humanos e, portanto, deveriam, ambos, lidar com essa situação da mesma forma. É muito difícil admitir que a discriminação por gênero dá poderes a esse ou àquele sujeito. Mas dá para ver, na prática, ela acontecendo”, lamenta. Em um relacionamento há um ano e meio, Thiago revela que isso sequer chega a ser uma questão entre ele e a namorada. “Pelo menos para mim, saber que ela foi ao banheiro, ou vice-versa, está tão no horizonte da normalidade que não é algo com o que se preocupar. Mas conversamos sobre isso nos momentos de intimidade e não ter reservas sobre o tema ajuda”, sugere.

Já a publicitária R.L, de 33 anos, demorou a entender a gravidade do que viveu com um ex-namorado que não aceitava que ela fizesse cocô. “Desde o início do relacionamento ele deu a entender que não gostaria de saber se eu estivesse com dor de barriga, ou querendo ir ao banheiro. Muito menos ouvir a palavra cocô”, lembra. Mas o namoro foi evoluindo com um agravante: R.L tem síndrome do intestino irritável.

Sempre que comia algo diferente tinha dor de barriga forte, instantânea e bem resolvida. “Bastava eu ir ao banheiro. Como fazia aulas de alta gastronomia, isso ocorria com frequência. E eu não ia deixar de provar nenhuma comida por causa dele”, lembra. R.L passou por situações constrangedoras como ouvir do ex que ela não podia usar o banheiro da casa dele. Ou de o namorado ir embora da casa dela porque ela tinha feito cocô e tomado banho, atitude que ele insistia como necessário. “Eu sofria com isso, mas só tive dimensão do que era quando terminei com ele e contei o fato à minha psicanalista. Ela me disse que aquilo era uma tortura, no sentido literal da palavra”, lamenta.

Tabu
A gastroenterologista Virgínia Figueiredo afirma que até mesmo os profissionais de saúde têm dificuldade em abordar o tema do cocô com os pacientes. “O cocô é tabu social até mesmo entre os médicos, mas clinicamente é importante saber como são as fezes do paciente. Qual a consistência? Como é o cheiro? Tem algum elemento anormal? É preciso abordar todos os aspectos da vida de um paciente para construir a melhor história possível, se chegar ao diagnóstico e oferecer o melhor tratamento”, salienta.

O que é normal

O odor das fezes tem relação direta com o que se come e vai ser mais forte quanto mais tempo a pessoa fica sem evacuar. As fezes devem ser sólidas ou pastosas sem muco, sem sangue, sem restos de alimentos. O espectro do que é considerado um hábito intestinal normal varia muito. A ida ao banheiro até três vezes por dia está dentro da normalidade e, desde que a pessoa não sinta desconforto ou tenha a sensação de eliminação incompleta, não fazer cocô diariamente também não é sinal de constipação. “As fezes da pessoa constipada são ressecadas, fragmentadas, duras. Ela pode ficar mais de três dias sem evacuar e, em alguns casos, é preciso utilizar as mãos para retirar as fezes”, explica Virgínia Figueiredo.

Dicas
A nutricionista e especialista em nutrição funcional do Instituto Mineiro de Endocrinologia, Hanna Vitta, afirma que o intestino afeta as emoções e o humor. “Vários estudos demonstram que o intestino é capaz de produzir grande quantidade de neurotransmissores, como a serotonina e dopamina, que são responsáveis pela sensação de bem-estar e colaboram para bom funcionamento intestinal”, explica. Por isso, é importante buscar estratégias para reduzir o estresse e a ansiedade. As dicas da nutricionista incluem, além de uma alimentação saudável, atividade física regular, água, dormir bem, entre 6h e 8h horas por noite, e respeitar a vontade de corpo.

Para evitar a constipação, além das fibras - encontradas em verduras, legumes, frutas com casca, cereais integrais, sementes e grãos -, evite o consumo de alimentos processados, industrializados, farinha refinada, doces, sal e açúcar.

A HISTÓRIA DE BLOTTY